Derrotado no Congresso, nas articulações políticas e na Justiça, o núcleo duro do bolsonarismo radicaliza nas redes e nas ruas. Mas o sinal mais eloquente de que a crise para os radicais chegou é o isolamento político do ex-capitão

O ex-presidente Jair Bolsonaro está isolado politicamente, afastando-se da direita tradicional, enquanto radicaliza para manter sua base popular coesa. Um esforço diante da fuga em massa de antigos aliados que se alimentaram do bolsonarismo enquanto o ex-capitão exercia o poder e fascinava parte da classe média e dos ricos com seu anti-petismo. Mas isso mudou. Agora, até o partido que abriga um de seus filhos parece distante.

Há duas semanas, o presidente do Republicanos, Marcos Pereira, foi direto ao ponto: “Bolsonaro está isolado e é de extrema direita”, disse. E elogiou o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, por apoiar a aprovação da reforma tributária, pauta do ministro da Fazenda, Fernando Haddad. Pereira não apenas votou pela reforma tributária, como mostrou claramente que o interesse nacional não pode ser deixado de lado na política, mesmo estando teoricamente na oposição ao governo Lula.

“Os episódios de hoje [quinta-feira] não isolam Bolsonaro, porque ele já se isolou e vem se isolando pelo seu próprio comportamento”, comentou o parlamentar. “Entregou a eleição para o Lula por causa do comportamento dele. Vem se isolando quando começa a brigar com o Judiciário, quando lá no início do governo briga com o Parlamento, quando ele é contra a vacina”.

A reação foi imediata. Vereador da cidade do Rio de Janeiro, Carlos Bolsonaro (Republicanos-RJ) atacou Pereira. “Tudo pela democracia!!! Viva a crença em Deus”. Furioso, o ZeroDois foi ao Twitter e disparou: “Essa raça aumentou a bancada e o poder devido às palavras e ações do presidente Jair Bolsonaro e hoje falam assim. Será por quê? Acho que é porque creem no que pregam”, atacou.

Dois dias depois, o irmão de Carlos jogou para a plateia e radicalizou o discurso, com a intenção clara de reavivar os piores dias do bolsonarismo que assombraram as ruas do país nos últimos três anos. No domingo, 9 de julho, o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PL-SP) compareceu a um ato pró-armas em Brasília. Em cima de um carro de som, na Esplanada dos Ministérios, o ZeroTrês recomendou aos pais: “Tirem um tempo para ver o que eles [as crianças] estão aprendendo nas escolas”.

E continuou: “Não vai ter espaço para professor doutrinador tentar sequestrar as nossas crianças. Não tem diferença de um professor doutrinador para um traficante de drogas que tenta sequestrar os nossos filhos para o mundo do crime. Talvez até o professor doutrinador seja ainda pior porque ele vai causar discórdia dentro da sua casa, enxergando opressão em todo o tipo de relação”.

Publicado em suas redes, a fala de Eduardo repercutiu imediatamente, incendiando o campo da extrema-direita e sendo condenado pelo campo progressista. O ministro da Justiça, Flávio Dino, determinou à Polícia Federal analisar o discurso de Eduardo Bolsonaro para “identificar indícios de eventuais crimes, notadamente incitações ou apologias a atos criminosos”.

Em nota, o Sindicato dos Professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo (Apeoesp) disse que vai buscar “os meios legais” contra as declarações do parlamentar. “A educação é o principal caminho para que o Brasil possa alcançar desenvolvimento sustentável e soberania, com justiça social. E os professores são construtores desse futuro”, apontou, em nota.

Na Câmara dos Deputados, além de diversas manifestações de repúdio em redes sociais e na tribuna, o deputado Guilherme Boulos (PSOL-SP) entregou pedido de cassação do mandato parlamentar de Eduardo na Comissão de Ética da Câmara.

Acuada institucionalmente, desde que as investigações sobre os atos golpistas de 8 de janeiro se iniciaram e pela inelegibilidade por oito anos do ex-presidente sentenciada pelo Tribunal Superior Eleitoral, a extrema-direita tem voltado suas baterias para agitar as redes com os temas da chamada pauta dos costumes.

Na entrevista ao Globo, o presidente do Republicanos disse que “a sociedade brasileira não é de direita nem de esquerda, é de centro, é equilibrada”. E mais: “o brasileiro é um povo pacificador”. Ainda na semana da votação da reforma tributária, Bolsonaro divulgou uma nota nas redes sociais, em que criticou o apoio de Lula à reforma tributária. E pediu a “a todos aqueles que se elegeram com nossa bandeira de ‘Deus, Pátria, Família e Liberdade’, que votem contra a PEC da reforma tributária do Lula”. Em vão.

Sem a força política no parlamento — até o PL jogou 20 votos para a aprovação da reforma tributária na Câmara dos Deputados — resta ao bolsonarismo apelar aos preconceitos, ao armamentismo e ao militarismo, como forma de reavivar o antipetismo. Incapaz de fazer frente às conquistas concretas do governo Lula, como as melhoras na economia, a extrema-direita, mais uma vez, recorre em bloco às táticas de mobilização pelo terror moral. Daí as incertas de Carlos e Eduardo.

De acordo com esse imaginário, as crianças brasileiras estariam entregues a hordas de professores perigosamente “comunistas”, cujo único objetivo em sala de aula seria fazer uma espécie de lavagem cerebral para o aliciamento de menores de idade para a “esquerda” — que, naturalmente, além de comunista, é ainda por cima disseminadora da “ideologia de gênero”, não-cristã, gayzista, abortista, defensora de “direitos do manos” etc.

Por mais que a descrição pareça caricata, é sempre bom lembrar que, desde pelo menos 2018, essa tradução em tintas fortes de uma ideologia política baseada na disseminação do medo conseguiu expressão política a ponto de vencer as eleições presidenciais, governos de estados pelo Brasil afora e em parlamentos nas diversas instâncias.

Nos quatro anos do bolsonarismo à frente do poder, ao lado de medidas efetivas de afrouxamento das restrições ao porte de armas, de presença maciça dos militares na administração, de subsídios para ampliação das escolas cívico-militares, houve ainda tentativas de implantação da chamada “escola sem partido”.

Isso sem falar nos retrocessos variados nas conquistas referentes ao direitos humanos. Por tudo isso, o discurso moral e fundamentalista da extrema-direita encontrou campo fértil. E disseminou-se ainda mais em parte da sociedade. Até porque a usina de fake news, mentiras, boatos e falas de ódio estrutura a própria comunicação dessa franja.

Depois que esse simulacro de projeto político foi derrotado na urnas em outubro de 2022, e as tentativas de golpe em janeiro de 2023 foram frustradas, a direita voltou-se, mais uma vez, a insuflar seus convertidos acenando as bandeiras da moralidade e dos costumes.

Alguns animadores de torcida mais exaltados, como os deputados federais Nikolas Ferreira (PL-MG) e Gustavo Gayer (PL-GO), não cessam de produzir factóides nas redes para reunir as tropas sob a batuta da homofobia, do racismo, do combate ao feminismo. Isso para não falar do restabelecimento de uma fantasiosa “ordem” cívica expressas na tríade “Deus, pátria e família”, usada pelo nefasto em sua campanha eleitoral.

O alvo preferencial de Nikolas Ferreira são as mulheres — cis ou trans. Em 8 de março, no Dia Internacional de Luta das Mulheres, compareceu à Câmara dos Deputados com uma peruca loira por que se sentiria “uma mulher” e fez uma fala transfóbica, aparentemente de defesa para as “as mulheres estão que perdendo seu espaço para homens que se sentem mulheres”. A atitude provocadora e de deboche não foi a única, nem solitária.

Muito ativo nas redes sociais e sintonizado com o discurso mais conservador da extrema-direita, Nikolas não apenas tem se notabilizado pelas declarações radicais e de defesa cega do bolsonarismo, como tem liderado as manifestações mais atrasadas nesse terreno. Seu discurso debochado no Dia da Mulher, no entanto, não passou despercebido. Ele enfrenta processo do Conselho de Ética da Câmara dos Deputados por quebra de decoro parlamentar.

Ainda assim, as bancadas conservadoras vem dobrando a aposta em propor medidas de lei contra os direitos já conquistados: dias depois da realização da Parada Gay, em São Paulo em junho, os deputados federais Gilvan da Federal (PL-ES) e Pastor Sargento Isidório (Avante-BA) apresentaram dois projetos de lei que proíbem a participação de crianças e adolescentes em paradas LGBTQIA+.

Igualmente preocupantes foram as declarações racistas e xenófobas do deputado Gustavo Gayer (PL-GO) que comparou africanos a macacos e relacionou a existência de ditaduras em países da África à falta de “capacidade cognitiva” da população.

Estimulado pela observação já racista de um dos entrevistadores, que afirmou que o QI da população africana seria menor que o de macacos, o deputado emendou: “Quase tudo lá é ditadura. Democracia não prospera na África. Por quê? Para você ter uma democracia, você tem que ter o mínimo de capacidade cognitiva de entender o bom e o ruim e o certo e o errado. Então, tentaram fazer democracia na África várias vezes. Mas o que acontece? Um ditador toma conta de tudo e o povo ‘êêê’”.

Se já não bastasse, o parlamentar avançou: “O Brasil está desse jeito, o Lula chegou na Presidência e o povo ‘êêê, picanha e cerveja’”. A declaração ocorreu durante entrevista de Gayer a um  podcast. Diante da repercussão, a Advocacia-Geral da União apresentou queixa-crime contra Gayer por associar ‘africanos a quociente de inteligência baixo, inclusive o comparando a de macacos’. O apresentador Rodrigo Barbosa Arantes, do programa “3 Irmãos Podcast’, também foi citado na queixa-crime.

Ainda que esses episódios de radicalização do discurso pareçam mais do mesmo ou rompantes isolado, eles podem estar indicando que, mesmo que pareça abatida ou desnorteada, a extrema-direita ainda tem planos para o país. E eles vão na direção de uma proposta política ainda mais baseada no ódio, na exclusão, nos preconceitos e no desrespeito aos direitos humanos e à  democracia. •

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