Governo se manifestou contrário ao projeto em tramitação no Senado que tem como objetivo privatizar áreas litorâneas da União; assunto é tema de debate nas redes sociais entre ambientalistas, políticos e artistas e movimenta opinião pública

Projeto Empreendimento Maraey / Crédito: Divulgação

A estimativa de investimento para a conclusão da primeira etapa de um empreendimento hoteleiro de luxo na cidade de Maricá, no Rio de Janeiro, ultrapassa R$ 3,5 bilhões. A cifra bilionária faz parte do aporte para a construção do Maraey, um complexo turístico e residencial – que tem na descrição do projeto quatro hotéis cinco estrelas com mais de 1.100 quartos e 244 unidades residenciais – tudo isso dentro de uma APA, Área de Proteção Ambiental.

Desde 2009, as cerca de 200 famílias que vivem no local estão mobilizadas contra o empreendimento que pode chegar a movimentar uma população média de 40 mil turistas na região. O embate judicial já teve diversos episódios ao longo da última década, sendo o mais recente uma decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ), no ano passado, que concedeu uma liminar interrompendo a construção. O Ministério Público do Rio se opôs à obra do resort, prevendo danos irreversíveis ao ecossistema de restinga entre a Lagoa de Maricá e a Praia da Barra.

A situação vivida na região metropolitana do Rio de Janeiro, com a iminência de uma obra dessa magnitude, com previsão de conclusão até 2033, é um exemplo do avanço da especulação imobiliária nas praias brasileiras, que demonstra que o debate em torno da disputa pela terra em áreas litorâneas, além do acesso às terras da União, um patrimônio público, envolve também outras frentes: desde a preservação de comunidades tradicionais até a preocupação gerada a partir das mudanças climáticas devido à elevação do nível do mar nos locais cobiçados para ocupação.

Outro caso emblemático, também no Rio de Janeiro, é o do Condomínio Laranjeiras, em Paraty, com imóveis de luxo que tiraram o sossego da região há mais de 40 anos. Além de manter uma difícil relação com os moradores do entorno, na Vila Oratório, o acesso dos caiçaras residentes em localidades como a Praia do Sono e Ponta Negra, que precisam passar pelo condomínio para acessar serviços de saúde ou compras na cidade, chegou a ser impedido; o que foi revertido pela Justiça. No auge do período crítico do conflito, entre 2015 e 2016, mais de 20 moradores foram processados por atravessarem a área particular do condomínio.

PEC no Senado

Aprovada em fevereiro de 2022 na Câmara dos Deputados, a PEC 3/2022, que trata do tema e acabou tendo bastante repercussão nas redes sociais nas últimas semanas (com declarações contrárias e favoráveis de famosos em seus perfis), estava parada na Comissão de Constituição e Justiça do Senado desde agosto de 2023. O assunto voltou à tona por conta de uma audiência pública realizada recentemente, em 27 de maio. Relator do projeto, Flávio Bolsonaro defendeu a aprovação e negou que a abordagem seja a da privatização das praias, como o projeto ficou conhecido. No detalhamento técnico, no entanto, o argumento do senador não se sustenta.

Caso seja aprovada e sancionada, com o texto que está hoje no Senado, a PEC revoga um trecho da Constituição e autoriza a transferência dos territórios de marinha para ocupantes particulares, estados e municípios.

Crédito: Waldemir Barreto/Agência Senado

Esses terrenos de marinha são as áreas situadas na costa marítima, em uma faixa de 33 metros a partir de uma linha média do nível de maré que foi traçada em 1831. Atualmente, as praias pertencem à União e são geridas pela Secretaria do Patrimônio da União (SPU), do Ministério de Gestão e Inovação em Serviços Públicos. Com a PEC, municípios e estados receberiam gratuitamente a posse dos terrenos onde houver construções de prédios públicos, enquanto os ocupantes particulares ficariam com a titularidade a partir de um pagamento.

Nesta segunda-feira (3), o ministro das Relações Institucionais, Alexandre Padilha, declarou à imprensa que o governo é contra a PEC e vai trabalhar para derrubá-la na CCJ. “O governo vai participar ativamente [do debate]. [Da forma que está, o projeto], vai cercear o acesso da população brasileira e criar verdadeiros ambientes privados”, disse Padilha.

Direito de ir e vir

Ambientalista, o deputado federal Nilto Tatto (PT-SP) lembra da similaridade do assunto com o debate sobre o uso dos espaços pela população a partir das privatizações dos parques públicos. “Se passar [as terras] para a Prefeitura e ela repassar a um ente privado, acaba a liberdade de uso desse espaço, é assim que se dá o processo de privatização”, explica Tatto. “Além, evidentemente, do impacto ambiental e social que isso pode causar, e que ganha uma importância cada vez maior, na medida que o nível do mar está subindo por conta do derretimento das geleiras por conta do aquecimento global”, completa o deputado.

Fundador do Movimento Baía Viva, que existe desde a década de 80, o ecologista e gestor ambiental Sérgio Ricardo Potiguara comentou o caso do Condomínio Laranjeiras e aponta que, mesmo com o fato dos moradores terem conquistado na Justiça o direito à passagem pelo local, o ambiente segue hostil com muros que dificultam o acesso e seguranças privados que trabalham nas mansões.

Proteção ambiental

“É uma ameaça muito grande sobre a biodiversidade porque essas áreas concentram os manguezais, alguns desses rios, inclusive, servem para o abastecimento urbano de cidades de litorâneas, então, em todos os casos, com essa legislação aprovada pelo Congresso, nós teremos retrocesso, seja com conflitos fundiários, seja na privatização do espaço público das ilhas e praias, que já têm ameaças aos seus ecossistemas”, afirma Sérgio Ricardo. Para o gestor ambiental a PEC “é uma contradição com o direito ambiental brasileiro”.

O deputado federal Nilto Tatto lembra que a tentativa de emplacar a PEC não é a primeira medida que o bolsonarismo coloca contra a conservação ambiental das regiões litorâneas. Na gestão do ex-presidente Jair Bolsonaro, foram retiradas uma série de normas que protegiam manguezais e restingas. “Esses ataques são para atender uma pressão muito forte do setor imobiliário que quer avançar cada vez mais com os empreendimentos turísticos, não à toa que chamam de Cancún brasileira”, comenta Tatto.

* Em resposta à publicação da matéria, o empreendimento Maraey informa que segue todos os ritos legais para a criação do principal projeto turístico-residencial sustentável do país e reforça o seu compromisso com o desenvolvimento ambiental, social e econômico de Maricá bem como a proteção da comunidade de pescadores de Zacarias e que não haverá qualquer tipo de cerceamento de direito ao acesso às praias na região.

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