Entrevista | Chico César – “Sinto que o brasileiro está feliz por estar vivo”
O cantor e compositor paraibano Chico César comemora a volta do carnaval de rua e vê com otimismo a retomada do Brasil dos sonhos de quem quer construir uma sociedade fraterna, menos desigual e solidária. “A posição forte de Lula em relação à postura conservadora e concentradora de renda do Banco Central é importante”, elogia
No último domingo, 11 de fevereiro, caía uma daquelas chuvas de verão pesadas em São Paulo, mas ainda assim o cantor e compositor Chico César mesmerizou a multidão que se espremeu a partir de 11h30 no Obelisco do Parque do Ibirapuera. Depois de dois anos sem Carnaval por causa da pandemia do coronavírus, paulistanos e turistas acorreram aos shows e dezenas de blocos de rua no final de semana para marcar a volta da festa às ruas, parques e praças da maior cidade do Brasil.
Chico César, paraibano radicado em São Paulo desde a década de 1970, conduziu o show com seu repertório de hits como “Mama África”, “Pedra de Responsa”, “Respeitem Meus Cabelos Brancos” e “Filá”. Além disso, ainda houve a participação relâmpago de Zeca Baleiro com aquilo que ele mesmo definiu como uma “explosão de alegria”.
Ativista pelos direitos humanos e artista com perfil militante, Chico César conversou com a Focus Brasil sobre a importância da volta do Carnaval às ruas do Brasil, o otimismo do povo brasileiro em ter sobrevivido à pandemia e ao “pandemônio” e a importância dessa festa “pagã e libertária”.
Leia abaixo os principais trechos da conversa:
Focus Brasil — Pelo pré-Carnaval de São Paulo, dá para dizer que “a alegria está de voltas às ruas?”
Chico César — Eu tenho sentido que, desde a virada do ano, até mesmo um pouco antes, com essa mudança política no Brasil, que as pessoas estão mais otimistas, estão mais felizes, os corpos estão mais relaxados… E as prévias carnavalescas mostram isso, porque o Carnaval é o ápice da explosão de alegria do brasileiro. O brasileiro está mais feliz por ter atravessado uma pandemia, mesmo com a perda de muitos entes queridos, e também por estar se livrando do pandemônio de uma parte importante da vida, que é a parte institucional, algo que legitimava um pensamento muito passadista, rancoroso, belicoso, nazifascista mesmo. Do ponto de vista do Executivo, o brasileiro conseguiu se livrar, apesar de termos vários governadores dessa tendência, mas acho que o principal saiu. Ainda tem muita gente no Legislativo e até mesmo no Judiciário, mas eu acho que aí tem que buscar punir os culpados e, ao mesmo tempo, tocar a vida para frente com alegria, com música, com frevo, com samba, com axé, com maracatu. Isso é a cara do Brasil. E sinto que esta explosão de alegria está acontecendo aqui no nosso país.
— O Rio tem o samba forte das escolas de samba, Salvador, o samba-reggae e o axé, Pernambuco/Olinda, frevo e maracatu. Como você vê a diversidade de referências musicais do Carnaval de São Paulo? Ou você acha que a música do carnaval paulistano não tem identidade própria?
— São Paulo é terra de muito samba, tem uma tradição que vem do samba rural, de catira, de jongo. É uma terra muito alegre também. Essa tradição foi para as escolas de samba da cidade, que já faziam um carnaval muito belo, muito respeitado, disputado, com uma ligação muito franca com as comunidades que lhe dão origem. E para além do que a cidade já tem, São Paulo tem uma característica muito incrível que é de receber quem vem de qualquer lugar do mundo, trazendo sua cultura. Não é à toa que tem a festa da Achiropita, a festa da comunidade japonesa, que acolheu tão bem o forró de pé de serra nordestino e que também acolhe as manifestações carnavalescas que vem de outras regiões do país. Vem gente da Paraíba, como eu, vem gente da Bahia, como o Baiana System, vem gente de Pernambuco, como Alceu Valença, e tantos outros. E é nesse sentido da diversidade que a festa do Carnaval de São Paulo se caracteriza: a multiculturalidade, a ocupação da rua. Acho que, de uns 15 anos para cá, o paulistano foi para a rua, criando seus blocos, nos bairros e, fazendo a festa acontecer, o poder público abraçou, o poder privado também e hoje temos um Carnaval enorme, maravilhoso e inclusivo.
— Um de seus últimos discos, ainda pré-pandemia, chama-se “O Amor é um Ato Revolucionário”. Fazer música, tocar, compartilhar a música com o público são atos revolucionários?
— As ferramentas de rede podem nos ajudar a ter uma relação mais direta com o nosso público, para além de uma relação comercial. Eu tenho me dedicado a isso também, no sentido de que, quando eu faço uma música, normalmente, eu posto a música ainda crua, do jeito que eu compus aqui no meu quarto, na cozinha da minha casa. Sinto que isso criou, acho que fidelizou, aproximou a relação com o público… Durante a pandemia eu ensinei a tocar canções, fiz uma espécie de vídeo-aula, mostrando acorde por acorde, em cada dedo, em cada corda, em cada casa do braço do violão… Isso tudo são ferramentas que mostram que, para além do negócio da arte, da música, nós somos criadores que de algum modo precisamos estabelecer vínculos de cumplicidade com as pessoas que estão do outro lado, com o público. E que, também, por sua vez, pode nos responder de um modo muito mais direto. Isso eu acho que é um ato revolucionário.
— Quase três anos de pandemia, que amainou, mas ainda não acabou, deixaram os brasileiros tristes, desesperançados?
— Não, eu não sinto assim, eu sinto o contrário. Eu sinto que o fato de as pessoas terem ficado dois anos e meio aí lidando de uma forma mais opressiva com a pandemia, na coisa do isolamento em casa… Eu acho que deixou as pessoas mais otimistas, porque nós sobrevivemos. Nós somos sobreviventes de uma catástrofe internacional e também de uma catástrofe nacional porque aqui os brasileiros tivemos que enfrentar a pandemia e também, de certa forma, o governo federal e autoridades que se aliaram ao vírus, numa relação muito tóxica: negando a ciência, zombando das pessoas que estavam morrendo, dizendo que era falta de coragem das pessoas que não queriam ir para a rua, negando a máscara, a vacina… Então, nós somos sobreviventes e isso nos torna mais alegres, apesar das perdas, tantas que tivemos. Sinto que o brasileiro está feliz por estar vivo.
— Qual a importância do Carnaval de rua, de qualquer cidade, para cultura brasileira?
— O Carnaval de rua é uma tradição no Brasil, nas grandes, nas médias e nas pequenas cidades. As pessoas organizam seus blocos, seus corsos, seus mela-mela, põem máscara, se pintam, se vestem de modo que não se vestiriam noutros momentos do ano… É uma festa pagã e nesse sentido é uma festa bastante libertária e talvez necessária para que as pessoas aguentem o tranco no resto do ano. Ela pode ser subversiva se conseguirmos levar para o resto do ano algumas práticas, algumas atitudes, como você não concentrar a liberdade da alegria apenas em três, quatro dias, uma semana, no máximo, em um ano. Fazer isso em uma semana já é ótimo, mas acho que é importante você levar isso para o resto do ano, tirar algumas horas de Carnaval por dia, uns minutos; uns dias de Carnaval durante a semana… Em suma, incorporar a alegria do Carnaval, a falta de seriedade que o Carnaval nos traz, levar isso para o resto do ano. Acho que isso é bastante subversivo, anárquico, libertário e, por isso, libertador também.
— Você foi um apoiador entusiasmado da candidatura do presidente Lula e muito crítico ao governo de Jair Bolsonaro. Ano passado, em plena campanha, sua canção “Bolsominions”, cuja letra critica abertamente a manipulação da fé do povo pelo fascismo, circulou muito pelas redes. Como você está avaliando esses primeiros 45 dias de governo Lula?
— Essa música, “Bolsominions”, não é de 2022. É de três, quatro anos atrás, logo quando o governo Bolsonaro começou. Tanto que, por causa dessa canção, a Câmara dos Vereadores da cidade de João Pessoa fez um voto de censura contra mim. Este é um governo [Lula] que vem para retomar algo que foi interrompido ali atrás no golpe contra a presidente Dilma Rousseff, mas que precisa olhar para o futuro. O mundo não é mais o mesmo, o país não é o mesmo, a extrema direita cresceu bastante… Acho que os 45 dias de governo trazem mais simbolismos por enquanto. A posse foi um momento incrível, de mostrar a diversidade brasileira. Tivemos também a nomeação de ministros e ministras negros, a presença mais uma vez de Marina Silva à frente do Ministério do Meio Ambiente, a reação rápida do governo com relação aos atos terroristas e golpistas do 8 de janeiro, a reação rápida também das autoridades com relação à crise vivida pelos ianomâmi no Norte do Brasil. Tudo isso é positivo. A posição forte do governo em relação à questão social diante da postura conservadora e concentradora de renda do Banco Central, acho que isso é importante também. Temos um governo começando e que começa muito bem, na minha opinião. •