Considerado um dos maiores intelectuais do país, o historiador e cientista político morre aos 83 anos. Ele estava internado com covid, no Rio. Em 2015, foi um dos primeiros a perceber a repolitização das Forças Armadas e dos riscos para a democracia

José Murilo de Carvalho

O Brasil perdeu na última semana um dos seus mais renomados intelectuais. Historiador, cientista político e integrante da Academia Brasileira de Letras (ABL) José Murilo de Carvalho morreu na madrugada de domingo, 13, aos 83 anos. Ele estava internado no Hospital Samaritano, no Rio de Janeiro, por conta de um quadro da covid.

José Murilo de Carvalho era um intérprete do país e observador atento da cena institucional brasileira. Em 2015, escreveu um artigo no jornal O Globo, intitulado “Luz amarela”, chamando a atenção para o discurso do general Hamilton Mourão, então comandante militar do Sul. Em 25 de agosto daquele ano, Dia do Soldado, Mourão disse diante da tropa em Porto Alegre que ainda havia muitos inimigos internos no Brasil, mas que os militares não estariam desprevenidos. “Eles que venham”, desafiou o general Hamilton Mourão, hoje senador e ex-vice presidente.

Escreveu o historiador para O Globo: “Ele [General Mourão] ainda vê, em pleno século 21, como real a ameaça comunista no país. Nas celebrações deste ano do 31 de março de 1964, diante de oficiais da reserva, celebrou os que impediram que o país caísse ‘nas mãos da escória moral que, anos depois, o povo brasileiro resolveu por bem colocar no poder’”.

“As manifestações públicas do general Mourão (…) podem ser sintoma do surgimento do único perigo real para nossas instituições, o envolvimento político das Forças Armadas, um retrocesso de 30 anos”, alertou o historiador e cientista político. Ele lembrou que Mourão não havia sofrido nenhuma punição dos seus superiores. Em setembro daquele mesmo ano, o general voltou a fazer ataques políticos, dessa vez dirigidos à então presidente Dilma Rousseff.

O golpe veio um ano depois, com o afastamento de Dilma e o ressurgimento de militares na cena política brasileira, com a designação de Michel Temer para o Ministério da Defesa de um militar, o general Joaquim Silva e Luna, e a indicação do general Sérgio Etchegoyen para o Gabinete de Segurança Institucional (GSI). Daí para a tomada do poder pelos militares com Jair Bolsonaro foram apenas dois anos da ascensão de oficiais como figuras da fauna brasiliense. Ao ex-presidente, Carvalho não poupava críticas: “um bronco, totalmente inculto”.

Em 2019, Carvalho republicou o livro “Forças Armadas e política no Brasil”, originalmente lançado em 2005 e há muito esgotado. O livro traz ensaios e um texto inédito: uma reflexão sobre as transformações das forças militares nos últimos 30 anos. O autor analisa o percurso do Exército politizado desde o Império, passando pela Primeira República, Estado Novo, e ditadura militar.

José Murilo de Carvalho só resolveu se dedicar ao estudo dos militares por conta do golpe. Ele era estudante de sociologia e política na antiga Universidade de Minas Gerais, em Belo Horizonte, quando ocorreu o golpe de 31 de março de 1964.

Militante da Ação Popular, de esquerda, ele escreve que ficou perplexo com a facilidade como se deu a vitória do movimento que depôs o então presidente João Goulart. A segunda surpresa foi quando os militares, em vez de devolver o governo aos civis, como em outras ocasiões, resolveram se instalar no poder e ali ficar por mais de 20 anos. Como conclusão do curso, José Murilo escreveu um trabalho sobre um modelo de relações entre civis e militares. E concluiu: “o Brasil continua a ser uma República tutelada”.

Em uma histórica entrevista ao Globo em setembro do ano passado, ele se mostrava inquieto com a divisão do país e a então república bolsonarista, apontando que a desigualdade continua a ser o grande problema nacional. “Ela bloqueia o país. Quem ganha R$ 100 mil paga 27, 5% de imposto e quem recebe R$ 5 mil paga 27%, há pouca progressividade. Quando dei aula nos EUA, pagava 35%! Na Holanda, mais de 40%! O que me intriga é que vivemos em uma democracia, as pessoas votam. Mas o produto deste voto é um Congresso, uma elite, medíocre, preocupada com reeleição, em conseguir dinheiro, com o financiamento de milhões para os pleitos, mas não se passa legislação que afete desigualdade”.

Nesta entrevista, disse que o legado de Vargas, Lula e Fernando Henrique, apesar dos avanços, não eram sólidos, diante da ascensão da extrema-direita. “Vargas foi o primeiro a fazer uma legislação trabalhista e outras medidas importantes, mas sempre dependendo do Estado. E pagou com a vida pela ousadia. Aí veio a Guerra Fria e os nossos militares consideraram-se tutores do regime. Com FH e Lula, me pareceu que estávamos entrando num caminho que nos levaria à frente. Achei que tínhamos resolvido problemas seriíssimos, como o da educação. Deu nisso que está aí”, lamentou.

José Murilo de Carvalho era parte da Academia Brasileira de Ciências (ABC). Em nota, a presidente da academia, a cientista Helena Bonciani Nader, disse que o cientista político era um “grande intelectual, defensor da democracia, da história, da ciência, da cultura, das artes”.

Nascido em Andrelândia (MG) em 8 de setembro de 1939, José Murilo foi o 6º a ocupar a cadeira número 5 da Academia Brasileira de Letras. Sucedeu a escritora Rachel de Queiroz em 2004. É autor de 19 livros, dentre eles, “A formação das almas: O imaginário da República no Brasil” (1990), “Cidadania no Brasil: O longo caminho” (2001) e “Os bestializados: O Rio de Janeiro e a República que não foi” (2019).

Acadêmico, José Murilo formou-se em sociologia e política na Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), em 1965. Era mestre e PhD em Ciência Política pela Universidade de Stanford, localizada na Califórnia, nos Estados Unidos.

O historiador e cientista político realizou dois pós-doutorados: no Departamento de História da Universidade Stanford (1976-77)l e na Universidade de Londres, na Inglaterra, em 1982. Também cursou especialização em Metodologia de Pesquisa, na Universidade de Michigan (EUA). Era professor emérito da URFJ desde 2011 e pesquisador emérito do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico.  •