Em Direito à Folia, o professor e pesquisador Guilherme Varella faz abordagem inédita do evento e defende: é preciso, sim, tratar o carnaval sob a perspectiva jurídica, como garantia de um direito cultural

Henrique Nunes

Entrevista: 'Direito à Folia', de Guilherme Varella, traz abordagem inédita sobre o carnaval
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Dizer que Guilherme e Carnaval são íntimos seria, para quem o conhece, a mais batida das alegorias. Seja pelo apreço à festa mais popular do país, iniciado ainda na infância, ou pela dedicação desmedida para garantir que o evento aconteça. A sua tarefa, no entanto, não é necessariamente colocar o bloco na rua – ou os blocos. É mostrar que, assim como o alimento e a moradia, o Carnaval deve ser tratado como um direito. 

Este, aliás, é o tema do livro Direito à Folia, livro recém-lançado pelo professor e pesquisador. Com atuação direta na reformulação do Carnaval de rua iniciado na gestão municipal de Fernando Haddad, a partir de 2013, Varella carregou o tema para o doutorado que faria depois na USP – cujo resultado é o livro. “No final das contas, o meu contato com o carnaval tem essa faceta tripla de ser folião, de ser gestor, de ser pesquisador na área da política cultural”, resume. 

“Na entrevista a seguir, ele explica como Carnaval e Direito se convergem e porque o tema, ainda pouco debatido no mundo acadêmico, é cada vez mais urgente. é uma cobertura inédita desse tema, justamente por tentar conectar a ideia do direito do carnaval no rol dos direitos e da política pública. Então é uma área e um estudo no campo do direito e da política pública, que é uma abordagem que se tem dentro do direito de Estado e é uma abordagem do Carnaval de forma inédita”

– O carnaval é tema frequente nas mais diversas áreas do conhecimento – da sociologia à economia – mas até então pouco citado do ponto de vista jurídico. Além do certo ineditismo, qual a principal contribuição que a sua obra pode deixar ao tema?

– O Carnaval tem merecido muita atenção dos estudos na área da antropologia, na área da sociologia, da comunicação, das artes, mas é incomum se encontrar o estudo jurídico sobre o carnaval. Uma parte disso é explicada por que o próprio objeto de estudo, a festa carnavalesca é uma festa, a priori, ou essencialmente ou teoricamente de essência contrária a qualquer tipo de ordenação, de ordenação jurídica, de ordenação institucional, de regulação, de regulamentação.

E faz sentido. A festa é justamente isso. O carnaval serve para desordenar, descumprir ordens, desnormatizar ou contestar tudo aquilo que está posto normativamente e que a espontaneidade, a liberdade, a alegria fazem questionar.  Mas na ideia de que é necessário que se tenha política pública para dar conta do exercício de direitos e considerando o Carnaval no rol dos direitos culturais, é preciso que você tenha política pública para a concretização deste direito ao carnaval.

É preciso que se crie as condições urbanas para que esse direito seja fruído. E é preciso que a política pública e a intervenção do Estado também sirvam para garantir a liberdade de exercício do Carnaval. Mas também para reduzir os impactos, mitigar os efeitos negativos, inclusive no conflito com outros direitos que existem no território urbano. Então, é preciso, sim, tratar o carnaval sob a perspectiva jurídica, como garantia de um direito cultural.E é isso também aqui a obra se trata, além de tratar do Carnaval em sua perspectiva histórica e cultural e do ponto de vista urbanístico. E, de alguma maneira, é uma cobertura inédita desse tema, justamente por tentar conectar a ideia do direito do carnaval no rol dos direitos e da política pública. Então é uma área e um estudo no campo do direito e da política pública, que é uma abordagem que se tem dentro do direito de Estado e é uma abordagem do Carnaval de forma inédita. O que é o que se tem sobre o carnaval que relaciona o conteúdo jurídico geralmente está relacionado às questões contratuais ou às questões de incentivo fiscal ou as questões relacionadas à regulação de mercado. Muito nesse sentido. Aqui a gente está tratando de forma mais profunda a questão do direito cultural ao carnaval, o direito de protesto à liberdade, mas também o papel do Estado como executor de uma política pública no campo do carnaval. E acredito que isso seja uma contribuição para o debate acadêmico

– Muitos atribuem o ressurgimento do carnaval de rua quase que automaticamente à gestão de Fernando Haddad. No entanto, é sabido que se tratava de uma demanda histórica da população. Quem são, afinal, os verdadeiros protagonistas dessa trajetória?

– É preciso diferenciar o que é o carnaval como festa e expressão cultural e o que é a política pública que garante essa festa e essa expressão cultural. É claro que o protagonismo do Carnaval é dos blocos de carnaval, dos cordões, das fanfarras, das charangas, de todos os movimentos que se organizam em torno da realização dessa manifestação cultural que é histórica e que tem um componente fundamental de patrimônio, de memória e de identidade da sociedade brasileira. E esse protagonismo está claro e está evidente. Ao Estado cumpre garantir as condições para que esse protagonismo possa ser exercido e o Carnaval possa ser realizado. Então, a retomada ou ressurgimento ou a reconstrução do carnaval de São Paulo nessa segunda década do século XXI, está, sim, atrelada a uma questão da intervenção da prefeitura para garantir essas condições. Ou seja, o carnaval sempre existiu. O carnaval de rua de São Paulo é histórico, tem uma ligação muito enraizada com o samba no início do século XX. Tem inclusive uma conformação histórica que o diferencia de outros carnavais, mas que também bebe destes outros. E o carnaval sempre foi represado. O carnaval sempre foi oprimido, principalmente na segunda metade do século XX e no início do século XXI.

E apesar de, claro, o protagonismo ser dos blocos e cordões carnavalescos, os foliões, os organizadores, todos esses sofriam com essa obstrução administrativa do carnaval e com essa criminalização que se fazia na cidade de São Paulo. O que acontece a partir de 2013 é uma mudança de chave da gestão pública, que passa a deixar de reprimir e criminalizar o Carnaval para passar a estimular e a compreender o carnaval como um ativo cultural da cidade. E aí ele cria as condições através de uma política pública, para que esses blocos exerçam o seu protagonismo e que possam sair e realizar a festa do carnaval, garantindo os serviços públicos, garantindo a organização do trânsito, garantindo o que as forças policiais não sejam direcionadas para reprimir essas manifestações. E assim se cria um movimento exponencial de crescimento do carnaval.

É claro que essa reivindicação, a histórica do carnaval de rua na cidade de São Paulo e essa reivindicação se deu porque os blocos sempre foram uma resistência na cidade e essa reivindicação cresceu muito a partir dos anos 2010, justamente por conta do crescimento da pauta do direito à cidade, através da qual a cultura se insere de uma forma muito central, porque a cultura ajuda, reivindica, reivindica um outro uso público da cidade, uma outra fruição da cidade que não seja apenas morar e trabalhar, mas entender a cidade como uma centralidade lúdica, nos termos do Lefebvre. Então, essa reivindicação, que já era histórica, encontra reverberação na agenda política institucional da prefeitura. Então, quando a reivindicação dos blocos, que é histórica, mas que nunca tinha sido atendida, encontra na prefeitura um desaguadouro, uma recepção, e ela se converte então numa política pública efetiva, isso garante as condições de crescimento do carnaval de rua que se viu a partir de 2013, quando havia apenas 40 blocos na cidade, e isso passou para 200 no ano seguinte, 350, 450 em 2015, 600 blocos, 700 e assim por diante, até chegar no nível que a gente encontra hoje.

– A consolidação do carnaval de rua, sob o ponto de vista jurídico, reacende outro debate: o direito à cultura e o direito à rua. Mas há quem diga que esse ressurgimento ainda privilegia a região central e, de certa forma, a população que já tem assegurado alguns privilégios. Você concorda?

– Esse fenômeno da retomada recente do carnaval de rua, ocupando o espaço público da cidade, é um fenômeno que está ligado a alguns fatores. Um deles é a reivindicação do espaço público por esses blocos que resistiam as franjas do Estado que negligenciava ao reprimir os blocos. E esse movimento de resistência, o movimento, muito ligado a setores artísticos, a setores do centro expandido da cidade de São Paulo, alguns bairros conectados com a Universidade, com a USP, por exemplo, na Zona Oeste, com os bairros mais boêmios, como a Vila Madalena, com os bairros que abrigavam artistas, músicos que acabam se organizando afetivamente nos blocos e passavam a realizar esses blocos.

E cria-se então um desses fatores, justamente essa conformação que está ligada a essas camadas médias da sociedade, essas regiões mais ligadas ao centro expandido da cidade de São Paulo. Um outro fator é justamente essa conexão da pauta cultural do carnaval de rua com a pauta do direito à cidade, que também acaba sendo um movimento que é muito vocalizado e liderado pelas camadas médias que passam a se inserir nessa nessa demanda, além das já habituais categorias que já faziam parte dela, como os movimentos de moradia, de saúde e de transportes.

Então isso também cria uma outra conformação que traz essa, esse caráter de um movimento mais de classe média branca e dos centros mais expandidos da cidade. Isso é algo parecido com o Rio de Janeiro, em que também essa retomada do carnaval, que data de 15, 20 anos antes, acontece, mas também por essas camadas médias. Isso é uma inflexão histórica, uma mudança histórica, porque o surgimento do carnaval de rua é eminentemente um surgimento historicamente negro das camadas baixas da sociedade, das regiões que até então eram periféricas.

– A frase de Graciliano Ramos usada no seu livro é emblemática. Dito isso, qual a capacidade moral das últimas gestões da prefeitura de São Paulo?

– A capacidade moral da Prefeitura de São Paulo hoje, considerando o carnaval como métrica, é uma capacidade negativa, uma anti-capacidade moral. Por que a Prefeitura de São Paulo passou nessas últimas gestões, a partir de 2017, mas muito fortemente até agora, com o Ricardo Nunes, a enxergar o carnaval como um óbice, como um empecilho, como algo que atrapalha a cidade e não como um ativo e uma riqueza da sua cultura como era antes na gestão Haddad. A prefeitura tem uma visão de cidade que extirpa a cultura da vida pública. A prefeitura atual entende a cidade com aquelas máximas clássicas da direita de que a cidade deve ser voltada para a propriedade, para a vivência privada nos espaços privados e não públicos. A máxima do que o recrudescimento policial é o principal fator de segurança pública, quando a gente sabe que não é. A máxima de que a cidade tem que ser, tem que ter o máximo de ordem e normatização nos espaços para evitar, entre aspas, desordem e transtorno.

Quando na verdade, o que a cidade mais precisa é justamente ser ocupada, ser vivida, ter uma outra vida além daquela vida ordinária que a cidade tem, mas uma vida mais alegre, com mais sociabilidade, com mais alegria, com mais amizade, com mais comunhão. Então, o que acontece hoje é que o carnaval de rua, ele é um emblema muito forte, não só um emblema, uma concretização de um outro tipo de vivência da cidade, uma vivência que é mais amorosa, mais afetiva, que ressignifica os espaços e que propõe uma cidade mais democrática para todo mundo.

A prefeitura atual não quer uma cidade mais democrática, mas quer, como se tem visto em várias outras pautas, na privatização de espaços públicos importantes da cidade, na revisão da lei de zoneamento, na entrega de vários bens da cidade para a iniciativa privada. O que a prefeitura quer é justamente uma visão proprietária, antidemocrática e completamente restritiva da cidade de São Paulo e por isso ela enfrenta o carnaval.

Por isso ela está tentando dissolver a política pública que permitiu o crescimento do carnaval de rua. É por isso que ela tem tratado os blocos com tamanha violência, como se viu nesses, nesse, nesses últimos dias, nesse último feriado de carnaval, agora em 2024.

– Desde as primeiras tentativas de regulamentação, com Erundina, o carnaval de rua tem passado por transformações do ponto de vista legal. Ainda há algo de urgente que precisa ser feito?

– No período Erundina, que foi quando foi inaugurado o Sambódromo em São Paulo, em 1990, que na verdade ocorreu não foi propriamente uma regulação ou uma regulamentação do carnaval de rua. O que aconteceu foi a criação de uma lei do carnaval que dava conta de você legitimar o Estado para que ele pudesse apoiar as manifestações que passariam a acontecer no Sambódromo. Do ponto de vista do carnaval de rua, a única coisa que ali é colocada é a abertura da possibilidade de ter um subsídio para alguns blocos, poucos que eram institucionalizados. Na época, duas associações que convergiam, que abarcavam vários blocos e que tinham essa possibilidade de receber um subsídio pela prefeitura. Então, na verdade, nunca foi uma lei no período da Erundina que deu conta de organizar do ponto de vista do aparato jurídico institucional, a prefeitura para dar conta do carnaval de rua. Ela conseguiu estabelecer as previsões e conseguiu estabelecer o papel do Estado com relação ao Sambódromo e deixou um resquício, um rabinho, que foi esse tratamento residual por o carnaval de rua por meio dessas duas associações que recebem desde então, desde 1990, o subsídio, o dinheiro público da prefeitura. Essas duas organizações, elas têm cerca de 30 blocos, somadas as duas, e elas nem têm a importância política institucional que tinham, como tinham anteriormente, que eram as únicas que representavam porque hoje o universo dos blocos é mais de 600 700 blocos na cidade de São Paulo. E como você explica hoje que existam 700 blocos na cidade de São Paulo e só cerca de 30 recebam dinheiro público direto da prefeitura, sem qualquer tipo de edital de chamamento. Então, isso é algo que precisa ser alterado e precisa ser revisto.

Além disso, a pergunta sobre a questão legal que precisa ser enfrentada está muito ligada à questão de você regular melhor a iniciativa privada, porque ela não tem uma ação tão ostensiva no carnaval, passa por estabelecer procedimentos mais efetivos e mais condizentes com a realidade dos blocos de carnaval para o seu financiamento. A questão do financiamento não é uma questão legalmente bem abordada na política do Carnaval e isso ainda é um buraco, ainda é uma lacuna, e passa também por estabelecer limites mais claros à atuação das forças policiais na cidade de São Paulo, que ainda interpelam os blocos de uma forma agressiva e não protegendo os como deveria acontecer. 

– Como aliar o caráter genuinamente transgressor do Carnaval ao clamor por normas que evitem excessos? (Numa tentativa de agradar as camadas conservadoras da cidade)

– O desafio de fazer uma política pública do carnaval é justamente você criar uma regulação de uma festa que é essencialmente transgressora, mas esse desafio precisa ser enfrentado. Por quê? Porque pular carnaval é um exercício de direitos. Mas quando você exerce esses direitos, você entra em conflitos, em colisão com outros direitos que são igualmente vividos no ambiente urbano. A segurança pública. A questão da mobilidade, a questão do conforto acústico e várias questões relacionadas aos direitos de propriedade e vários outros pontos. Esses direitos não deixam de existir, mas eles também não podem impedir que o direito cultural da liberdade de expressão cultural no carnaval aconteça.

A política pública serve justamente para encontrar um ponto ótimo entre o exercício do direito ao carnaval e a preservação desses outros direitos. E no carnaval se dá o momento privilegiado de realização do direito a folia. Fora do carnaval. Esse direito não é exercido enquanto os outros continuam sendo. Então, o sopesamento de direitos é fundamental. Isso se dá não judicialmente, mas se dá antes através de uma ação do poder público, por meios de política pública que reduzem impactos, que mitigue danos e que possa organizar a cidade.

Para fazer isso, posso organizar os serviços públicos, posso organizar o trânsito, possa organizar a informação para a população e, dessa maneira, é possível compatibilizar. Uma má gestão da prefeitura, uma má gestão da política do carnaval e uma má gestão desses direitos todos que são conciliáveis num ambiente urbano. O que a gente tem é que o carnaval é um direito e precisa de prestações do poder público, de organizar serviços para estacionar.

Mas também é uma liberdade. Então você também tem que ter a retirada do poder público, uma ação omissiva que é de não interferir na liberdade, não bloquear, não obstruir, não reprimir. Essas duas dimensões do exercício carnavalesco devem ser igualmente atentidas. Então, esse desafio que está colocado é plenamente concretizável. Isso se dá em várias outras capitais brasileiras há muitas décadas.

Não é uma novidade, não é uma anomalia, não é algo inédito. Muito pelo contrário, é uma manifestação cultural tão enraizada socialmente como o carnaval, isso deve ser um padrão, uma regra, e isso deve acontecer em todos os lugares em que existe carnaval. Então não tem nada que seja inusitado. Aqui tem a conformação de uma política pública. 

A única diferença é que você está elaborando, formulando, implementando uma política pública com um evento que é típico e atípico ao mesmo tempo. Ele é típico porque ele acontece todo ano e já está no nosso calendário cultural, que é o carnaval, e ele é atípico porque ele tem que ser pensado por uma forma atípica de viver a cidade de uma forma que não é habitual, que não é ordinária. Então, diferente de outras políticas sociais e setoriais em que você faz políticas para aquilo que é que pode ser padronizado, linhas de ônibus que são regulares, frequentes, horários que são padrão, atendimentos que têm um horário estabelecido porque o fluxo se dá naquele horário, você está fazendo justamente para um momento da cidade, que é o momento mais atípico, o momento inabitual, mas não deixa de ser o cumprimento de um direito. Tem que ter uma política pública para isso.