Dezesseis anos separam duas históricas greves no coração de Hollywood e arredores. Uma paralisação de roteiristas de cinema e de televisão que durou de novembro de 2007 a fevereiro de 2008 teve impacto similar ao de grandes estreias:  filmes de grande orçamento foram finalizados às pressas por falta de escritores, séries de TV tiveram suas temporadas reduzidas e até talk shows de grande audiência aderiram à greve.

Neste ano de 2023, os roteiristas foram acompanhados por atores e atrizes em duas greves simultâneas que, embora no mesmo setor de atividade e com pautas semelhantes, foram organizadas por dois sindicatos diferentes. As categorias souberam aliar timing e argumentos para tentar dobrar uma das indústrias de maior poder no mundo e, de quebra, conquistar apoio de uma audiência que tinha tudo para se frustrar com a falta ou o atraso de seus programas e filmes favoritos.

A paralisação dos atores e atrizes terminou há pouco, no dia 9 de novembro, após quase quatro meses. A de escritores foi encerrada antes, no dia 27 de setembro, com duração um pouco maior. Ambas conseguiram conquistas importantes, tendo no centro da pauta de reivindicações um tema que passou da ficção para a realidade com rapidez atordoante: o uso da inteligência artificial substituindo trabalhadores humanos.

Tanto escritores quanto intérpretes conseguiram avançar. Os roteiristas, por exemplo, conseguiram acordar com a poderosa Alliance of Motion Picture and Television Producers (AMPTP), que representa a indústria, a garantia de um número mínimo de redatores nas equipes de programas e filmes. 

A inteligência artificial vinha sendo usada sem reservas pelos estúdios para a preparação de textos, nas chamadas salas de roteiros, fechando as portas para antigas e novas gerações de escritores. Os bots foram batizados de “máquinas de plágio” pelos grevistas, que conseguiram conquistar também o acesso a ferramentas que possam quantificar a presença de inteligência artificial nos roteiros. O acordo prevê o compartilhamento dos processos, se necessário dos códigos-fontes, para o Writers Guild of America (WGA), sindicato da categoria. 

Já atores e atrizes arrancaram o compromisso de que o uso de seus rostos e vozes gerados por IA só pode ocorrer em novas produções caso cada um deles autorize expressamente, e com remuneração. Alterações digitais nas performances também deverão passar pelo crivo dos intérpretes de carne e osso.

O acordo conquistado pelo Screen Actors Guild-American Federation of Television and Radio Artists (SAG-Aftra), sindicato da categoria, prevê também que não se pode substituir figurantes reais por outros gerados pela IA, chamados “réplicas”. Há também cláusulas para o uso dos “atores sintéticos”, que prevê que o uso desses astros sintéticos só poderá ser feito para substituir partes do corpo de atores reais com autorização prévia e remuneração.

Ciente de que a IA é uma tecnologia em expansão e um tanto imprevisível para caber num único acordo coletivo, o sindicato dos atores vai manter reuniões semestrais de avaliação com a associação da indústria. O sindicato ainda arrancou uma cláusula de criação de um fundo de US$ 40 milhões anuais, advindo dos futuros lucros com o streaming, para remunerar os artistas.

 Os acordos das duas categorias também têm cláusulas tradicionais, dos tempos pré-IA, como reajuste salarial. Mas o debate em torno da nova tecnologia ganhou destaque por apontar caminhos para a proteção do emprego num futuro cada vez mais próximo, servindo de referência para todas as demais profissões com chance de sobrevivência.

Talvez essa preocupação comum com o trabalho seja uma das razões para o amplo apoio que as duas greves obtiveram. Pesquisa feita em agosto mostrou que 67% aprovavam a paralisação e, dentre essas, 86% disseram que manteriam o apoio mesmo que a greve interrompesse suas séries ou programas favoritos. 74% se manifestaram contra a substituição de escritores e atores por IA, enquanto 87% aprovavam o direito de artistas receberem cachê por reprises na televisão.

A realização dessa pesquisa demonstra um acerto estratégico do movimento sindical estadunidense. A enquete, que ouviu 1.124 pessoas, foi encomendada pela central American Federation of Labor and Congress of Industrial Organizations (AFL-CIO)ao instituto Data for Progress, que tem em sua diretoria pessoas ligadas ou com serviços prestados ao Partido Democrata. O Data for Progress faz pesquisas de opinião sobre temas que nem sempre encontram guarida na mídia tradicional, como greves e descriminalização do aborto. 

Tendências do sindicalismo norte-americano

A central sindical AFL-CIO completa 68 anos no próximo dia 5 de dezembro. Entre os 73 sindicatos ou federações de abrangência nacional a ela filiados, alguns são bem mais antigos. Junção de duas entidades, a mais velha fundada no final do século 19, a AFL-CIO representa desde categorias associadas aos tempos da Revolução Industrial, até jogadores da liga de futebol americano e de beisebol, músicos e funcionários de museus. 

A central tenta manter-se conectada com os novos tempos e não perder a oportunidade de promover e apoiar movimentos trabalhistas que questionem a superexploração, mesmo que partam de categorias numericamente pequenas ou tidas como “burguesas”, a exemplo das paralisações de funcionários de museus e galerias de arte em 2020 ou, como em 2007 e agora, greves de roteiristas e atores de cinema e TV.

Os cinéfilos mais atentos já devem ter reparado que os filmes produzidos nos Estados Unidos e mesmo no Canadá exibem, ao final dos créditos de elenco e equipes, as logomarcas dos sindicatos SAG-Aftra e WGA, espécie de selo de qualidade das relações trabalhistas. No Brasil, isso provavelmente seria apontado pela grande mídia e pela indústria do audiovisual como ingerência e burocracia excessivas, causadoras de custos impraticáveis.

Quando a greve dos roteiristas e atores estadunidenses já estava em curso, Margot Robbie, a estrela de “Barbie”, cujas filmagens se encerraram antes da paralisação, afirmou a jornalistas: “Eu apoio totalmente todos os sindicatos e faço parte do SAG, eu os apoio absolutamente”. Coisa de cinema? •

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