Marco Piva

No início de dezembro do ano passado, quatro crianças, entre elas um bebê de cinco meses, foram mortas por engano na periferia de Guaiaquil, a cidade mais importante do Equador. Um crime bárbaro que comoveu o país. Os autores invadiram uma casa a mando de um líder do tráfico local, com a ordem de matar um adversário e quem ali estivesse. Procuravam inimigos, mas encontraram crianças que foram mortas ao tentarem se esconder.

Este caso aconteceu poucas semanas após a posse do novo presidente Daniel Noboa, que assumiu em 23 de novembro prometendo colocar em prática o Plano Fênix, um dos principais motes da sua campanha e que contribuiu muito para a sua vitória.  Em uma disputa marcada pela violência política, cujo ápice foi o assassinato à luz do dia do candidato populista Fernando Villavicencio, Noboa galvanizou o sentimento popular que exigia “mão dura” contra o crime.

A vitória apertada sobre a candidata Luisa González, representante do ex-presidente Rafael Vicente Correa Delgado, atualmente exilado na Bélgica, mostrou um país dividido como tantos outros da América Latina.

Sete semanas após a sua posse, Noboa enfrenta a eclosão de uma onda de violência que percorre a nação inteira e desvenda um cenário que era altamente previsível. De um dos países mais seguros do continente, atrás de Costa Rica, Cuba e Uruguai, o que o mantinha como destino importante do turismo de aventura, o Equador é hoje um território proibido, onde seus habitantes temem sair às ruas para as coisas mais triviais do cotidiano.

Não é preciso ir longe para saber quais são as causas do atual cenário de terror.

De 2007 a 2017, o país viveu sob a presidência de Rafael Correa, que implementou uma política voltada para a diminuição da pobreza, com programas sociais em vários setores. O “buen vivir”, modo de vida dos povos originários dos Andes em sua relação com a natureza, ganhou destaque no enfrentamento de um sistema predatório da soberania nacional, que teve na dolarização da economia o seu ponto alto.

O Equador, a exemplo de vários países latino-americanos, é dependente da exportação de produtos primários, especialmente da banana, que abastece boa parte do mercado mundial. O petróleo, outra fonte de riqueza natural, garante a outra parte dos ingressos. Ao buscar fortalecer as políticas sociais para minimizar o drama da desigualdade, Correa mexeu no vespeiro de uma elite que nunca foi incomodada por trocas de mando presidencial, a não ser por episódios de insurreições populares ou militares mal sucedidas.

Com as forças de segurança e o judiciário novamente sob controle dos conservadores, o destino de Correa se expressa hoje em um exílio europeu, embora a resistência de seus seguidores se mantenha forte, inclusive na Assembleia Nacional, de formato unicameral, onde possui maioria entre os 137 deputados.

Fatores internos interromperam a sequência de governos do movimento Revolução Cidadã. Um deles foi a traição de Lenín Moreno, eleito sob as bençãos de Correa, mas que logo após a posse, mudou  de lado, abandonou os programas de inclusão social e iniciou com a Fiscalía (o MPF local) uma perseguição implacável contra o ex-presidente e seus seguidores.

Lenín Moreno pagou um alto preço pela sua traição e terminou o mandato rejeitado pela população. Este vazio deu lugar à eleição do banqueiro Guillermo Lasso, que retomou com força a bandeira da privatização total do Estado, o que agravou a miséria e deu a largada para o aumento da violência urbana. Se no último ano de gestão de Rafael Correa o Equador apresentava uma taxa de 5,5 homicídios por 100.000 habitantes, esta cifra começou a crescer até atingir os atuais 43 homicídios por 100.000 habitantes.

Um fator externo importante agravou o quadro de insegurança pública. Colômbia e Peru, países que concentram a produção da maior parte da cocaína consumida no mundo, iniciaram fortes ações de combate ao narcotráfico, bloqueando as rotas de exportação. Este movimento governamental, saudável do ponto de vista local, deslocou o transporte da droga para o Equador, já vulnerabilizado pelas gangues que se alastravam pelas periferias diante da miséria crescente. As duas maiores cidades do país – Guaiaquil (em português) e a capital, Quito – passaram a ver um crescimento exponencial da violência urbana, com a criação de gangues que disputam o  controle do escoamento da cocaína.

Os cartéis mexicanos, senhores absolutos do tráfico internacional, praticamente terceirizaram essas organizações criminosas equatorianas. Como a moeda corrente do país é o dólar, a lavagem de dinheiro fica simplificada e o poder de corromper os agentes públicos cresce. Assim, parte do comando das forças de segurança e setores do Judiciário foram cooptados pelo tráfico, permitindo que a cocaína circulasse pelo país de maneira relativamente fácil. O esquema é simples. O transporte é feito pelos portos juntamente com a banana, a famosa “coke banana”.

Após a eclosão da crise de violência urbana, iniciada com a fuga espantosamente fácil de um dos maiores líderes da facção criminosa do país, o presidente Daniel Noboa colocou as tropas das Forças Armadas nas ruas, em uma  espécie de “GLO” aprovada pelo Assembleia Nacional, e iniciou uma verdadeira caça aos “cabecillas” (líderes) de pelo menos 19 facções, oferecendo polpudas recompensas.

Uma medida aprovada ainda na gestão de Lenín Moreno permite ao governo pedir apoio de forças internacionais em caso de grave ameaça à estabilidade nacional. Não é preciso pensar um segundo para saber de quem viria essa ajuda. Washington se anima em executar um plano militar aproveitando a presença de suas bases ainda instaladas em território colombiano.

A medida de exceção assinada por Noboa obteve o apoio do ex-presidente Rafael Correa e da maior parte das forças políticas equatorianas. O momento é de união nacional, mas a pergunta é: qual será a capacidade real das forças de segurança darem um combate efetivo às facções criminosas que se espalharam pelo país? E o que pode ser feito para enfrentar a crise econômica que assola a população? São perguntas difíceis de responder porque não bastará eliminar alguns dos principais líderes do crime organizado. O Equador vive a agonia da miséria, do desemprego, da precarização dos serviços básicos de saúde e educação e, principalmente, da falta de perspectiva diante de um Estado contaminado por anos recentes de desmonte das políticas públicas.

Também se trata de um Estado contaminado internamente na medida que vários agentes públicos, em todas as instâncias, estão envolvidos com atividades ilegais. Portanto, a pergunta mais importante é: o que será do futuro do Equador?

O atual presidente foi eleito para um mandato-tampão. Ficará no governo por 17 meses, para cumprir o restante do tempo que cabia ao ex-presidente Guillermo Lasso, que renunciou diante da crise econômica e dos embates com a Assembleia Nacional. Em 2025, os equatorianos deverão dizer qual é o rumo que querem seguir. Hoje, uma pergunta sem resposta.

Marco Piva é jornalista, editor e apresentador do programa Brasil Latino, na Rádio USP, e pesquisador do Centro de Estudos Latino-americanos de Cultura e Comunicação da Universidade de São Paulo (Celacc-USP). Atualmente é coordenador da Comunicação Social da Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (Ebserh), estatal vinculada ao Ministério da Educação.

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