O precipício fiscal e a realidade
André Lara Rezende critica a cantilena do mercado e da mídia hegemônica em torno da manutenção da política de austericídio fiscal. E diz que os dados da economia brasileira mostram uma situação menos aterrorizante que os críticos de Lula propalam
Depois de tanto ouvir os economistas e a mídia martelarem insistentemente o problema do déficit público, da insustentabilidade da dívida, que estaria numa trajetória explosiva, que o país estaria à beira de um abismo fiscal, saíram os números das contas públicas relativos ao ano passado. Pasmem: houve um superávit de R$ 126 bilhões, equivalente a 1,3% do PIB. A dívida pública bruta, aquela que os analistas insistem estar numa trajetória explosiva, caiu 1,1% em proporção do PIB, para 73,5%. Seria de se esperar que os arautos do abismo fiscal reconhecessem que, no mínimo, tinham exagerado o problema fiscal. Mas não, pelo contrário, voltaram com ênfase reforçada, impassíveis diante dos fatos e dos dados.
Vejamos o que diz a Carta Macroeconômica do Itaú divulgada agora em 31 de janeiro. O texto é em inglês para seus clientes e “investidores” estrangeiros. A tradução é minha: “Na nossa visão, o superávit primário e a queda da dívida pública em 2022 são devidos a fatores temporários, ou a aqueles que terão um menor impacto este ano, tais como o elevado volume de receitas extraordinárias, um forte crescimento, a alta inflação e o preço das commodities”. E para não correr risco de ser mal compreendido e perder a oportunidade de voltar a assustar, prossegue: “A implementação do PEC da Transição implica um significativo aumento do gasto público em 2023, confirmando a perspectiva da volta do crescimento da dívida pública. Na ausência de medidas corretivas, este cenário poderá levar a um novo ciclo de baixo crescimento, alta inflação e altas taxas de juros”.
O Valor de 1 de fevereiro estampou a manchete: “Piora do risco fiscal leva juro real à maior taxa desde 2016”. No mesmo dia, o editorial da Folha de S.Paulo, “Dívida alta, juro alto”, destaca em caixa alta: “Ataque a rentistas – a população que poupa e empresta ao governo - não resolverá o problema”.
Como dizia Nelson Rodrigues, antecipando o mundo dos “fatos alternativos”, se os fatos não confirmam, pior para os fatos, mas vamos aos fatos. A dívida pública brasileira não é alta. É muito mais baixa do que a dos países desenvolvidos e em linha com os países em desenvolvimento, mas com duas diferenças cruciais: é toda em moeda nacional, detida por residentes e o país ainda tem quase 20% do PIB em reservas internacionais.
O Brasil não tem dívida externa, só dívida interna, denominada em moeda nacional e carregada pelos rentistas, ou a população que poupa, como preferem alguns. Quem tem renda de ativos financeiros não é inimigo da pátria, mas faz parte da parcela privilegiada da população. Não são investidores, como gosta de denomina-los a mídia e os economistas do mercado financeiro, são rentistas, o que também não é crime, mas preciso distinguir entre quem aplica sua riqueza, herdada, conquistada ou poupada, em ativos financeiros para ter renda sem correr riscos e quem verdadeiramente investe em capital físico, organizacional e intelectual, e contribui para o aumento a capacidade produtiva do país.
A taxa de juros básica, que é piso e referência para todas as demais taxas de juros no país é determinada pelo Banco Central. Repito, a taxa básica é integralmente controlada pelo Banco Central. As taxas para prazos mais longos são fixadas pelo mercado, instituições financeiras que operam com a dívida pública, com base nas estimativas que fazem da trajetória futura da taxa básica a ser fixada pelo BC. Se quisesse, o BC poderia fixar toda a estrutura a termo das taxas da dívida, como já faz há anos o Banco do Japão, e acabar com as pressões alarmistas para elevar ainda mais a já injustificavelmente alta taxa básica, em nome de um “risco fiscal” inexistente.
A dívida pública interna é um passivo do Estado e um ativo – líquido e sem risco – do setor privado. Assim como a moeda, a dívida pública presta um serviço aos poupadores, às empresas, aos ricos, aos rentista e a todos os agentes na economia que precisam transferir poder aquisitivo no tempo sem correr riscos. Se o Estado se tornasse subitamente – ou milagrosamente como preferirão dizer seus críticos – superavitário e a dívida pública fosse integralmente resgatada, a economia teria sérias dificuldades para se manter saudável. Assim como no caso de uma súbita contração monetária, muito provavelmente, entraria em profunda recessão. A moeda e a dívida pública interna são um bem público indispensável ao bom funcionamento da economia.
Sei bem que essa não é a visão convencional e dominante, mas é a que corresponde à realidade do mundo com moeda fiduciária. Tem uma longa e admirável tradição intelectual desde Aristóteles. Na história recente do pensamento econômico, tem representantes na “banking school” inglesa do século 19, passando por Wicksell, Schumpeter, Ingham, Abba Lerner, Minsky, entre muitos outros, quase sempre mantidos à margem das ideias convencionalmente aceitas.
Aqueles que entenderam a moeda não como uma mercadoria, mas como um serviço público, uma unidade de conta fiduciária, como um ativo que poderia ser usado para pagar os impostos, deveriam ter finalmente sido vindicados pelo desaparecimento da moeda física e a desmoralização da relação entre quantidade de moeda e o nível de preços, depois do Quantitative Easing.
Eu poderia me alongar sobre os equívocos da visão convencional, tema que já tratei em diversos artigos ao longo dos últimos anos, mas não vale a pena. João Moreira Salles abre a introdução do seu recém publicado “Arrabalde: em busca da Amazônia” (Cia das Letras, 2022) afirmando que é difícil compreender quando não se presta atenção. Mais à frente, no livro, leitura obrigatória para entender o drama do descaso com a floresta, cita Simone Weil, a pensadora francesa, para quem a atenção é a forma mais rara e pura da generosidade.
No mundo contemporâneo, a atenção se tornou ainda mais difícil. Para os temas técnicos, que além da atenção exigem reflexão, sem parti pris, é praticamente impossível. Para falar da teoria monetária e da taxa de juros, tema que além de técnico é motivo de velhas controvérsias e de posições cristalizadas, é caso perdido. Perde-se o leitor já nas primeiras linhas.
Meu objetivo é mais modesto. Quero que o leitor se pergunte porque, mesmo diante de resultados muito mais favoráveis do que o esperado, os analistas e a mídia redobram sua histeria em relação ao tal do “risco fiscal” e clamam por juros ainda mais altos. A razão é a PEC da Transição, o terceiro governo Lula, dirão. A PEC da Transição autorizou despesas em torno de 2% do PIB. A alta da taxa básica de juros, promovida por canetadas do BC desde o início de 2021, custou quase o dobro desses 2% do PIB, só em 2022. Faz sentido?
Alguns dias depois da divulgação do resultado fiscal de 2022, o Copom decidiu manter inalterada a taxa básica em 13,75%. Como reportou o Valor, “com um tom mais duro em relação ao risco fiscal, disse que avalia manter a taxa por mais tempo”. O BC sustenta que a conjuntura “particularmente incerta no âmbito fiscal e as expectativas de inflação se distanciando da meta em horizontes mais longos” exigem a manutenção da taxa por mais tempo do que o previsto, ao menos até o final do ano.
Ou seja, mais uma vez, em nome do “risco fiscal” e da “ancoragem das expectativas”, a extraordinária taxa básica será mantida. O Brasil continuará a ter a taxa real, descontada a inflação, mais alta do mundo, quase 8% ao ano. A razão? A necessidade de ancorar as expectativas. Expectativas de quem? Do mercado financeiro, divulgadas pelos seus próprios analistas. Por que estariam desancoradas? Por causa do risco fiscal que eles mesmo decretaram ser muito alto e se encarregam de propagar por toda a mídia.
Ou seja, independentemente dos dados e da realidade, decide-se que o risco fiscal é alto. Estipula-se que o risco fiscal determina as expectativas de alta da inflação e que a alta dos juros irá reverter o quadro. Como? Não fica claro, dado que a alta dos juros aumenta o serviço da dívida e agrava o risco fiscal. Pouco importa, todo mundo sabe que expectativas desancoradas provocam inflação e que juros altos controlam a inflação. Portanto, é preciso manter os juros altos, premiar os rentistas e inviabilizar os verdadeiros investimentos na expansão da capacidade produtiva, na infraestrutura e na descarbonização da economia.
Como disse recentemente James Galbraith, que tem longa experiência no questionamento da teoria convencional, é impossível argumentar com base nos fatos e na lógica contra o que “todo mundo sabe”. Começo a achar que ele tem razão. •
Artigo publicado originalmente no jornal Valor Econômico, de 7 de fevereiro.