O escritor Milton Hatoum segue inquieto sobre a natureza política do país, critica os militares e o presidente da República, mas também não poupa a esquerda. Seu inconformismo segue a sua vasta cultura e a mente inquieta, cujos devaneios mostram a literatura como uma ferramenta de conhecimento e de transformação da realidade

 

O escritor Milton Hatoum fez a revista Focus esperar quase um mês depois que topou nos conceder a entrevista, mas foi totalmente pontual na hora de entrar na plataforma digital e o que se seguiu foi quase uma hora de aula sobre o Brasil pandêmico, os retrocessos recentes e não tão recentes assim, livros novos, livros velhos e, sobretudo, a importância da literatura na formação humanista.

Prestes a completar 70 anos, Hatoum é dos mais importantes escritores brasileiros em atividade — e segue como intelectual inquieto e inconformado com os retrocessos.

Um pouco como se Martim, narrador da trilogia “O Lugar Mais Sombrio”, cujos primeiros dois volumes “A Noite da Espera” (2017) e “Ponto de Fuga” (2019) aguardam o lançamento do terceiro e último volume, fosse nosso contemporâneo e estivesse observando esse segundo momento de tempos de trevas, começado com o Golpe de 2016 e em seguida as eleições de 2018. Com pesar e críticas duras, mas também com enorme generosidade — e, sim, alguma esperança.

 

Focus Brasil – O Brasil teve mais de 682 mil mortes, uma verdadeira atrocidade, fora as contra o meio ambiente e a floresta. Como é o seu sentimento de ver Bolsonaro em uma posição competitiva na eleição? O que isso diz sobre o país no qual a gente vive?

Entrevista Milton Hatoum - “A Literatura não derruba governos, mas humaniza as pessoas”

Milton Hatoum — Eu acho que, na verdade, houve um desentendimento ou a incapacidade de querer compreender ou de aceitar a força do conservadorismo brasileiro. Nós não julgávamos, as pessoas não achavam que ele tinha esse capital de emergir e acabar se elegendo presidente. Ele deu voz a esse conservadorismo latente, que estava lá um pouco adormecido, esperando a sua vez, a sua oportunidade para ter a sua voz. E foi sob essa liderança que, não por acaso, com ele vieram as milícias. Bolsonaro veio dos porões. Como diz o [Paulo] Arantes, veio dos porões da ditadura. Ele é filho disso. Aliás, me pergunto o que aconteceu com a Academia Militar de Agulhas Negras (Aman) na década de 1970, para formar tantos cadetes, tanta gente ignorante, ignorante e com propensão ao autoritarismo, quando não ao fascismo. E isso aconteceu com essa turma do Bolsonaro, do general Heleno, Braga Neto, dos militares que o cercam.

E a gente tem de pensar que a década de 70 foi uma atrocidade. De algum modo, essas atrocidades não foram interrompidas durante a democracia. A violência policial não foi interrompida. Ao contrário, ela foi se aprofundando. A Polícia Militar comete crimes há anos, desde sempre. E na verdade, a Amazônia também não parou de ser destruída, mesmo nos governos democráticos. Isso é uma coisa que a gente deve cobrar.

Lula está falando em criar um Ministério dos Povos Originários. Seria uma ótima ideia pôr em prática isso, porque houve também algumas falhas e isso tem que ser reparado. Então [Jair] atacou em várias frentes tudo o que foi um pouco adormecido desde o fim da ditadura. E ele retomou com ferocidade, com a cumplicidade desses militares que são muito mais, muito mais ignorantes e pérfidos. Abertamente pérfidos. Os outros ainda tinham um verniz, como, por exemplo, Castelo Branco.

O que eu acho que é o projeto dele é militarista; um capitão cooptado foi cooptado. É uma cooptação e uma cumplicidade entre o que há de pior da política brasileira, que é o Centrão. E esse é o tripé desse governo. E de que milícias estamos falando? A bancada da bala, a bancada do boi e eu colocaria aí mais uma componente que é a liderança evangélica, não os evangélicos, não o povo evangélico, porque são muitos os evangélicos e a maioria é muito manipulada. Mas e a liderança? Ora, será que essas pessoas surgiram de um momento para o outro? Acho que não.

Quando estava na revista IstoÉ, aquela do Mino Carta – estudava na FAU e fazia frila na revista, resenhas de teatro, de literatura e também reportagens. Fiz, por exemplo, uma matéria sobre o lançamento de “Lampião” [jornal da imprensa alternativa LGBT]. Um dia, o Nirlando Beirão disse: “Milton, vai lá no estádio do Pacaembu cobrir um evento evangélico”. Eu fui. E foi uma loucura. O Pacaembu estava cheio, cheio. Aí eu vi as pessoas jogando os óculos fora, deixando sacos de lixo, aqueles sacos plásticos pretos, com notas miúdas. Toda a pobreza estava ali. Escrevi a matéria, o Nirlando leu e disse: “Isso não é possível. Você está fazendo literatura?” Mas não era uma fantasia. Eu vi isso. E isso foi acho que em 1978, por aí.

Houve um avanço tremendo exponencial dessas igrejas, e tudo isso se multiplicou no Brasil todo. No interior da Amazônia, se você pensar no interior da Amazônia, só pensar em Cruzeiro do Sul ou em Xapuri, sabe? Em Parintins ou no Alto Solimões? Está em toda parte. Houve um avanço desse conservadorismo, quase silencioso. Não surpreende que ele tenha 30%, mais de 30%, de apoio, porque são essas pessoas manipuladas. E uma parte considerável desse apoio também é da Polícia Militar, das Forças Armadas, das milícias e dos homens brancos ricos. Não é isso que a pesquisa dá exatamente? Olha o Bolsonaro, ele tem voto dos brancos, ricos e escolarizados.

 

O Brasil parece um país um tanto desmemoriado. Não há nenhuma lembrança negativa da ditadura, ela está presente na esquerda, mas tem toda uma parcela da sociedade que não a enxerga como algo ruim e tem outra que não se importa de estar do lado dessa gente que apoia a ditadura e está contra a democracia.

— A questão é que há várias modalidades de memória. A memória histórica, essa à qual você se refere, depende da formação e da escolaridade da pessoa e de como foi essa formação. Que tipo de livro leu — ele ou ela? Eu fiz essa brincadeira. Eu perguntei: “Você leu ‘Vidas Secas’, do Graciliano Ramos?” Nenhuma pessoa tinha lido. ‘Vidas Secas’ é um dos livros… É um pequeno grande livro, muito poderoso. Ele revela, com uma expressão complexa, mais ou menos complexa, senão bastante complexa, a nossa miséria. A história de Fabiano é uma história da miséria e é um recorte da miséria e da analfabetismo brasileiro.

Então você, quando jovem, lê alguns livros como esse, ou como ‘Capitães da Areia’ ou um bom conto de Machado de Assis, você já passa a ter uma sensibilidade. É uma formação que tende a um certo humanismo. E aí não se fala de esquerda nem de direita. Quem lê ‘Vidas Secas’ não vai ser uma pessoa de esquerda, obrigatoriamente, mas ela vai perceber as contradições da vida brasileira. No livro do Graciliano, o Fabiano carecia do saber, o Fabiano é um bicho, “o bicho”, ele diz. Ele está mais próximo do animal e longe do humano. Ele joga o tempo todo com isso.

Essas pessoas não tiveram essa formação, elas conseguiram se diplomar na universidade sem ter lido um só livro, ou um bom livro de história ou um bom livro de literatura. É inacreditável, mas é verdade isso. E não são poucos, porque a USP, a Unicamp e a PUC são bolhas. O Brasil não é um país. São bolhas de pessoas. Há uma massa enorme de brasileiros alienados mesmo, para usar um termo em desuso. E essas pessoas estão assustadas. De onde vem tanta, tanta violência? Sim, tanto extremismo, tanta fé numa sociedade que está doente.

Agora, é um fenômeno apenas brasileiro? Não, na França, no segundo turno a senhora Marine Le Pen teve 43% de votos. Na França. É assustador. E não é porque a França tenha um passado… A França aderiu ao nazismo, metade da França era a França de Vichy na Segunda Guerra. A França massacrou argelinos, foi colonialista durante 100 anos na Argélia. E morreram 2 milhões de argelinos. As pessoas riam em Paris dos corpos flutuando. O racismo lá é tremendo e isso vem à tona. Em algum momento do contemporâneo, isso vem à tona… Consideram a imigração e os refugiados dois fantasmas, para o europeu branco. São sujos, não são católicos, não são cristãos, são morenos, são só negros… Por isso que eu não me surpreendi tanto, com exceção de ser esse cara, não me surpreendi tanto. Já com alguns erros que a esquerda… Isso me surpreendeu.

 

Quais erros?

— Eu achei um absurdo o não ter havido uma aliança ampla em 2018, como está havendo agora. Um primeiro erro. O segundo foi por que é que um candidato que admiro muito como o Haddad, certamente vou votar nele como eu votei em 2018, o que o impediu de mostrar para a população o seu programa econômico, as diretrizes do novo governo? As pessoas querem saber, os milhões de pequenos e microempresários. Eles querem saber, têm medo, porque o terror joga com esse medo de fechar o caixa, vão aumentar o imposto. Então deveria ter sido tudo mais claro: “Olha, nós vamos precisar de usar isso e isso. Não vamos precisar privatizar isso. Vamos dar financiamento pelo BNDES…” Mostra a cara, mostra seu ministro, o futuro ministro, as pessoas esperavam isso. Eu acho que foi um erro. Bom, mas agora já foi.

Agora já estamos em outro estado, a poucos dias de outras eleições. Quase um susto, quase uma distração e já se passaram quatro anos, quase. Mas teve acertos também, mais acertos do que erros. O que eu acho agora é que não deve repetir, porque aí seria realmente lamentável demais. A gente tem que pensar em alternativas. O absoluto não existe na política. Nem mesmo os governos mais totalitários conseguem o absoluto. Há sempre brechas. Há sempre alternativas para você enfrentar e criticar o poder. Tivemos quatro anos nos quais as pessoas tinham que pensar em como nós vamos enfrentar as fake news…. E agora essa, que estão dizendo que as igrejas vão ser fechadas… É um absurdo, mas como que você desmonta isso imediatamente? Como que você interrompe isso? Como?

 

Vou falar um pouco agora da trilogia “O lugar mais sombrio”. O primeiro é de 2017. O segundo, de 2019. Ou seja, o lançamento de ambos coincide com o momento em que estava se armando esse nosso período sombrio depois da redemocratização. Quando disse há pouco que a literatura tem o papel de fazer crescer o humanismo nas pessoas, em que medida a sua trilogia é necessária agora? E vou fazer a pergunta chata: cadê o terceiro livro?

— Eu estou esperando acabar. Só isso. É uma paciência que eu tenho… Antonio Candido, nosso maior crítico literário, escreveu um breve ensaio chamado “O Direito à Literatura” — e que é belíssimo — em que fala que um dos direitos humanos é exatamente o direito a ter acesso à leitura, a várias modalidades de discurso, mas, enfim, à leitura e, portanto, à literatura. Ele acha, e eu concordo plenamente com ele, que a literatura não é só um jogo formal, ela não tem apenas uma forma, um modo de se expressar, questões técnicas de construção, do tempo, do espaço, das personagens, dos jogos temporais. Ela não é só isso, embora seja também isso.

Antonio Candido diz também que a literatura pode ser um instrumento de conhecimento da realidade, de aprofundar a sua visão, do leitor, da realidade em si e dessa outra realidade que foi construída pela ficção, mas que tem algum paralelismo com o nosso mundo. Mesmo sendo algo do passado, certo? O leitor, ele se vê transportado, viaja pelo tempo. É uma viagem pelo tempo, então esse também é o poder da literatura. Eu citei “Vidas Secas”… Bem, é um livro que foi publicado há 80 anos… Por que ele sobrevive até hoje? “Vidas Secas”, “Capitães da Areia”, de Jorge Amado? Eles empolgam a juventude, ainda interessa à juventude porque essa miséria do Fabiano ou esses meninos de Salvador, não são apenas eles. São brasileiros, mas também são homens universais.

Essa miséria é uma miséria humana. Ela está em todos os lugares. E, claro, a gente se identifica com o Brasil porque é o sertão, a linguagem que nós conhecemos, a paisagem que nós conhecemos, como o excesso, a comida que nós conhecemos, a falta que nós também conhecemos. Esse é o poder da literatura. É um poder que não derruba governos, que não muda o mundo, mas faz parte da humanização das pessoas e da humanização da pessoa, porque senão ela vira uma pessoa bruta e da brutalidade para a violência, é apenas um passo.

Nesse sentido, eu tentei escrever exatamente um romance de formação, com a trilogia, a partir de um grupo de jovens, jovens que estão se formando do ponto de vista sentimental, afetivo, político, intelectual, moral, em suma, da formação plena, ampla do ser humano, que é uma tradição do romance ocidental. Começou lá com Goethe, no século 18, que depois se desenvolve no século 19 na França, com o grande romance naturalista francês, mas que depois se desdobra no romance da desilusão.

Eu até disse uma vez que o Brasil era um era um grande, o imenso romance da desilusão: a gente pensa em quando vai dar certo, alguma coisa acontece de errado e estraga tudo. E é um retrocesso. Nós estamos nessa sempre, nessa expectativa de agora vai e acontece, de não ir. Esse meu romance de formação -— e aí é um dado da minha vida —, se passa em Brasília, em São Paulo e na França porque trata do exílio de alguém que está escrevendo a partir da França as suas memórias e a memória dos outros num tempo muito difícil no final dos anos 60 e 70, a juventude em Brasília, a maturidade em São Paulo, na Vila Madalena — que não era essa sucursal da Ambev que é hoje, mas ainda era um bairro humilde, de estudantes. É uma república, uma república que não dá certo também e aí já vemos os personagens em busca do sentido da vida.

É claro que não é um romance político, porque eu não trabalhei com questões sociais ou os meandros do poder. Não tem personagens importantes, generais, políticos importantes nem intrigas palacianas. São jovens estudantes que caminham para a maturidade, cujo grande enigma é a mãe do narrador que permanece até o próximo, que será o terceiro que vai sair.

Agora, devido à pandemia, a vida mesmo, todas as dificuldades… Não foi fácil para ninguém, a gente nem pode reclamar. Eu tenho vergonha de dizer isso, porque, caramba, neste país em que as pessoas morrem de frio, de fome, tem milhões de miséria… Não tenho o direito de lamentar, eu me recuso. Mas também tem uma coisa que também mexe muito com as pessoas, mesmo as que têm algum privilégio como a gente, que é o nosso abalo mental, uma coisa mais subjetiva, mas que afeta muito.

Eu acho que este governo, se estou bem lembrado, ele me transtornou mais do que a ditadura. Talvez por ser mais velho, talvez a juventude suporte as adversidades com mais garra, com mais força, com mais energia para isso. Você pode devolver uma bomba de gás com um chute, um sapato de couro que era o que a gente fazia nas passeatas. Mas eu acho que a ditadura tinha um projeto para o país. Esses aí não têm um projeto para o país, são execráveis. Quer dizer, nem um projeto liberal desse charlatão desse Guedes, que de liberal não tem nada… Se eu fosse um liberal, eu estaria odiando esse charlatão. Como que algum liberal ainda pode apoiar esse cara?

 

Nos primeiros livros, ou nos romances até a trilogia, quase todos passados no Amazonas e na Amazônia, eu percebo uma relação com a épica, do grande território desconhecido a explorar. E aí li uma entrevista em que você cita o Joseph Conrad como influência. Será que a gente dá para pensar nisso, que você é um autor de um ciclo mais épico e, agora, do romance da educação sentimental?

— Conrad é um dos modelos para mim, eu gosto muito da obra dele, bem como a obra do Gustave Flaubert. São escritores que, como tantos outros também no Brasil… Eu podia citar o próprio Graciliano, que para mim é um dos grandes escritores, sem dúvida nenhuma. O Conrad tem esse lado da aventura, do poeta, do marinheiro que ele foi durante a metade da vida dele… Mas combinado com essa ação, há também uma reflexão sobre a vida, uma subjetividade e um elemento psicológico, que é o que o Graciliano faz muito bem. Então esses escritores que combinam também a ação com a reflexão… São as questões que mais me tocam… A própria Virginia Woolf, que é muito mais psicológico e muito mais experimentalista, mas tem alguma coisa nela do olhar da sociedade, sobretudo o olhar sobre a sociedade, sobre a hipocrisia, sobre as contradições também sociais, sobre o tempo, sobre a história. Eu quis na minha mente, de extrema modéstia, porque estamos falando de grandes escritores geniais – e também tem outros, como Clarice, Guimarães Rosa, que serviram de modelos para mim…

Na “Noite da Espera” e no “Ponto de Fuga”, não é só a coisa política que afeta, também é o sentimento, o impasse, é um sonho que eles não conseguem concretizar. Como se eles estivessem dando voltas em torno de uma mesma questão e não conseguem se desvencilhar disso. Por isso que, para mim, foi importante trabalhar com uma formação e ter a ação e a reflexão ao mesmo tempo.

 

Como é que é assistir a esse processo de retrocesso pelo qual passou o Brasil nos últimos anos? E como estão suas perspectivas para o futuro?

— Sobre o país não posso, não sei o que pode acontecer, mas a gente está nessa, ninguém sabe… Estamos entre mais quatro anos de Bolsonaro, que é o impensável. Para mim foi chocante à época, uma das coisas mais terríveis foi que nós aceitamos nossa tragédia, fizemos um pacto com o trágico quando a sociedade brasileira e suas elites firmaram um pacto no acordo da anistia geral em 1979. Eu acho que isso produziu consequências que estão aí: não puniu os torturadores, assassinos, criminosos, arquitetos dos golpes, de atentados como o do Riocentro em 1981… Ninguém foi punido. Em nome de uma causa, de um acordo ou de uma cordialidade, que poupasse a esquerda, os combatentes, os que foram exilados, os que estavam presos e contemplasse também esse batalhão dos porões. Eu acho que aí tem uma questão, porque começa com essa anistia geral, com esse acordo de cavalheiros que permitiu toda essa barbárie. Não é normal um país ter 50.000 assassinatos por ano. Não existe isso. Como que a gente aceita isso? Não dá para aceitar Carandiru. E mais não dá para aceitar a impunidade dessas pessoas. Nós não cortamos o mal pela raiz, como a Argentina fez, como o Uruguai fez, como o Chile de certo modo fez. E olha, olha a democracia deles vê se alguém, algum militar fica tuitando contra a democracia, ameaçando aqui e ali as eleições. Você vê isso na Argentina? Você vê isso no Chile, no Uruguai? Por que nós deixamos isso aqui acontecer? Porque eles não foram punidos. Estão aí com o salário duplicado e ninguém sabe ao certo quanto mais de regalias. Esses caras têm que estar no quartel, nas fronteiras combatendo o tráfico de drogas, que estar ajudando as pessoas vítimas de catástrofes ou de enchentes. Auditar o voto, onde chegamos? Nós estamos pagando o preço por esse erro que cometemos. Eu espero, sinceramente, e espero que esse cara saia, que ele seja julgado e punido. Ele e tantos outros. Espero também que o próximo governo coloque um ponto final na participação de militares no poder. Voltem definitivamente para as casernas e cumpram seu papel constitucional.

E eu, meu projeto é muito modesto. Estou terminando esse terceiro volume. Estou escrevendo alguns ensaios sobre literatura. Quero terminar o meu livrinho de contos e dar algumas palestras.

 

O que você está lendo de literatura brasileira?

— Eu tenho lido alguns. Eu não tenho tempo para acompanhar tudo, ninguém tem. Quem diz que está acompanhando tudo da literatura brasileira, está mentindo. Outro dia, um amigo meu disse: “Eu estou vendo tudo e você não está”. Eu disse: “Você não está. Quer ver que você não está? Você conhece tal poeta do Acre? E conhece os poetas de Belém, as narradoras de Belém?” Hoje você, sozinho, não consegue ler em profundidade. Mas li “Torto Arado”, que foi um sucesso. Grande sucesso. Eu acho um livro muito bonito, muito importante e necessário, bem construído.

Tem esse livro de um jovem escritor Jeferson Tenório, “O Avesso da Pele”, maravilhoso. Ambientado em Porto Alegre, explora o racismo de uma história familiar com o pai, dirigido ao pai. Inclusive, a forma de narrar é muito interessante, esse tom que ele dirige é o pai. Se você conhece um pouco o que acontece naquela cidade, que segundo o narrador, é racista. Tem os contos de uma jovem escritora nordestina, Jarid Arraes, que lançou um romance que ainda não li. Enfim, são coisas que eu tenho lido ultimamente. Agora estou lendo um romance chamado “Meu Nome é Adam”, e a obra do escritor libanês chamado Elias Khoury, que é um dos maiores escritores de língua árabe, provavelmente, pode ganhar o Prêmio Nobel. E sobrou a voz de Noam Chomsky, que, aos seus 95 anos ou mais, ainda bem articulado, falando com muita propriedade…

Mas isso não nos consola, sabe? É uma tendência global. Alguns países se safaram, outros não por suas peculiaridades históricas. Mas eu acredito na literatura, não no sonho e não também literatura como missão, que ela consiga ser redentora. Não acredito nisso. A redenção, se é que a gente pode chamar assim, está nos avanços sociais e eu acredito na mobilização social. Eu só acredito nisso nas mobilizações sociais, de reivindicação. A literatura tem uma capacidade enorme de… É um convite poderoso à reflexão sobre nós mesmos, sobre o mundo. E é isso que é fascinante, que nem sempre nós estamos adequados ao mundo do tempo que a gente vive e nem sempre o mundo espera da gente alguma coisa que possa dar. Então, é na literatura, que a gente encontra todas as formas, uma variedade enorme de formas de amor, de violência, de frustração, de angústia e, porque não, de esperança em que a bomba acabou. •