Ary Vanazzi: ‘Após 60 anos, as pessoas perderam tudo aquilo que construíram, tudo que guardavam como memória e história’
Prefeito do município de São Leopoldo, cidade fortemente atingida pelas chuvas no Rio Grande do Sul, Ary Vanazzi (PT- RS) chegou a comover seguidores e solidários à tragédia enfrentada pelo estado ao compartilhar imagens da cidade submersa, incluindo sua residência. Ainda assim, abriu espaço neste momento de dor e gestão de crises para conversar com a revista Focus nesta segunda, 6. O prefeito apresentou um panorama da catástrofe climática vivida pelo povo gaúcho, mas sobretudo sobre como o estado pode se reerguer social e economicamente, para conseguir, de fato, enfrentar e implementar políticas de prevenção, tendo em vista o agravamento climático – hoje enfrentado com negacionismo
Alberto Cantalice e Fernanda Otero
No município de São Leopoldo, região metropolitana de Porto Alegre, Ary Vanazzi decretou situação de calamidade pública. A medida foi anunciada na manhã do sábado (4), depois que o nível do Rio dos Sinos, que corta a cidade, atingiu 8m 07cm, ultrapassando em mais de 1,3 metro a cota de inundação na cidade, de 6,70m.
A captação de água está interrompida desde quinta-feira (2), quando o Serviço Municipal de Água e Esgotos (Semae) desligou os paineis da Estação Elevatória de Água Bruta responsável por bombear água do rio a fim de evitar maiores danos aos equipamentos.
Desde então, apenas o Hospital Centenário e outras unidades de saúde estão sendo continuamente abastecidas. Preocupado, o prefeito alerta para os riscos da falta de legislação eficiente no estado e o avanço do agronegócio desenfreado, único setor capaz de se refazer integralmente, afirma.
“O setor do agronegócio sobreviverá, enquanto o restante da indústria, da produção e da agricultura familiar se afundará. Não há cálculos de quantos bilhões de reais serão necessários para recuperar o Rio Grande do Sul do ponto de vista das estradas, da educação, da saúde e do bem-estar emocional da população”, analisa Vanazzi.
Prefeito, podemos começar com uma visão geral sobre essa tragédia climática que assolou o Rio Grande do Sul? O estado vem enfrentando efeitos climáticos há algum tempo. Antes era uma seca severa, e agora uma enchente devastadora. E ainda há quem, de forma irresponsável, negue o óbvio. Poderia nos apresentar um panorama sobre a situação no estado?
Tenho participado ativamente dos debates locais, nacionais e internacionais sobre a questão ambiental. Atualmente, o estado do Sul está enfrentando uma situação extremamente atípica e dramática. O comportamento climático tem se modificado muito rapidamente, com episódios extremos que frequentemente são difíceis de dimensionar. Um exemplo disso é a recente catástrofe que enfrentamos, quando registramos a precipitação de 600 milímetros em apenas 48 horas, um evento sem precedentes na história. Adicionalmente, está se formando um deserto na região Sul, um fenômeno pouco discutido que envolve a desertificação de grandes áreas. Assim, vivemos um momento crucial no Rio Grande do Sul, que demanda um diagnóstico muito mais preciso e profundo sobre as consequências dessas mudanças climáticas e ambientais. Além disso, acredito que estamos alcançando este patamar crítico também devido a problemas como a expansão desenfreada do agronegócio e o desmatamento intenso. Especificamente, destaca-se a problemática do “Rio Grande Verde”, relacionada ao plantio excessivo de eucalipto, uma cultura amplamente promovida na região para a produção de papel. Esses fatores, em conjunto, nos colocam diante de um cenário que exige, evidentemente, um estudo muito mais aprofundado. Mas não é só isso, por exemplo, o Rio Grande do Sul é o único estado brasileiro que ainda não instituiu em sua legislação a cobrança pelo uso da água. Os comitês de bacia aprovaram recentemente, mas o estado não implementou tal medida como lei. Assim, o arrozeiro, que produz arroz utilizando água, acaba secando os rios; da mesma forma, quem planta eucalipto vai esgotando o lençol freático. Portanto, não existe uma política pública estadual que planeje o uso da água e a proteção ambiental de forma responsável, alinhada aos objetivos traçados pela ONU e por grandes encontros internacionais que participamos. Nesse sentido, o Rio Grande do Sul enfrenta uma tragédia; essas últimas catástrofes que ocorreram nos anos de 2023 e 2024, eu diria que vão afundar o estado econômica e socialmente. Apenas o setor do agronegócio sobreviverá, enquanto o restante da indústria, da produção e da agricultura familiar se afundará. Não há cálculos de quantos bilhões de reais serão necessários para recuperar o Rio Grande do Sul do ponto de vista das estradas, da educação, da saúde e do bem-estar emocional da população. Cidades como a minha, com 180 mil pessoas que perderam absolutamente tudo, não têm sequer uma casa para onde retornar. As casas existem, mas estão debaixo da água, inclusive a minha, pois moro no bairro Campina e perdi tudo. Eu sinto a comoção das pessoas agora; não estou dizendo apenas o que elas sentem, mas relato o que nós estamos vivendo. Após 60 anos, as pessoas perderam tudo aquilo que construíram, tudo que guardavam como memória e história. Isso afeta profundamente a vida econômica, social e emocional da população. O estado agora precisa considerar urgente uma política de acompanhamento psicológico, além de propor alternativas para uma recuperação econômica e buscar apoio para que, ao menos, as pessoas possam começar a se recuperar. Hoje de manhã (7/5), eu estava esperando o caminhão na Polícia Federal para atravessar e havia centenas de pessoas na beira da estrada. Você não tem ideia do quanto as pessoas me abraçavam e choravam. Eu digo isso porque, quando voltarem para casa, o desespero será ainda maior. Imagine o que está acontecendo no Rio Grande do Sul, onde quase dois a três milhões de gaúchos estão passando pela mesma situação. Portanto, o problema ambiental, na minha opinião, é resultante da destruição que causamos no passado e da falta de uma política pública coerente, séria e responsável que fiscalize. Existe uma lacuna em termos de investimento, planejamento e também de alternativas, como por exemplo, o armazenamento de água e a manutenção de um clima mais estável. Essa situação, para mim, está relacionada a um grande problema climático global. O estado talvez seja o epicentro desta grande crise, que se estende ao Paraná e a Santa Catarina, e que continua subindo. Agora, no inverno, há a expectativa de que seja um período seco. Imagine se o inverno for seco, considerando os problemas de seca que já enfrentamos no último verão. Estamos diante de uma questão ambiental completamente desregulada, porque dependemos da umidade da Amazônia e das correntes de ar marítimo – correntes que, ao mover-se do sul, que é onde estamos, partem em direção ao Uruguai e à Argentina, e não o inverso, prosseguindo para a Europa. Este é o grande desafio desse equilíbrio ambiental. O que está acontecendo na Amazônia é um reflexo do que vivemos aqui: a falta de umidade e a irregularidade, somadas ao desmatamento, estão nos conduzindo a esses trajetos críticos no Brasil. Hoje, somos nós no sul, e no próximo ano e nos subsequentes cinco ou seis anos, os episódios climáticos que estamos enfrentando hoje, previstos inicialmente para 2030 a 2040, foram antecipados em 10 a 15 anos. Portanto, a situação é de fato muito grave. Não podemos limitar nossa ação ao momento atual. Por exemplo, agora vejo o governador do estado e o prefeito solicitando que o governo federal ofereça apoio e disponibilize recursos financeiros. Eu também defendo que isso deve ser feito, mas é essencial que o governo implemente um planejamento estratégico para a aplicação desses recursos de modo a obrigar a sociedade a refletir sobre essas questões. Não adianta apenas consertar estradas e construir mais casas agora, se em dois anos enfrentaremos a mesma tragédia. Isso apenas criaria um ciclo vicioso. Portanto, é necessário ter um debate intenso e estruturado com o governo federal, não apenas para oferecer ajuda pontual às comunidades afetadas, mas para engajar nosso governo de forma muito mais efetiva na resolução desses problemas.
Quando foi que a situação se agravou e a população teve que ser avisada do perigo e da dimensão do que viria? Como reagiram?
Quando começaram os alertas dos institutos de meteorologia na semana anterior, indicando a possibilidade de 600 milímetros de chuva, um sentimento de apreensão tomou conta de todos nós na região. Pelo menos em mim bateu um certo pavor, pois sabia que com 276 milímetros a água atingiria um patamar crítico. Quando me informaram sobre a previsão de 600 milímetros, ficou claro que os diques existentes não seriam suficientes para conter tal volume. Durante aquela semana que antecedeu as chuvas, promovemos debates, discussões e fornecemos informações à população, alertando sobre a necessidade de se preparar diante dessa iminente situação. Desenvolvemos uma narrativa para tentar sensibilizar as pessoas, incentivando-as a sair de casa e a elevar os móveis, conforme solicitado pelos sistemas meteorológicos nacional, estadual e privados. Porém, o desafio foi que muitas pessoas, por nunca terem experimentado tal situação, tinham dificuldade em acreditar na gravidade do alerta. Era complicado convencê-las a agir, pois não vivenciaram eventos semelhantes no passado. Algumas pessoas, inicialmente céticas, permaneceram em suas casas, observando a água subir devagar. Somente quando a água invadiu suas casas, começaram a agir, levantando móveis e buscando abrigo nos andares superiores. A relutância em aceitar o alerta prévio é um desafio comum quando se enfrentam situações inéditas, o que demonstra a dificuldade das pessoas em acreditar em algo que não vivenciaram antes. Isso também reflete a desconfiança geral em relação à política, resultante de um histórico de descrença e de experiências ruins. A situação se agravando enquanto as pessoas permanecem tranquilamente em casa, até que são surpreendidas pela água ao acordarem, causando desespero. Ontem, por exemplo, no primeiro dia em que a água invadiu as residências, quase 4 mil pedidos de socorro foram feitos, gerando um cenário desesperador, com pessoas no telhado, agitando bandeiras vermelhas e brancas em busca de ajuda. Devido à escassez de barcos e à falta de helicópteros, a situação se agravou rapidamente, resultando em um estado de desespero. Para lidar com a emergência, o governo estadual e o exército foram convocados, e ontem se tornou um dos dias mais críticos. Cerca de três a quatro mil voluntários com barcos, além de um grupo de bombeiros de Goiás e uma força-tarefa enviada por Brasília a pedido do ex-presidente Lula, foram cruciais para a operação de resgate realizada ontem. Nessa grande ação, conseguimos retirar praticamente todos aqueles com alto risco de morte ou afogamento. Atualmente, estamos atendendo locais mais elevados, onde as pessoas estão isoladas devido aos dois metros de água na frente de suas casas, distantes cerca de um a dois quilômetros de onde poderiam estar. Uma força-tarefa está sendo organizada para fornecer água, alimentos, velas e fósforos, visando restabelecer a energia para aqueles que não possuem eletricidade, internet ou telefone celular. Uma das principais preocupações é a resposta das defesas civis do executivo quando as águas baixarem, pois os riscos de encontrar vítimas fatais, sobretudo idosos, obesos, crianças e pessoas com deficiência, são alarmantes. A previsão é que, embora a situação já seja uma grave catástrofe em termos de alagamento e chuvas, a maior tragédia pode ser a perda de vidas humanas, um cenário que preocupa particularmente em Porto Alegre, assim como em nossa cidade.
Neste caso da tragédia no Rio Grande do Sul, a presença imediata do governo federal e do próprio Lula foi notável, com a ida deles e dos ministros para ajudar a amenizar a situação. Como tem sido percebida a atuação do governo federal?
Nesse caso, o Lula, embora não estivesse presente na primeira situação, teve todos os ministros presentes, inclusive na minha prefeitura durante o primeiro ciclone. Depois de Lula, os ministros continuaram vindo constantemente, e os prefeitos vão a Brasília regularmente. Isso demonstra um tratamento e uma preocupação humanitária genuína. O que Lula está fazendo reflete uma visão humanizada das pessoas; ele não está preocupado com questões superficiais, mas sim com aqueles que perderam tudo, que tiveram perdas familiares. Essa abordagem humana de Lula o torna um heroi nacional, até mesmo para adversários no Rio Grande do Sul, pois sua postura é clara e ação imediata. Para nós, seu envolvimento é um elemento essencial para vislumbrar um futuro promissor, nos organizarmos, nos orientarmos e buscarmos investimentos e recursos para recuperar nossa economia e cidade. A expectativa é poder realizar essa recuperação não apenas este ano, mas também no próximo. Nesse sentido, é elogiável e crucial reconhecer, como uma das
questões fundamentais em uma tragédia, a presença atuante de figuras como Lula, que conseguem se conectar com as necessidades do povo. Como prefeitos, estamos junto à comunidade, conversando, chorando, gritando, compartilhando suas dores e anseios. Lidamos com situações desesperadoras em que perdemos familiares, em que questionamos a ausência de entes queridos. Esse contato direto nos proporciona um senso de governança que nos eleva a um patamar de sensibilidade humana e empatia, em contraste com a insensibilidade daqueles que ficam distantes em seus helicópteros. Essa é a razão pela qual a esquerda, no campo público, traz consigo essa sensibilidade, pois vivenciamos e aprendemos com as vicissitudes das pessoas menos favorecidas.
Qual é o tipo de doação que a população pode fazer? Qual a melhor forma de ajudar agora? São muitas as iniciativas…
Inicialmente, solicitamos auxílio com colchões, cobertores, roupas infantis, água e alimentação, itens essenciais para atender às necessidades imediatas da população desabrigada ou impedida de voltar para casa. Recebemos um bom suprimento desses itens, mas continuamos a reforçar o pedido, especialmente por alimentos. Ainda temos muita gente ilhada e a população enfrenta escassez pois os mercados locais estão vazios, dificultando o acesso aos produtos distribuídos. A comida se torna crucial, e algumas pessoas têm enviado suprimentos por avião, estamos buscando alimentos em Porto Alegre. Além disso, estamos planejando uma nova campanha para reequipar os serviços públicos, como saúde e educação. Estamos realizando um levantamento para avaliar as necessidades e, em seguida, promoveremos uma ampla ação para restabelecer esses serviços essenciais à vida da população. A presença do governo federal, que esteve presente aqui no estado duas vezes, é um sinal reconfortante para nós, demonstrando responsabilidade e compromisso com os municípios e o estado. Esse apoio é de grande importância, e planejamos apresentar ao governo algumas questões consideradas fundamentais, apesar de não ter participado da reunião online proposta pelo governo. Se considerarmos as famílias que perderam absolutamente tudo – sofás, camas, geladeiras, máquinas de lavar, televisões, rádios, batedeiras e edredons – percebemos a necessidade de um suporte efetivo. O governo poderia avaliar a criação de linhas de financiamento para móveis e utensílios, sem juros e com carência, propondo um pacote abrangente para suprir essas necessidades dos cidadãos. Isso seria de grande ajuda. Além disso, outra solicitação que faremos ao governo é a implementação de linhas de crédito, em colaboração com empresários, para materiais de construção, como cimento, areia, tijolos e madeira, materiais essenciais para a reconstrução. Estabelecer uma linha de crédito sem juros, com garantias e possibilidade de carência, seria fundamental para que a população possa adquirir esses materiais. Consideramos que essas medidas teriam um impacto significativo na economia, especialmente para os mais de 30 mil domicílios que perderam tudo. Imaginem a movimentação que seria gerada com esse volume de materiais – geladeiras, fogões, máquinas de lavar, entre outros. Estimular a produção e o emprego seria essencial. Essa pequena intervenção, junto a um fundo de garantia, poderia resultar em uma revolução econômica. Este é um passo crucial para impulsionar a economia, incentivar o crescimento e gerar empregos, permitindo que aqueles que perderam tudo possam se reerguer, se envolver em novas oportunidades de trabalho, possivelmente até na venda desses novos itens. A implementação dessas medidas seria essencial para a recuperação das famílias e de suas residências.
Ao completar oito anos de mandato como prefeito, o senhor vivenciou todo o governo anterior. Diante da falta de empatia que enfrentou durante a pandemia, gostaria de saber qual é a diferença que existe na presença e na relação do governo Lula, especificamente com os prefeitos e o governador, em comparação com o governo anterior?
Com 16 anos de mandato, este sendo o meu segundo período, posso fazer uma análise comparativa dos governos sob os quais exerci meu papel. Durante os primeiros mandatos de Lula e Dilma, e agora no início do retorno de Lula, após os governos de Bolsonaro e Temer, vou fazer um paralelo muito rápido. Nos primeiros mandatos de Lula, houve uma revolução do ponto de vista da gestão pública. O que caracterizou essa revolução foi a criação de políticas de Estado que permitiram aos municípios planejar as políticas públicas de médio a longo prazo, que são resolutivas e contínuas. Ele se distanciou das políticas pontuais e dos programas isolados frequentemente associados a membros do parlamento. Durante esses governos, foi montada uma estrutura capaz de atender à população brasileira com políticas de Estado, enfatizando a continuidade. Como exemplo pessoal, iniciei a construção de parques aqui em 2006-2007, projetos que na época giravam em torno de 60 a 70 milhões de reais. Não se tratavam de obras rápidas, como a construção de duas mil casas, mas sim de recuperação de áreas, pavimentação e outras obras estruturais de longo prazo. Estou concluindo esses agora, e posso afirmar que eles transformaram a economia e o cenário da minha cidade, que era a 12ª economia do estado e hoje é a 7ª economia. Com essa tragédia talvez volte a ser a 10ª. Quero ressaltar que as políticas adotadas durante o primeiro mandato do governo Lula foram marcadas por uma visão estratégica e de planejamento, que impulsionou os municípios e técnicos a se prepararem e pensarem de maneira mais ampla. Por exemplo, todas as cidades foram obrigadas a elaborar planos ambientais, refletindo um planejamento que exigia resultados concretos e políticas integradas. As políticas dos consórcios, por exemplo, eram regionais, e estou destacando alguns elementos para que você possa ter uma dimensão do que isso significou para o país naquele período. Essa reestruturação constituiu uma verdadeira revolução do ponto de vista institucional e da gestão pública. A única questão que não conseguimos abordar adequadamente durante o primeiro governo Lula, e que nos afeta fortemente hoje, é que não conseguimos criar, apoiar ou promover um debate sério sobre a proteção e fortalecimento da indústria nacional. Perdemos esse debate e, submetidos à lógica da importação e da montagem em detrimento da produção, abdicamos da tecnologia. Até hoje, não temos uma estratégia para proteger nossa inteligência e nossa pesquisa. Não conseguimos intervir naquilo que constitui a espinha dorsal de um país autônomo e responsável, nem nos posicionarmos para ser uma das maiores economias mundiais. Nesse aspecto, fomos impostos a seguir uma lógica diferente e perdemos esse debate essencial. No governo Temer e no governo Bolsonaro, nunca vou me esquecer de uma frase emblemática que resume a postura dos dois. Uma vez, perguntaram o seguinte: “O que vocês vão fazer no país?” A resposta foi: “Vamos destruir tudo que o Lula fez”. Eram governos focados em desmantelar, conforme Bolsonaro explicitou em debates, dizendo que iriam destruir as realizações anteriores por considerá-las formas de clientelismo. De fato, o projeto desses governos foi destruir e fortalecer a dependência do país, desmantelando o que havíamos construído. Embora não tenham conseguido destruir tudo, devido a uma
certa resistência popular, ainda que tímida, eles enfraqueceram consideravelmente essa resistência por meio de pressão e repressão, além de retirar conquistas históricas dos trabalhadores e de suas instituições. Isso marcou rapidamente a perda de nossas conquistas históricas, um fato que me assusta profundamente. Por outro lado, tivemos a política de construção do estado, tornando-o forte e autônomo, e agora enfrentamos uma política de destruição. Com o retorno de Lula, o objetivo era reconstituir a política do passado. No entanto, não será fácil, dada a realidade atual. Infelizmente, tivemos um parlamentar nosso que votou pela manutenção do orçamento secreto. Um dia, a história registrará isso. Atualmente, Lula enfrenta um governo com um poder de parlamentarismo, um país de emendas parlamentares, com R$80 bilhões destinados a elas, comparado a apenas R$8 bilhões para políticas públicas nacionais. Sem estruturação e planejamento, isso pode destruir ainda mais a capacidade produtiva e de articulação do país. Na minha opinião, Lula hoje vive uma situação dramática e enfrenta sérios riscos, porque tudo depende de negociação que o faz perder um pouco a cada concessão, e eventualmente, a capacidade de agir. Como prefeito, vejo o retorno do governo Lula como um retorno ao paraíso, apesar das dificuldades, pois pelo menos agora há diálogo. Posso falar com ministros, secretários, há políticas públicas e projetos estratégicos. Embora faltem recursos, existe um projeto, uma retomada de política que reconstroi em todos os aspectos. No entanto, o tempo é escasso, e nossa capacidade política e social para enfrentar e debater essas questões é ainda menor. Portanto, enfrentamos um divisor de águas onde, ao invés de progredir dois passos, talvez consigamos dar apenas meio. Resistir bravamente é o grande desafio que vivemos atualmente. Sou muito, muito grato com o governo Lula, pois acompanho de perto e reconheço seu compromisso com uma política institucional, estatal e republicana. No entanto, é crucial que essa política esteja fundamentada em um compromisso sólido com a estrutura política, econômica e social do país. Esse é o debate que o governo deve liderar; sem isso, permanecemos apenas na superfície das ideias. Encerrando sua provocação inicial, gostaria de dizer que a população se sente muito grata pelo governo Lula, especialmente os trabalhadores mais pobres. No entanto, ainda falta uma ação concertada – um papel para prefeitos, vereadores, partidos e sindicatos – para efetivamente travar esse debate político e ideológico. A população precisa entender que a decisão de agir não se dá apenas por uma inclinação emocional, mas por um compromisso com a redistribuição de renda e com o fortalecimento da cidadania. Este entendimento político e ideológico foi negligenciado por muito tempo, e essa pode ser a nossa maior dificuldade hoje. Não estou dizendo que não devemos negociar; o ponto é que nosso discurso precisa ser muito claro e objetivo com a população, pois ela só assimila dessa forma.