A tragédia climática no Rio de Janeiro
Aercio Barbosa de Oliveira
As chuvas torrenciais dos dias 13 e 14 de janeiro, na região metropolitana do Rio de Janeiro, mostram os múltiplos fatores responsáveis por mortes, prejuízos materiais e traumas psicológicos. Contudo, as 12 mortes registradas até o momento, provocadas pelas enchentes, colocam em relevo a segregação socioterritorial nas metrópoles brasileiras. São as pessoas com pouco poder de influenciar o sistema político e com rendimento baixo, às vezes incerto ou sem nenhum, as mais penalizadas pelos eventos climáticos extremos. E sabemos que as mais expostas têm a pele negra, são crianças e idosas.
O número maior de óbitos ocorreu em municípios da Baixada Fluminense, oito mortos. Na cidade do Rio de Janeiro, três mortos viviam em bairros populares: Acari, Ricardo de Albuquerque e Estrada de Botafogo. Não foi identificado o local de moradia de uma das vítimas.
Independentemente do volume de chuva, cada vez maior com a alteração do clima, quem mais sofre vive em bairros e cidades cujo sistema de macro, meso e microdrenagem, de tratamento de esgoto e de coleta de lixo, não existem ou funcionam mal; o padrão construtivo das residências é precário; não há estrutura de contenção de encostas ou qualquer outra iniciativa consistente para enfrentar os eventos climáticos extremos. Para agravar os efeitos das chuvas torrenciais, as residências ficam próximas às margens dos rios.
Sobra descaso onde falta moradia
No caso dos municípios da Baixada Fluminense, a maioria das famílias vive em áreas loteadas para moradia a partir das décadas de 1950, 1960 e 1970. Loteamentos, que antes eram glebas que serviam à produção agrícola, regularizados pelo poder público inadequadamente. Para autorizar a venda desses loteamentos seria necessário um trabalho prévio de instalação de infraestrutura, no mínimo, de macrodrenagem considerável. Isso já se mostrava necessário antes mesmo do aquecimento climático.
Boa parte desses loteamentos das cidades da Baixada Fluminense estão próximos aos rios ou em áreas de amortecimento das águas que transbordam dos leitos dos rios. Basta ver que as mortes, as famílias mais penalizadas, na Baixada Fluminense, viveram ou vivem próximas aos rios Iguaçu, Botas e Sarapuí, ou próximas a seus afluentes. Esses rios cortam as cidades de São João de Meriti, Belford Roxo, Nova Iguaçu, Mesquita e Duque de Caxias. Deve-se destacar que a maioria dos quase quatro milhões de moradores e moradoras da região reside em loteamentos regularizados, com escritura de propriedade registrada em cartório etc. A região, em termos absolutos e relativos, tem muito menos favelas e comunidades urbanas do que a cidade do Rio de Janeiro. No entanto, se tem, muitas vezes, mais dificuldade em acessar bens e serviços públicos do que muitas famílias que moram em favelas do Rio de Janeiro.
Hoje em dia, o problema de moradia se agrava com o elevado déficit habitacional na região metropolitana fluminense. Muitas famílias saem da capital do estado para morar nas cidades da Baixada Fluminense. Sem uma política habitacional vigorosa, grupos de milicianos, numa relação com as prefeituras e câmaras de vereadores, negociam a venda de terrenos em áreas impróprias para moradia. Fato que agrava o risco de tragédia com os eventos climáticos extremos. Muitos desses loteamentos ficam em áreas sujeitas a enchentes.
O fato é que, como muitos moradores e moradoras declararam, lugares que não enchiam passaram a encher – e onde as enchentes ocorriam, o volume de água aumentou proporcionalmente à tragédia. Nesse sentido, uma nova questão precisa ser adicionada às propostas de adaptação aos eventos climáticos extremos: a distribuição e o uso dos recursos públicos nos orçamentos.
Políticas públicas e ação popular
Para atenuar a tragédia, por exemplo, em lugares como os dos bairros populares das cidades da Baixada Fluminense, é preciso investir uma quantidade de dinheiro vultosa, na combinação de diferentes políticas públicas. Provisão de moradia, regularização fundiária, suporte técnico para a melhoria do padrão construtivo, implantação do sistema de drenagem nos bairros, desassoreamento das calhas dos rios, ampliação dos sistema de bombeamento das áreas de amortecimentos das águas extravasadas dos leitos dos rios (Como exemplo temos o sistema de bombeamento no canal do Outeiro, no bairro Lote XV, em Belford Roxo, que faz divisa com Duque de Caxias. Esse sistema de bombeamento, que agora funciona precariamente, foi instalado durante a execução do projeto de macrodrenagem da Bacia do Rio Iguaçu, na década passada), criação de áreas de extravasamento das águas dos rios, recuperação dos taludes das margens dos rios etc., seriam valiosas medidas estruturantes. Isso apenas para a realidade da Baixada Fluminense, que deveria retomar as obras de macrodrenagem da bacia do Rio Iguaçu e realizar novas obras em suas outras bacias hidrográficas. Nas demais cidades da região metropolitana fluminense é necessário, além de medidas similares, colocar estruturas de contenção de encostas.
Para executar todas essas obras, é necessário alterar a distribuição dos orçamentos públicos Federal, Estaduais e Municipais. Não é possível realizá-las tendo quase metade do orçamento público Federal, o ente da Federação que mais concentra impostos e tributos arrecadados no país, comprometido com o pagamento de títulos da dívida pública. Uma transferência brutal de recursos da população ao sistema financeiro, a famílias ricas e abastadas etc. Evidentemente que não podemos ignorar o uso irresponsável e muitas vezes criminoso, com a apropriação do dinheiro, por agentes do poder público. Esta é uma parte do problema importante que precisamos combater, mas não podemos ignorar como os orçamentos são estruturados e executados.
Na página digital sobre o Novo Programa de Aceleração do Crescimento (Novo PAC), o governo Federal anuncia que entre 2023 e 2026 destinará R$10,5 bilhões para todo o Brasil, para obras de prevenção a desastres – contenção de encostas e drenagens. Todo o dinheiro para evitar tragédias é importante, mas é preciso muito mais. É inegável a preocupação do atual governo Lula, sobretudo quando se compara com os valores que o governo anterior destinou para enfrentar as questões relativas aos eventos climáticos extremos. Os valores disponíveis são muito aquém do que é necessário. Para alterar esses valores, e conter tragédias futuras, é preciso rever seriamente a estrutura orçamentária e fiscal. Significa, da perspectiva do campo democrático popular, disputar e pautar os fundos e recursos públicos.
Agora, além das medidas de apoio emergencial e de reparação às famílias que perderam seus bens, ou tiveram a morte de seus familiares, é preciso uma grande mobilização dos poderes públicos para tomar medidas estruturantes, com políticas de adaptação, capazes de conter tragédias futuras. Infelizmente, todos os estudos mostram que esses tipos de eventos climáticos se acentuarão recorrentemente, com intervalos menores. E do nosso lado, é preciso ampla mobilização e pressão sobre o sistema político formal, cada vez mais imediatista e ignorante à gravidade da fervura climática e suas consequências.