Em Nova York, Lula recoloca o Brasil como interlocutor confiável e com capacidade de transitar entre diferentes chefes de Estado, afirmando-se com um líder respeitado do Sul Global. Na agenda de encontros, Biden, Zelensky, Scholz, Berset, Abbas, além de reuniões com os dirigentes de organismos multilaterais das Nações Unidas: FAO e OMS

Em Nova York, Lula recoloca o Brasil como interlocutor confiável
PELA PAZ: Depois de muitos desencontros, Lula e Zelensky conversam pessoalmente pela primeira vez em Nova York. Na pauta, a necessidade de reestabelecer o diálogo para colocar um fim ao conflito no Leste EueropeuFoto: Ricardo Stuckert / PR

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva disse em seu discurso, diante dos representantes da comunidade internacional na Assembleia Geral das Nações Unidas, que o Brasil estava de volta ao palco dos líderes globais. Foi aplaudido, elogiado pela escolha dos temas em seu pronunciamento — desigualdade, fome, emergência climática e nova governança global. Mais do que retomar a tradição de interlocutor confiável e com capacidade de diálogo, Lula mostrou que o Brasil conversa com todos, sem preconceitos ou apelos ideológicos.

De fato, sua agenda de encontros em Nova York mostra que Lula  voltou a exercitar o soft power desenhado pela diplomacia brasileira há mais de 75 anos, destacando-se pela abertura ao diálogo construtivo e na busca de consensos. Daí porque é reconhecido agora como um dos principais porta-vozes do Sul Global, exercendo a liderança do G20, do Mercosul e dos BRICS+ — o grupo formado originalmente por Brasil, Rússia, Índia, China, África do Sul e, a partir de janeiro de 2024, Arábia Saudita, Argentina, Egito, Emirados Árabes, Etiópia e Irã.

Em três dias de agenda intensa nos Estados Unidos, Lula esteve reunido com influentes e diferentes chefes de Estado e de governo: Joe Biden (EUA), Volodymyr Zelensky (Ucrânia), Olaf Scholz (Alemanha),  Mahmoud Abbas (Palestina), Alexander Van der Bellen (Áustria), Alain Berset (Suíça), Jonas Gahr Støre (Noruega), Santiago Peña (Paraguai), além dos diretores da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO), Qu Dongyu, e da Organização Mundial da Saúde (OMS), Tedros Adhanom Ghebreyesus, em Nova York. 

Na sua primeira reunião com o presidente ucraniano, Lula falou que deseja ampliar as relações entre os dois países e contribuir para uma solução pacífica para o conflito entre Ucrânia e Rússia, que já dura mais de 18 meses. “Tivemos uma boa conversa sobre a importância dos caminhos para construção da paz e de mantermos sempre o diálogo aberto entre nossos países”, disse Lula. “Ambos os presidentes compreendem agora as suas posições muito melhor do que antes”, disse Dmytro Kuleba, ministro dos Negócios Estrangeiros da Ucrânia. Ele chamou a reunião de “quebra-gelo” e “calorosa e honesta”.

Mauro Vieira, ministro das Relações Exteriores do Brasil, disse que os dois líderes explicaram suas opiniões sobre a guerra e que “não há absolutamente nenhuma discordância”. “O presidente Lula e o presidente Zelensky tiveram uma longa discussão em um ambiente tranquilo e amigável. Trocaram informações sobre os países e a situação do mundo neste momento”, comentou. “Ambos instruíram suas equipes a continuarem em contato e o presidente Lula disse que um representante continuará participando das reuniões do Processo de Copenhague, para discutir possibilidades de paz”.

Com Biden, os encontros giraram em torno de dois assuntos: o mundo do trabalho e transição energética. Brasil e EUA firmaram um pacto histórico pelos direitos do trabalho, numa iniciativa que busca a valorizar os empregos dignos nos dois países e em escala global. “As pessoas que acreditam que sindicato fraco vai fazer com que o empresário ganhe mais, que o país fique melhor, estão enganadas. Não há democracia sem sindicato forte porque o sindicato é efetivamente quem fala pelo trabalhador para tentar defender os seus direitos”, disse Lula.

Biden foi na mesma linha: “Quando eu era criança, na minha casa, meu pai tinha uma expressão. Ele dizia que um emprego é muito mais do que simplesmente um contracheque. É uma questão de dignidade, respeito. De poder olhar no olho do seu filho e dizer: ‘Vai dar tudo certo’”. Lula fez questão de ressaltar que o encontro era histórico, dada as condições da agenda do trabalho. “É a primeira vez em mais de 500 anos da história do Brasil em que você senta com o presidente da República americano, em igualdade de condições, para discutir um problema crônico, que é a questão da precarização do mundo do trabalho”, lembrou.

O presidente dos Estados Unidos avalia como fundamental que trabalhadores e trabalhadoras conquistem melhores remunerações. “Essa ideia está no cerne da minha visão econômica de fazer a nossa economia crescer do centro para fora e de baixo para cima. Não queremos que só uma classe se saia bem. Deixe-me ser claro: sejam os trabalhadores da indústria automotiva ou da área que for, os lucros sem precedentes devem se traduzir em salários mais altos”, disse.

A iniciativa lançada por Lula da Silva e Joe Biden está baseada em seis pilares: 

  1. Ampliar o conhecimento público sobre os direitos trabalhistas e oferecer oportunidades para que os trabalhadores e trabalhadoras se capacitem para defender seus direitos; 

2) Reforçar o papel central dos trabalhadores e trabalhadoras, garantindo que a transição para fontes limpas de energia proporcione oportunidades de bons empregos para todos e todas;

3) Estabelecer com parceiros globais uma agenda centrada em aumentar a importância dos trabalhadores e trabalhadoras em instituições multilaterais como o G20, COP 28 e a COP 30;

4) Apoiar e coordenar programas de cooperação técnica relacionados ao trabalho;

5). Promover novos esforços para capacitar e proteger os direitos trabalhistas de trabalhadores e trabalhadoras nas plataformas digitais; e

6) Envolver parceiros do setor privado em abordagens inovadoras para criar empregos dignos nas principais cadeias de produção, combater a discriminação nos locais do trabalho e promover a diversidade.

A declaração assinada pelos líderes dos dois países define o caminho que se pretende seguir: “Já compartilhamos a compreensão e o compromisso de abordar questões críticas de desigualdade econômica, salvaguardar os direitos dos trabalhadores e trabalhadoras, abordar a discriminação em todas as suas formas e garantir uma transição justa para energias limpas”, diz o texto.

E continua: “A promoção do trabalho digno é fundamental para a consecução da Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável e dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável. Também estamos preocupados e atentos aos efeitos no trabalho da digitalização das economias e do uso profissional da inteligência artificial no mundo do trabalho”. A ideia é estimular empregos de qualidade, proteger trabalhadores que atuam nas plataformas digitais e promover o conhecimento sobre direitos trabalhistas.

No encontro com Biden, Lula disse ainda que os líderes das nações precisam estabelecer uma convergência para assegurar um futuro mais digno a toda humanidade. Ele declarou que a amizade e colaboração entre Brasil e Estados Unidos vão agora a um novo patamar.

“É muito importante que os Estados Unidos vejam o que está acontecendo no Brasil nesse momento histórico de transição ecológica, de mudança de matriz energética, do que o país tem de investimento em energia solar, eólica, biomassa, biodiesel, etanol, hidrogênio verde, ou seja, há uma perspectiva de trabalho em conjunto excepcional entre Brasil e Estados Unidos. É um novo tempo na relação entre Estados Unidos e Brasil, uma relação de iguais, soberana e de interesses comuns”, afirmou.

Para o presidente brasileiro, é importante que lideranças de perfil democrático se unam neste momento. “Quando olhamos a geopolítica do mundo, percebemos que as oportunidades estão se fechando e as democracias correm perigo porque a negação da política tem feito com que setores extremistas tentem ocupar o espaço em função da negação da política no mundo inteiro”.

A transição energética também foi tema das reuniões promovidas por Lula com com o primeiro-ministro da Noruega, Jonas Gahr Støre, e com o presidente da Áustria, Alexander Van der Bellen. Durante a conversa, Lula e Støre conversaram sobre financiamento ambiental e investimentos em fontes de energia renováveis. A Noruega é um dos principais investidores estrangeiros do Fundo Amazônia, juntamente com a Alemanha, e voltou a liberar verbas para projetos na região no início deste ano.

Na reunião, os dois líderes também abordaram questões comerciais, uma vez que o Brasil é o principal parceiro comercial da Noruega fora da Europa. O país europeu tem investimentos nas indústrias de petróleo e gás e mineração, especialmente alumínio, em território brasileiro. O premiê norueguês também comentou a importância da Presidência brasileira no G20.

No encontro com Alexander Van der Bellen, Lula ouviu elogios do presidente austríaco pelo discurso feito naquele mesmo dia na ONU, focado na união global contra desigualdade, fome e mudanças climáticas. Os dois falaram sobre questões ambientais, citaram a expectativa em torno da COP30, que será realizada em Belém em 2025, e trataram de transição energética e da busca por fontes limpas de energia. Lula ressaltou a intenção do governo brasileiro de iniciar uma “industrialização verde”, com baixa emissão de carbono, a partir da matriz energética do país, que já é uma das mais limpas do mundo.

Acordo UE e Mercosul

Outro ponto da agenda de Lula em Nova York foi o acordo entre Mercosul e União Europeia. O tema foi tratado pelo presidente com o primeiro-ministro da Alemanha, Olaf Scholz, na terça-feira. Há 20 dias, durante encontros com a presidenta da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, e com o presidente do Conselho Europeu, Charles Michel, durante a Cúpula do G20, em Nova Delhi, na Índia, Lula já havia ressaltado que vai buscar um acordo equilibrado entre Mercosul e União Europeia. As tratativas devem levar em consideração as preocupações dos dois lados e permitir uma agenda comercial ambiciosa entre os blocos. 

Além dos temas ligados ao acordo Mercosul-União Europeia, Lula e Olaf Scholz conversaram sobre a Guerra da Ucrânia e discutiram a conjuntura mundial. A agenda em Nova York marcou o terceiro encontro entre os dois líderes neste ano, após Scholz ter sido recebido por Lula em Brasília no final de janeiro e ter reencontrado o presidente brasileiro em Hiroshima, no Japão, durante a Cúpula do G7, em maio.

O tema do acordo comercial entre Mercosul e EFTA – a zona de livre comércio de países europeus que não estão na União Europeia, formado por Suíça, Noruega, Islândia e Liechtenstein –, que está em discussão na esfera diplomática, foi tratado ainda por Lula com o presidente da Confederação Suíça, Alain Berset.

Na reunião bilateral com o presidente da Palestina, Mahmoud Abbas, Lula recebeu cumprimentos pelo discurso na abertura da Assembleia Geral. Em sua fala, Lula criticou o sistema de governança global, que ainda não conseguiu implementar a solução de dois Estados, Palestina e Israel, na região. Na assembleia geral, Lula disse que “não haverá sustentabilidade nem prosperidade sem paz e que os conflitos armados são uma afronta à racionalidade humana. 

“É perturbador ver que persistem antigas disputas não resolvidas e que surgem ou ganham vigor novas ameaças. Bem o demonstra a dificuldade de garantir a criação de um Estado para o povo palestino”, discursou Lula. Abbas convidou Lula a visitar o país. A última visita de Lula ao Oriente Médio ocorreu em março de 2010, no fim de seu segundo mandato, quando o presidente do Brasil realizou sua primeira visita oficial à Palestina. •