Na contramão da descontinuidade iniciada pelo governo federal, São Paulo aprova projeto para escolas militares; entenda como a presença de agentes de segurança pode atrapalhar um processo educativo inclusivo

por Claudia Rocha

'A militarização faz parte da destruição da ideia de escola pública', afirma especialista

De autoria do governador Tarcísio de Freitas, o projeto que visa militarizar parte das escolas do estado de São Paulo foi aprovado na Assembleia Legislativa paulista (Alesp), na semana passada, com uma sessão marcada pela truculência da polícia militar com alunos secundaristas que protestavam contra a ideia. Diversas entidades do setor da educação manifestaram repúdio ao caso; a OAB, Ordem dos Advogados do Brasil, emitiu uma nota apontando preocupação com o ocorrido. 

Nesta segunda-feira (27), a medida foi sancionada pelo governador em cerimônia no Palácio dos Bandeirantes. Para Catarina de Almeida Santos, professora da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília (UnB) e membro da coordenação do Comitê-DF da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, o tema coloca em disputa a função social da escola pública, já que a especialista defende que o militarismo traz consigo uma perspectiva de disciplina radicalmente contrária às bases da escola pública. 

“A disciplina para a área de segurança é sobre obediência às regras estabelecidas por meio da imposição do medo, a disciplina no campo da educação tem a ver com aprendizado, do respeito às diferenças, da convivência coletiva, do respeito ao outro, é sobre respeito”, explica a professora que coordena a Rede Nacional de Pesquisa sobre Militarização da Educação. 

Para a professora, a polícia deve tratar as questões de segurança no âmbito geral da sociedade. Catarina de Almeida Santos desmistifica também a ideia de que as escolas militarizadas possuem melhores índices de aprendizado. 

Mesmo com o avanço do conservadorismo, uma pesquisa, realizada em 2022 pelo DataFolha por encomenda da Ação Educativa e Cenpec, mostrou que sete em cada dez brasileiros afirmaram confiar mais na figura do professor do que na de um agente de segurança no que diz respeito à atuação dentro da escola, e que os principais problemas da educação têm relação com falta de investimento e a desvalorização profissional dos professores. Confira a entrevista:

O Brasil tinha uma política, no governo anterior, de incentivo a militarização no ambiente escolar, por meio do Programa Nacional das Escolas Cívico-Militares, conhecido como PECIM, que está sendo aos poucos descontinuado por decisão tomada no ano passado pelo Ministério da Educação. Mas, em São Paulo, estamos no sentido contrário, e observamos um avanço da pauta. Como você enxerga essa relação entre o militarismo e o ambiente escolar? Existem prós e contras nessa questão? 

Então, o primeiro a dizer é que a política anterior era um programa do governo que já nasceu no meio de uma política que existia no Brasil, de ponta a ponta. Com exceção do Sergipe, todas as outras unidades da federação têm escolas militarizadas, seja nas redes estaduais ou nas redes municipais. Então, a gente tem mais de mil escolas militarizadas no Brasil e a maioria delas nem foi via o programa nacional de escolas cívico militares. Sobre a política anterior, o que se fez foi revogar o decreto, mas muitos estados e muitos municípios continuaram por conta própria e incorporaram as escolas militarizadas do PECIM a suas redes de escolas militarizadas. Paraná, Goiás, vários estados fizeram isso. Por exemplo, estou agora aqui na Bahia, só na Bahia são mais de cem escolas. Para dar um panorama temporal, a militarização começa no Brasil no final da década de 90 e segue em expansão, a gente tem muitos formatos e muitos agentes da área de segurança dentro da escola. Temos a militarização direta via Secretarias de Educação e de Segurança, temos a militarização também por meio de termos de cooperação assinados entre os municípios e os Comandos da Polícia Militar, o Corpo de Bombeiros, a Polícia Rodoviária Federal e Guardas Metropolitanas. 

A gente tem também um modelo como se fosse de venda de uma apostila por grupos de militares que montam empresas, organizações sociais e vendem a militarização a partir de sistemas de ensino. Então esse é o panorama no Brasil, que vem se expandindo, e junto com a expansão todos os problemas decorrentes da militarização. Não é algo novo no país e já vem causando muitos estragos, especialmente para os estudantes. 

E, já que você citou a venda de pacotes para escolas, qual seria esse atrativo? Quais são as bases de atuação? Porque o que é falado, em geral, é que, com a militarização, não existe interferência pedagógica ou algum tipo de competição com os professores, mas sim uma metodologia relacionada somente com a disciplina dos alunos.  

Primeiro que não existe essa coisa de não interferir no pedagógico, né? Não existe uma separação entre entre o disciplinar e o pedagógico. Quando eu pego, por exemplo, as normativas dos militares que falam que estão cuidando apenas do disciplinar, e aí você vai ver nos manuais das escolas que são militarizadas, que têm o Manual do Estudante, Manual de Comportamento, Manual de Fardamento, lá vai dizer que os estudantes não podem manifestar afeto, não podem andar de mãos dadas, não podem correr, não podem fazer um monte de coisa e tem que bater continência, fazer formação. Se o pedagógico falar que precisa correr, por exemplo, o disciplinar vai dizer que não pode. Quando estamos falando de um processo disciplinar na escola, é preciso entender que ele não tem a ver com a disciplina de um quartel. A disciplina para a área de segurança é sobre obediência às regras estabelecidas por meio da imposição do medo, a disciplina no campo da educação tem a ver com aprendizado, do respeito às diferenças, da convivência coletiva, do respeito ao outro, é sobre respeito. A gente está falando de respeito no campo da disciplina, não estamos falando de obediência. Então eu não separo isso no processo de formação; essa disciplina é parte do processo pedagógico, é parte do processo de formação, é parte do processo de aprendizagem. Não existe isso da polícia, dos agentes de segurança, do bombeiro ou seja lá qual agente estiver dentro da escola, de que ele está lá dentro só para lidar com uma questão, até porque eles não sabem, né? Eles não têm essa formação, não têm prática nessa coisa de lidar com criança e adolescente e sobre o ensinamento para o respeito. Não faz parte da doutrina militar o diálogo, essa disciplina que só é possível construir com diálogo, e com diálogo em uma perspectiva horizontal e não na perspectiva hierárquica vertical, que é o que está na área de segurança, você não separa o disciplinar do pedagógico. 

Há também o discurso sobre a questão da segurança no ambiente escolar…

Sim, o outro elemento muito utilizado é sobre a questão da segurança, né, mas, os profissionais da Segurança não precisam garantir segurança para escola, eles precisam garantir segurança na sociedade. E por que eu digo que eles têm que garantir segurança na sociedade? Porque nós não estamos falando de escolas seguras em cidades tranquilas ou em localidades tranquilas. A gente tá falando de territórios que têm problemas e que a escola tem problemas, mas problemas menores inclusive do que aqueles que estão fora dela, né? Então, nós não estamos falando de profissionais que estão dando conta do seu ofício, ou seja, garantir a segurança, a ordem; nós temos mais problemas na segurança do que na educação, talvez. Aliás, se tem uma coisa que a população brasileira não tem é o direito social à segurança como está lá na nossa Constituição. Então, nós estamos falando dessa venda [da ideia] de que a polícia significa segurança, né, que a presença da polícia significa segurança. Um projeto como esse de São Paulo e vários outros são em áreas de vulnerabilidade, quando a gente sabe o que que a polícia significa nessas áreas. E aí se vende a ideia de que se a escola for ordeira no sentido da segurança, se os alunos forem obedientes, isso garante o aprendizado, a qualidade da formação, o que obviamente é uma falácia, né?

Estamos falando de um sistema educativo com um público de quase 40 milhões de estudantes, com turmas superlotadas, faltando professores, com escolas que nem poderiam ser chamadas de escolas, com problemas de todas as ordens, né, professores muito mal remunerados. E aí você vai mandar policiais aposentados para receber um valor maior do que aquilo que o piso salarial paga e aí, em nome disso, se vende que se essa escola tiver com polícia vai ter qualidade, isso é o que se vende. E, no fundo, no fundo, nós estamos falando de um projeto que quer controlar a escola pública, que quer controlar o que se faz dentro da escola, que quer controlar a juventude, que quer tirar da escola as possibilidades de disputa, né? Porque a escola pública está em disputa. Ela tem um monte de problemas, inclusive contra os estudantes, e que essas disputas estão sempre dentro da escola. Aí você vai ter essa essa juventude da periferia reivindicando que ela possa ser espaço da cultura hip hop, da cultura, afro, de todas as culturas que estão perto da escola e que, obviamente, a partir da presença da polícia e isso não poderá ser feito porque a escola militarizada deixa de ser a escola pública de todos os grupos, ela se torna a escola que vai ter que se adequar aos ditames e as regras da polícia, e aí as diferentes formas de existir não cabem nessa escola porque isso não cabe no militarismo. Se os gestores estão mandando a polícia para dentro da escola é porque eles querem que a polícia interfira. A polícia, via de regra, lida com as questões de violência, e não as violências que a gente precisa tratar de forma pedagógica, né? Não são as violências cotidianas, da escola. A polícia pode ser acionada, por exemplo, quando tiver um caso de assalto, de roubo, de qualquer coisa. Sempre que não for possível resolver da perspectiva pedagógica, os agentes de segurança podem ser acionados, como são acionados em crimes que ocorrem em casa, na empresa, na rua. Agora, porque tem violência em casa, eu vou mandar a polícia para cada casa? Olha a quantidade de mulheres que morrem em casa, crianças e adolescentes estuprados por familiares. Quando um crime desse acontece, você aciona para que haja investigação e não para deixar um policial lá plantado.

E como está o cenário da aprendizagem nesse contexto?

Os dados relacionados à militarização, de quando a polícia vai para a escola, dizem que quando a escola entrega resultados diferentes, e algumas nem isso têm entregado, os alunos que têm baixo rendimento ou os chamados ‘alunos problemas’ são retirados da escola, eles são expulsos, aqueles alunos não cabem no projeto. Então, não é a escola que se organiza para lidar com a diversidade de alunos, a escola estabelece um padrão e, assim, ela perde a característica de escola pública. A escola fica largada, sem condições de desenvolver o trabalho que ela tem que fazer, ela fica cada vez mais parecida com uma prisão e menos com escola. Sem o espaço da criatividade, da ludicidade, fica só preparada para entregar resultados e não para formar gente. E a partir disso, eu digo que a escola não está funcionando. Aí eu ponho a polícia lá dentro, e quando ela está lá, coloco mais professores, reformo a escola, seleciono quem vai ficar lá dentro, e a partir disso, digo que a escola melhorou; tiram quem não interessa e ainda dizem que não têm interferência, como é que não tem interferência?

E o avanço do conservadorismo na sociedade brasileira não é uma novidade. Existe o senso comum de que a população apoia a militarização ou que avalia positivamente a intervenção a partir da perspectiva da disciplina. Como você entende essa visão da sociedade, em especial dos pais, a partir desse tema?

Objetivamente, uma parte da sociedade apoia a questão da militarização, talvez até alguns professores, inclusive, porque, afinal de contas, a gente tem uma sociedade conservadora. A gente não estaria discutindo a militarização da escola, se a nossa sociedade não fosse conservadora, e quando eu digo conservadora, eu estou falando da conservação dessa estrutura de sociedade, que é racista, misógina,  lgbtfóbica, que é desigual socialmente, desigual nas questões de gênero. Então, é essa sociedade que a gente tem. Quando a gente olha para a escola, ela é um lugar que, como eu falei, só na educação básica, a gente tem quase 40 milhões, juntando os profissionais mais os familiares, a sociedade brasileira está em torno da escola. E a gente tá aqui falando da escola pública, que é a que está em disputa para ser controlada. Essa escola, se ela trata daquilo que precisa ser tratado na nossa sociedade, se o currículo da escola mexe com isso, essa escola funciona como uma ameaça a essa estrutura de sociedade. Quantas crianças e quantas mulheres não descobrem que estão sendo violentadas sexualmente a partir de projetos desenvolvidos na escola? Quantas escolas não denunciam os abusos ao Conselho Tutelar? E esses mesmos conservadores querem ocupar também os conselhos tutelares. Então, não tem nenhuma outra instituição na nossa sociedade que tenha essa quantidade de gente, no mínimo quatro horas por dias e no mínimo 200 dias por ano, então, se essa estrutura funciona, você estremece a estrutura da sociedade. Como a Constituição diz que a educação é direito de todos e obrigação do Estado, se você não pode impedir isso como um todo, se controla aquilo que é trabalhado na escola, e se você controla aquilo que a escola faz, você vai controlar se essa escola vai ser para transformar ou para manter essa situação. A militarização faz parte da destruição da ideia de escola pública, dessa escola pública que vai olhar para o público, que vai trabalhar com todos os públicos, que vai trabalhar com os neurodivergentes, que vai trabalhar com as pessoas com suas etnias, que vai trabalhar com diferentes corpos. Então, ela pode romper com essa lógica; nossa sociedade tem essa história de conservação dessas estruturas de violências, violações e desigualdades. Isso vai convencer a nossa sociedade.

Muitos pais estão organizados pelas ‘escola sem partido’, homeschooling, e vai ter uma parte que vai comprar a ideia de que as escolas militarizadas entregam os mesmos resultados que as escolas militares, mas que não entregam resultados por serem militares, e sim por que escolhem o seu público, porque têm outra infraestrutura, mas que, ao fim, traumatizam um conjunto das pessoas que estudam lá. E você vai ter as escolas federais, várias escolas federais estão alcançando melhores resultados sem serem militares, né? Bom, é fato que ninguém quer uma escola violenta, na verdade, então quando você vende a ideia de que essa escola não vai ter violência, que os alunos vão aprender, muita gente também vai comprar essa ideia. Pensa em uma sociedade que tem um conjunto de mães solos nas periferias, que saem todos os dias e que seus filhos ficam ao Deus-dará porque elas não podem ficar com eles, e aí você tem uma ideia de que o adolescente não vai estar em contato com a droga, por exemplo, então eu tenho uma complexidade na sociedade brasileira para levar em conta nesse apoio. Agora, a gente tem pesquisas mostrando que a maior parte da sociedade confia mais nos professores do que na polícia, entende? Que o lugar da polícia não é na escola. Então, porque a gente vai vendo alguns grupos de pais apoiando, não significa que a sociedade como um todo apoia essa questão, muitas vezes. Apoia a partir de qual debate? Ninguém faz o debate, ninguém discute que aquilo que a polícia pode fazer não está dentro da escola, né? Que ela tá falhando fora da escola, então a partir disso as pessoas também vão comprando essa ideia.