Adacir Reis*

A Índia, país mais populoso do mundo, foi às urnas. Um processo eleitoral de várias etapas e semanas de votação. Um bilhão de pessoas estavam aptas para votar e, desse número, 642 milhões de eleitores votaram. Não há nada parecido em qualquer outro lugar do mundo.

No país emancipado por Mahatma Gandhi e Jawaharlal Nehru, o resultado mostrou que o pulso da democracia indiana ainda pulsa. É um caso a ser estudado, pois mostrou também que é preciso ter cuidado com as perigosas convicções e unanimidades que se criam, por meio de analistas e pesquisas de opinião, sobre a suposta inevitabilidade de certas ondas políticas. Todos, ou quase todos, apostavam numa vitória arrasadora do atual governo. Na verdade, na política nada, ou quase nada, está previamente definido.

O Primeiro-Ministro da Índia, Narendra Modi, com seu BJP (Partido do Povo Indiano), ao buscar o terceiro mandato, fazia em seus comícios o “4” com os dedos da mão, indicando que a meta era ocupar 400 cadeiras das 543 da Câmara do Parlamento Indiano.

Não foi bem assim. A vitória do BJP alcançou 240 cadeiras. Considerando sua coligação (Aliança Democrática Nacional), Modi ficou com 293 assentos no Parlamento, o que lhe assegurou uma maioria para um terceiro mandato como Primeiro Ministro.

Das 543 cadeiras da Câmara baixa do Parlamento Indiano, o Partido do Congresso Nacional Indiano (não confundir com o próprio Parlamento indiano, lá chamado de Lok Sabha), que já foi majoritário em diversos governos e hoje é oposição, saiu de míseras 52 cadeiras e conquistou 99 assentos. Sua coligação toda (ÍNDIA), ficou com 234 parlamentares. Assim, a aliança dos partidos oposicionistas, embora minoria, teve um crescimento surpreendente em relação às eleições de 2019.

Narendra Modi foi eleito em 2014 com um discurso nacionalista, prometendo um governo forte e de mudanças. Em 2019, Narendra Modi foi reconduzido ao posto de Primeiro Ministro com uma vitória estrondosa (o BJP elegeu, sozinho, 303 deputados). Como geralmente acontece em um quadro de reeleição consagradora, Modi em seu segundo mandato avançou com mais ousadia em sua agenda ideológica, com forte conteúdo personalista, centralizador e um ideário preocupante em que passou, na prática, a misturar o hinduísmo com o próprio conceito de nacionalidade indiana. A Índia começou a ser chamada de Bharat. Com isso, as tensões entre hindus e a “minoria” de mais duzentos milhões de muçulmanos aumentaram.

No campo econômico, Modi adotou um tom desenvolvimentista, apoiado em duas frentes: por um lado, apoio à iniciativa privada e aos investidores estrangeiros; por outro lado, fortaleceu o aparato estatal para induzir obras de infraestrutura, defesa e tecnologia. A política na Índia é complexa em razão de toda a complexidade cultural,

étnica, religiosa, social e linguística.

Se no plano interno Modi se apresenta como um governo de ruptura com práticas tidas como assistencialistas do Partido do Congresso, encarnando um ideário visto como de direita, no plano externo Modi tem aprimorado a tradicional política da Índia de não alinhamento automático. Na defesa do interesse nacional, a Índia dialoga e negocia com todos os países.

Modi, que já teve o visto negado para entrar nos Estados Unidos, buscou a reaproximação da Índia com a Casa Branca. Embora neste ano Joe Biden tenha recebido Modi com todas as honrarias, o governo indiano não cedeu às pressões para tomar partido em favor da Ucrânia ou para interromper a intensificação de seu comércio com a Rússia.

A Índia integra o BRICS, agora ampliado. Na presidência do G20 em 2023, a Índia defendeu com êxito a entrada da União Africana para esse fórum multilateral. Ao lado do Brasil, o governo indiano tem defendido a reforma do Conselho de Segurança da ONU e a valorização de fóruns multilaterais.

A oposição indiana no Parlamento passa a ser exercida por Rahul Gandhi que, embora derrotado pela segunda vez para formar um governo, saiu fortalecido pelo fato de o resultado final ter sido melhor para a oposição do que se imaginava.

Rahul Gandhi é filho de Rajiv Gandhi, ex-Primeiro Ministro assassinado em 1991, o qual, por sua vez, era filho de Indira Gandhi, uma forte Primeira Ministra da Índia também assassinada, filha do lendário e admirável Jawaharlal Nehru, o único até então eleito para três mandatos. Essa árvore genealógica da família Nehru, agora na quarta geração à frente do Partido do Congresso, levanta dúvidas sobre a capacidade da atual oposição para renovar suas lideranças partidárias. E é bom registrar, o “Gandhi” no sobrenome dos herdeiros de Nehru não decorre da relação de parentesco com o líder Mahatma Gandhi.

A campanha eleitoral de 2024 foi pesada, com a prisão de alguns líderes opositores por acusações de corrupção, tensões entre hindus e muçulmanos alimentadas pelo BJP, além de uma retórica oficial centrada na figura de Narendra Modi como o novo Pai da Pátria.

Mesmo tendo apostado alto na mistura entre política e religião, com a inauguração de um grande templo hindu (Templo Ram) em local reivindicado há séculos também pelos muçulmanos (na cidade Ayodhya), Modi perdeu a eleição no estado de Uttar Pradesh, o mais populoso da Índia, fato que também surpreendeu os analistas políticos.

Vale registrar que o partido BJP de Modi nasceu como um braço político da RSS, talvez a maior organização não governamental do mundo, baseada no nacionalismo hindu, com propósito assistencialista e com viés cívico e paramilitar. Narendra Modi, então um jovem de família humilde, foi amparado pela RSS, passou a integrar seus quadros e depois foi destacado para ajudar na organização do BJP como partido político. Considerado um organizador eficiente, Modi ajudou a massificar o BJP pelas diversas regiões da Índia, a institucionalizar uma política de encontros e cursos de formação

política de seus militantes e a equipar tecnologicamente seus diretórios, com atenção especial para a comunicação. Nas campanhas eleitorais, o líder do BJP tem sido pioneiro em inovação tecnológica, vídeos e até participação virtual em comícios por meio de hologramas.

No plebiscito que o próprio Primeiro-Ministro procurou promover sobre seus dez anos de governo, pesaram algumas questões de ordem econômica e social. Apesar do ritmo de crescimento do PIB ser hoje o maior de todas as economias nacionais (cerca de 6,5% ao ano), o que fará da Índia em 2030 a terceira maior economia do mundo, o desemprego ainda é alto, sobretudo entre os jovens, a desigualdade ainda assusta e privilégios de casta resistem.

Neste contexto, boa parte da população, ao que parece, ficou sensível à crítica da oposição de que Modi pretendia conquistar mais de dois terços do Parlamento para avançar na reforma da Constituição e, com isso, extinguir políticas afirmativas de emprego e trabalho para as camadas mais populares, além de romper com o secularismo constitucional. Algumas questões regionais, como perfis de líderes locais, também pesaram na balança do resultado eleitoral nacional. Além disso, minorias religiosas se sentiram ameaçadas pelo discurso de afirmação hinduísta.

Por fim, a exemplo do que aconteceu no Brasil, a impressão que fica é que o povo indiano intuiu que o fortalecimento excessivo de uma corrente política poderia ser prejudicial à democracia e, por consequência, aos seus próprios interesses. Portanto, Narendra Modi ganhou um novo mandato, mas com alguns freios e contrapesos.

Para quem imaginava que as instituições da Índia haviam sido capturadas pelo governismo, a população indiana mostrou que a democracia por lá está viva, apesar de todos os dramáticos desafios das democracias modernas.

*Adacir Reis é advogado em Brasília e presidente do Instituto San Tiago Dantas de Direito e Economia. Um dos autores do livro “Atualidade de San Tiago Dantas” e da obra “Política Externa Independente” (Funag/Itamaraty).


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