Fernanda Otero

O processo que ficou parado correndo sob sigilo absoluto revela fatos sobre um acordo de delação premiada firmado em 2004. Os autos, que somariam quase 7 mil páginas, possuem provas dos excessos cometidos. “Eu acredito que esse cenário é um quadro de restauração da normalidade, com os atores assumindo seus papeis”, aponta Eugênio Aragão. “No Brasil, temos uma delação premiada às avessas. O sujeito está se delatando, não em relação à chamada organização criminosa, e sim em relação ao Estado. Ele teme o Estado, não a organização criminosa”.

Na última semana, o ministro do Superior Tribunal Federal (STF), Dias Toffoli, acatou os pedidos da Procuradoria Geral da República (PGR) e da Polícia Federal (PF) e autorizou a abertura de um inquérito contra o ex-juiz e atual senador Sergio Moro para investigar os relatos do ex-deputado estadual Tony Garcia, do estado do Paraná, sobre um acordo de delação premiada fechado no caso do Banestado. O acordo teria sido firmado em 2004 e foi rompido em 2018.

A suspeição que paira sobre Sergio Moro, quando juiz do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4), teria obrigado Garcia a realizar um determinado número de gravações de conversas com juízes e ministros do Superior Tribunal de Justiça (STJ). Além das escutas ilegais, ele teria forjado testemunhos, sempre seguindo as orientações de Moro e ex-procuradores. O processo ficou sob sigilo até que um juiz federal o enviou para o STF, em 2023.

Para conversar sobre o impacto da decisão para as instituições legais do país, o jurista e ex-ministro da Justiça, Eugênio Aragão, conversou com a reportagem da Focus. Aragão foi ministro da Justiça no governo Dilma Rousseff. É professor titular de direito internacional na Universidade de Brasília. Foi um grande crítico à Operação Lava Jato, argumentando que ela prejudicava a economia brasileira. 

O advogado ingressou no serviço público em 1980, construiu uma carreira significativa no Ministério Público Federal, ocupando diversos cargos. Também atuou como advogado nas campanhas presidenciais de Luiz Inácio Lula da Silva em 2018 e 2022. Abaixo, trechos da entrevista concedida a Alberto Cantalice e Fernanda Otero.

Focus: Quando o senhor tomou posse como ministro, uma frase marcou o seu discurso: “Não existe ninguém nesse país com o monopólio da moralidade”. Como o senhor avalia as recentes notícias sobre a decisão do ministro Dias Toffoli de abrir inquérito contra Sérgio Moro?


Eugênio Aragão: Eu acho que isso é o corolário natural de tudo que tem sido revelado ao longo dos últimos três, quatro anos, a respeito da Lava Jato. Desde que começaram a ser reveladas as conversas entre (Deltan) Dallagnol e a equipe da Lava Jato com o juiz Moro, até o momento em que o Juiz Moro decidiu deixar a magistratura para se tornar Ministro da Justiça, tudo aquilo perdeu credibilidade. Não era a primeira vez que um magistrado deixava a magistratura em condições bastante delicadas para se tornar ministro de um governo. Vale lembrar que o ministro (Francisco) Rezek, que foi presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) nas eleições do Collor e Lula em 1989, assim que Collor foi empossado, foi nomeado Ministro das Relações Exteriores, abandonando o Supremo Tribunal Federal para ocupar um cargo no governo do presidente a quem ele deu ganho de causa em um conflito com o outro.  Ou seja, o Rezek, de certa forma, ultrapassou a linha vermelha. Mais tarde, com o ocaso do governo Collor e, de maneira ainda mais grave, ele foi nomeado novamente Ministro do Supremo Tribunal Federal. 

Então, o Rezek foi ministro do STF em duas ocasiões, nomeado duas vezes. Há pessoas que foram convidadas duas vezes e recusaram, como o Luiz Carlos Sigmaringa Seixas, e há pessoas que foram nomeadas duas vezes. Portanto, o Rezek já deu um mau exemplo, que o Moro seguiu. No entanto, o caso do Moro era muito mais grave, pois Moro era o juiz criminal contra o Lula, enquanto o Rezek nunca tratou diretamente de nenhuma ação de acusação contra o Lula, ele era o presidente do TSE.

Moro fez isso, e fez isso nas vésperas da eleição, ainda divulgando uma suposta delação de (Antonio) Palocci. Demorou, a meu ver, para a ficha cair no Supremo Tribunal Federal, para realmente perceberem que estavam sendo engambelados pelo juiz de primeira instância. Na segunda instância, o TRF4 nunca fez a sua mea culpa. Aqueles três que confirmaram a sentença condenatória do Moro no caso do Guarujá, nunca se manifestaram, nunca pediram desculpas. O ministro Félix Fischer, responsável pelo caso no STJ, não teve essa oportunidade porque se aposentou, já muito doente, por volta dos 75 anos, e saiu da vida pública. Nunca tivemos nas outras instâncias, alguma correção de rumos como estamos vendo agora no Supremo Tribunal Federal. 

O fato de ser o ministro Toffoli atuando neste caso, para  mim indicam duas coisas. A primeira é que o ministro Toffoli é o “sucessor” como relator, do ministro Lewandowski, isso é significativo.

A segunda, me parece que Tofolli, de alguma forma, chama para si a solução do problema, pois foi ele quem, como presidente do STF, protelou por mais de um ano, a pauta do pedido de habeas corpus que permitia a soltura de Lula, resultando nos 580 dias de prisão do Presidente. 

Eu acredito que esse cenário é um quadro de restauração da normalidade, com os atores assumindo seus papéis, e considero que é mais do que oportuno que isso aconteça. Acredito que o mesmo deve ocorrer no Conselho Nacional de Justiça (CNJ), pois Moro pediu exoneração e saiu impune. Se ele ainda fosse juiz, estaria provavelmente enfrentando um processo de demissão. No entanto, nada impede, na minha opinião, que o CNJ inicie um processo para retroativamente converter a exoneração em demissão, e acho que isso deve acontecer, espero que aconteça, enquanto não haja prescrição.

O senhor poderia explicar melhor este processo no Conselho Nacional de Justiça?

Em primeiro lugar, a exoneração é um ato voluntário ou involuntário de dispensa de alguém, não trazendo nenhuma censura; a pessoa simplesmente se desligou do serviço público ao se exonerar. Já a demissão, não; a demissão é uma pena. O servidor público demitido a bem do serviço público, não pode mais ocupar cargo público, configurando-se como uma penalidade. Isso implica que, por exemplo, se a demissão for decidida após o servidor se aposentar, ela pode acarretar a cassação de sua aposentadoria. Portanto, é uma pena, e essa é a diferença. O CNJ pode, sim, abrir um processo, ainda dentro do prazo prescricional, para apurar o dolo, de um fato da época em que ele era juiz e retroativamente aplicar as consequências disso. Dizer “não, você não poderia ter se exonerado, você será demitido a bem do serviço público”, isso é algo possível. 

Agora, o CNJ é uma instância administrativa, não judicial. Ela só atinge magistrados que estão submetidos ao Supremo Tribunal Federal, segundo jurisprudência da corte. O Supremo entende que os ministros do STF não estão sujeitos ao CNJ, pois, na Constituição, o Supremo está acima do CNJ. Portanto, o Supremo não pode ser alvo de ação do CNJ, segundo a jurisprudência do Supremo. Isso é muito controverso, mas o que vale é a palavra da última instância, a instância que interpreta a Constituição, então está feito, é isso.

O CNJ não cuida dos ministros do Supremo; quem cuida deles é o Senado Federal, em caso de impeachment. Eles têm outra instância para cuidar de sua disciplina. 

O órgão é essencialmente disciplinar. Ultimamente, com a ministra Rosa Weber na presidência do Supremo, tem havido um aumento significativo de processos disciplinares, principalmente por manifestações políticas de juízes, com toda a razão. Não posso discordar disso, apesar de ter defendido alguns juízes, um deles, inclusive, que entendi que o fato imputado era um ato jurisdicional não sujeito ao controle do CNJ, pois o CNJ só controla atos administrativos, não jurisdicionais. Juízes são independentes, e atos jurisdicionais devem ser revistos através dos recursos próprios na própria justiça. Essa foi uma tese que levantei em casos que atuei recentemente, defendendo juízes em processos no STF. 

A verdade é que o CNJ tem sido rigoroso em relação a manifestações explícitas dos magistrados, seja de direita ou de esquerda. O magistrado não deve fazer manifestação política. Ele pode, como cidadão, ter princípios e convicções, mas não deve trazê-los à baila, pois pode confundir as partes na confiança da interpretação jurisdicional. Esse é o princípio que hoje está cristalizado no CNJ. O CNJ e o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP)  são órgãos com uma carga corporativa, pois sua maioria é formada por juízes e membros do Ministério Público, com pouca gente de fora. Há pouca participação externa, sendo quase um controle interno desses órgãos. Isso é um debate que já foi feito na época da Emenda Constitucional 45, da reforma do Judiciário. Esse é o panorama desses dois órgãos de natureza administrativa e disciplinar.



A delação premiada, uma das principais ferramentas da Lava Jato, continua prestigiada? 


A Constituição é bastante clara no artigo 5º ao estabelecer que todo erro judiciário deve ser indenizado. O problema reside no Judiciário reconhecer seu próprio erro; esse é o impasse. Acredito que o Supremo está caminhando nessa direção de reconhecer o equívoco. Com isso, o presidente Lula poderá ingressar com uma ação de indenização. A vontade dele sobre o assunto é outra questão, algo pessoal, mas considero pedagógica é necessária essa ação. A União certamente não enfrentará isso sozinha; entrará com a ação regressiva para que Moro e os envolvidos na Lava Jato assumam a responsabilidade financeira. Caso o presidente Lula decida posteriormente doar esse valor para uma instituição, é um problema que ele resolverá. No entanto, parece mais do que conveniente que essas pessoas arquem pessoalmente, com consequências patrimoniais de suas ações.

Para mim, o grande erro de tudo isso está na própria Lei 12.850, infelizmente uma obra dos nossos governos. Essa lei, que trata da investigação de organizações criminosas, foi gestada dentro da Estratégia Nacional de Combate à Corrupção e Lavagem de Ativos (ENCCLA). A meu ver, essa estratégia foi mal feita. Participei da ENCCLA como representante do Ministério Público algumas vezes, a pedido do Dr. Laudis Valteres e, posteriormente, do Dr. Antônio Fernando. No entanto, devo afirmar que a ENCCLA foi construída com base no corporativismo já que foram convidadas para participar não apenas instituições, mas sim suas corporações. Isso a transformou em uma “intersindical”, e sabemos que essas corporações adotam atitudes de alto risco para a administração, buscando alavancar-se em termos de poder e ganhos pessoais. Quanto mais temidas e respeitadas forem, melhor serão os ganhos de seus membros em suas respectivas carreiras. Parece-me que a ENCCLA foi construída de maneira inadequada, e o resultado foi desastroso. A Lei 12.850 é um desastre!

Em primeiro lugar, a definição de organização criminosa contida nessa lei é tão aberta que abrange qualquer coisa. Costumo dizer que até a loja de tecidos do Sr. Salim, no Saara do Rio de Janeiro, caberia nela. A loja do Sr. Salim é composta por quatro pessoas: o Sr. Salim, que cuida dos livros; a filha, que atende os clientes; a esposa, responsável pelo caixa; e o filho, encarregado das entregas. A loja possui alvará de fiscalização da Prefeitura do Rio de Janeiro, está estruturada, possui divisão de trabalho, mas não recolhe ICMS. Nessa lógica, pode-se dizer que é voltada para uma prática criminosa, já que não emite nota fiscal nem recolhe impostos. Portanto, a conclusão é que a loja do Sr. Salim é considerada uma organização criminosa. A partir dessa constatação, é possível interceptar conversas telefônicas, interferir na comunicação de dados, prender o Sr. Salim e exigir que ele faça uma delação premiada, entre outras ações. E isso vale para tudo, desde igrejas até partidos políticos, qualquer coisa pode ser enquadrada como organização criminosa. 

Parece-me que uma definição tão ampla de organização criminosa para empoderar o MP, é um equívoco, pois usaram elementos da convenção de Palermo. Por exemplo, na Itália, apenas dois tipos de organizações criminosas são reconhecidas: as mafiosas e as terroristas. Isso foi feito durante as operações contra a máfia e também devido a problemas com a Brigata Erode. Assim, organização criminosa, na Itália, se refere apenas a esses dois tipos de organizações. E por quê? Porque o delator, o arrependido, é um condenado pela própria organização, seja ela terrorista ou mafiosa, e está correndo risco de vida. Ele pede socorro à polícia para preservar sua vida, e a polícia o ajuda prendendo as pessoas que o ameaçam, uma mão-lava a outra. Existe uma razão humanitária por trás disso. 

O que acontece no Brasil? O indivíduo não vai à polícia porque está em perigo de vida, mas porque deseja manter seu padrão de vida e teme que a polícia e o Ministério Público congelem seus bens, tomem suas empresas e prejudiquem sua imagem. O sujeito está se delatando, mas não em relação à chamada organização criminosa, e sim em relação ao Estado. Ele teme o Estado, não a organização criminosa. Isso é o princípio italiano às avessas, e isso levou a uma situação onde a delação premiada passa a ser uma forma de extorsão, um completo equívoco.


Queria que o senhor comentasse, na sua experiência, que elementos refutam a hipótese de que o relato desse ex-deputado seria fantasioso? Podemos esperar que em algum momento, o ex-juiz seja preso?

Quanto à primeira questão, todos os relatos envolvendo Sérgio Moro e as pessoas que compuseram aquele grupo, estão corroborados com outros fatos que vieram a lume nos processos em que eles atuavam. Em outras palavras, o que foi originalmente discutido em conversas secretas foi posteriormente adotado em práticas públicas e abertas.

Portanto, torna-se bastante difícil negarem, tanto que eles não contestam mais a veracidade desses relatos ou diálogos. 

Em relação aos relatos de delatores que se retratam, parece que essas situações se encaixam perfeitamente dentro desta materialidade. Isso significa que, conforme evidenciado pelas conversas, havia abusos que se concretizavam em delações extorquidas das pessoas, em alguns casos, resultando em prisões de familiares, como vimos recentemente, em relação à filha do ministro José Dirceu…

que inclusive, apresentou mais um pedido sobre a suspeição de Moro…

Exatamente, ali vimos claramente que foi uma armação para colocar o José Dirceu de joelhos. A forma mais intensa de tortura para qualquer um de nós é mexer com nossos entes queridos. Cada um de nós é capaz de aceitar as consequências de nossos próprios atos, ou seja, quando estamos envolvidos na política e consideramos certas pessoas como inimigas, sabendo que estamos em um campo de batalha, podemos aceitar os riscos pessoais. O que não é aceitável é que nossos entes queridos se tornem alvos nesse conflito, e isso aconteceu com vários familiares de petistas. No caso do Lula, é ainda mais evidente. Seus filhos, a Marisa, e todo o círculo próximo foram envolvidos nessa sujeira. Parece que essa prática era recorrente, e o mais grave é que ela era abençoada por quatro instâncias. Isso é profundamente alarmante e lança dúvidas sobre a consistência da nossa justiça, pois testemunhamos quatro instâncias agindo de maneira similar em relação aos alvos da Lava Jato.

Ir para a prisão é uma coisa, ser condenado é outra. Primeiramente, os meios recursais no Brasil são extremamente amplos, e ele, hoje senador, será julgado pelo Supremo, juntamente com aqueles que cometeram crimes em conluio com ele, serão levados para o STF Inclusive, (Deltan) Dallagnol e outros procuradores que eventualmente corroboraram ou agiram em conjunto com Moro também serão julgados pelo Supremo enquanto Moro for senador. Se Moro for cassado pelo TRF do Paraná, então, em tese, o processo será enviado para a primeira instância.

A questão a ser considerada é como isso será tratado na primeira instância, sabendo que esse foi o principal teatro da Lava Jato. A pergunta fica no ar: se Moro for cassado, para onde irão esses processos? O Supremo Tribunal Federal interpretou de maneira muito restritiva a questão do foro privilegiado a que fazem juz autoridades, alegando que ele só detém essa prerrogativa para julgar autoridades. Portanto, se Moro for cassado, não importa se os crimes foram cometidos durante seu mandato, a competência provavelmente seria do TRF-4, o que seria, na minha opinião, a pior solução possível.

Não podemos prever exatamente o que acontecerá; no entanto, se Moro continuar exercendo seu mandato pelos oito anos previstos na Constituição, parece que poderá haver sanções mais graves em relação a ele e àqueles que conspiraram com ele contra interesses nacionais e a economia brasileira, sem dúvida.

Mudando um pouco esse eixo, você que tem uma longa trajetória no Ministério Público Federal e também conhece bastante o direito penal e criminal, você não acha, que com essa crise da segurança pública no Brasil, não há um descumprimento do Ministério Público, dos Estados, o Ministério Público no controle externo da atividade policial? Não há inércia dos Ministérios Públicos, de deixar as forças policiais agirem sem um controle, sem efetivamente exercer esse controle externo que a Constituição comanda? 


Sobre o controle da atividade policial, gostaria de dizer que esse controle é um engodo. Explico: a constituição, apesar de ter colocado o controle externo da atividade policial,  como uma das funções do Ministério Público Federal, não se efetivou como esperado. As leis orgânicas aprovadas no Congresso e nas Assembleias Legislativas enfrentaram resistência dos policiais, resultando em um esvaziamento significativo do controle externo da atividade policial. As leis não fornecem ao Ministério Público os instrumentos necessários para exercer essa função. Mesmo a criação da 10ª Câmara pelo Ministério Público Federal para tratar desse controle externo não resolve totalmente a questão, dada a complexidade e a resistência interna corporativa entre MP e as polícias. Isso dificulta o acesso do MP a dados policiais. 

Esse sistema de colocar o Ministério Público como controlador da polícia não funcionou no Brasil. Pessoalmente, vejo de maneira positiva que o Ministério Público não tenha mais esse poder, pois, ao assumir funções da polícia, poderia se tornar uma corporação de “meganhas”, o que seria extremamente prejudicial. Acredito que o Ministério Público não deve controlar a polícia, mas sim, colaborar com ela. E quem deve controlar a polícia? O controle deve ser exercido pela sociedade civil, um modelo mais legítimo e eficaz aplicado em qualquer país civilizado. 

Poderíamos ter conselhos da polícia, tanto nacional quanto estadual, compostos por professores universitários da área da criminologia, organizações de direitos humanos, igrejas, empresários e membros da polícia. Esses conselhos, com mecanismos próprios de poder, teriam autoridade para até mesmo punir na esfera administrativa. Isso seria muito mais eficaz do que entregar para uma instituição que tem uma relação conflituosa permanente por razões corporativas, e não de princípios. 

Além disso, considero equivocada a ideia do Ministério Público assumir a investigação criminal. Meu pai costumava dizer, dentro de sua forma sertaneja: “meu filho, quem mexe com merda acaba sujando as mãos”, expressão que considero apropriada nesse contexto. Em vez disso, o Ministério Público deveria receber o processo da polícia e fazer um filtro, avaliando o trabalho policial durante o inquérito. O judiciário, por sua vez, faria uma revisão subsequente para verificar a validade do que foi apresentado pelo Ministério Público. Se houver qualquer vício no processo, existe uma segunda instância, além das instâncias sucessivas, o controle do controle. Aqueles que deveriam controlar acabam se envolvendo diretamente no processo, comprometendo a imparcialidade. 

Esse controle do Ministério Público sobre a polícia não é eficaz, e o Ministério Público não deve ter o poder de investigação. Apesar de o Supremo Tribunal Federal, com o voto do Ministro Celso de Mello, ter decidido que o Ministério Público, em casos extraordinários, poderia investigar, a ausência de critérios claros para definir o “extraordinário” é um ponto a ser considerado. A auto investigação, por exemplo, é permitida ao Ministério Público quando um membro pratica um crime, mas negada à polícia. Esse privilégio unilateral é questionável, sugerindo a necessidade de criar uma instância da sociedade civil para exercer o controle social sobre a polícia, algo mais crucial do que conceder amplos poderes ao Ministério Público.

O que você achou da indicação do ministro Ricardo Lewandowski para ocupar o posto de ministro da Justiça, cargo que você já ocupou, em substituição ao Flávio Dino?

Eu considero que foi uma escolha natural, completamente natural. Primeiramente, porque o ministro Lewandowski é, sem sombra de dúvida, o ministro em quem o presidente Lula deposita sua maior confiança. Essa confiança remonta aos tempos de militância sindical em São Bernardo, quando o presidente Lula foi preso e a família do ministro Lewandowski o acolheu enquanto ele fugia da polícia da ditadura militar. Existe, portanto, uma relação bastante antiga entre eles. Quando soube que o ministro Lewandowski seria indicado, só pude aplaudir, e isso por várias razões. Não apenas pela ligação pessoal, mas também pelo perfil corajoso que o ministro Lewandowski demonstrou ao longo dos anos, enfrentando a mídia mainstream dentro do Supremo sem receios.

Ele sempre teve uma postura crítica em relação à caça às bruxas direcionada à esquerda brasileira, desde os tempos do mensalão, quando teve discussões sérias com o então ministro Joaquim Barbosa. Assim, considero que o ministro Lewandowski, naturalmente, deveria ocupar o cargo, levando em consideração não apenas sua vasta experiência como ministro do Supremo, presidente da Suprema Corte e presidente do CNJ, mas também sua atuação como professor universitário da USP. Ele é um estudioso, alguém com um perfil adequado. Portanto, enxergo que o comprometimento dele com as questões jurídicas e sua postura fazem dele um perfil perfeito para assumir o cargo de ministro da Justiça do Presidente Lula.

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