Livro da arquiteta Clara Ant combina memória pessoal e política do Brasil das causas populares, relatando o que ela viu de perto ao acompanhar Lula durante as quatro últimas décadas da história

 

Às 6 horas da manhã do dia 4 de março de 2016, a Polícia Federal apresentou, simultaneamente, mandados de busca e apreensão para Lula, seus filhos, diretores do Instituto Lula e dezenas de outras pessoas. Na sede do instituto, os policiais chegaram com armas pesadas e uniformes camuflados. Passaram horas a fio remexendo em tudo e levaram os equipamentos que continham dados. Em meu apartamento entraram seis agentes, quatro da Polícia Federal e dois da Receita Federal. Ficaram duas horas e vinte minutos. Mexeram em tudo. Levaram telefones e outros equipamentos, que só foram devolvidos dezesseis meses mais tarde. Ou seja, todos tivemos que comprar equipamentos novos para poder trabalhar”.

A descrição precisa até o detalhe com a qual Clara Ant conta os episódios de busca e apreensão promovido pela Operação Lava Jato pode até surpreender o provável leitor do livro “Quatro Décadas com Lula — O Poder de Andar Junto” pelo tom desapaixonado que ela imprime ao relato de um dos momentos mais traumáticos daquele ano do golpe.

No entanto, o leitor vai se deparar com outros momentos de emoção intensa — e não apenas das tristezas, mas também das alegrias, dos afetos e, por que não, das risadas que ecoaram nessa grande, enorme trajetória de 40 anos de amizade política, de camaradagem sindical e de parceria no trabalho dos dois sindicalistas.

Em um texto que combina memória da formação familiar e intelectual da autora com a memória desse pedaço da história do Brasil, da redemocratização às vésperas da sexta candidatura de Luiz Inácio Lula da Silva, Clara relata sua própria história e, simultaneamente, delineia um perfil do operário duas vezes presidente ao qual poucos tiveram acesso. Como assessora especial da Presidência, ela não apenas testemunhou como também participou intensamente de momentos de trabalho de Lula, das várias equipes que compuseram os dois mandatos, 2003-2006 e 2007-2010, dos encontros com os movimentos sociais, das viagens internacionais e muito mais.

Nesse sentido, é como se das memórias pessoais e políticas, o livro de Clara também estivesse buscando sistematizar também um método de trabalho para atender aquilo que Lula havia lhe pedido. “O trabalho que eu propunha realizar era como o que os continuístas desempenham no teatro ou no cinema: garantir a continuidade das cenas, evitar trucagens e propiciar um conjunto harmônico. (…) Eu mal havia terminado de falar quando Lula chamou seu futuro chefe de gabinete: ‘Gilberto, Clara vai fazer uma coisa bem legal para acompanhar minhas decisões. Veja do que ela precisa e lhe dê um lugar para trabalhar”. Fui parar numa sala muito próxima à dele’”, detalha.

Essa enorme cumplicidade que se plasma entre Lula e Clara teve um antes e um depois, evidentemente, ainda que os dois tenham origens quase antípodas. Clara é filha de judeus poloneses, que se refugiaram na Bolívia ainda durante a Segunda Guerra Mundial. Nascida em La Paz, só veio dar no Brasil aos 10 anos de idade, precisamente em São Paulo e no bairro do Bom Retiro. Estudou na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP justamente quando os estudantes estavam nas ruas, na resistência ao Golpe de 1964. Começou a militância ainda na FAU, quando se aproximou de um grupo trotskista que, nos anos 1970, seria mais conhecido como a tendência Liberdade & Luta — a famosa Libelu.

Uma vez formada, e como professora de urbanismo, envolveu-se nas movimentações sindicais dos anos 1980, foi fundadora da CUT e entrou na política institucional no Partido dos Trabalhadores, pelo qual foi deputada estadual e federal, chegando à Assembleia Constituinte.

Essas linhas gerais biográficas são, no livro-testemunho de Clara, enriquecidas de anedotas, de discussões sobre a conjuntura, de pequenos retratos dos amigos e companheiros, mas sobretudo de sua leitura muito sensível — e sensata — das lutas, das conquistas e inclusive das derrotas que uma mulher tão singular enfrenta no campo político. Em sua escrita singular, Clara não tem meias-palavras nos momentos de fazer críticas ou avaliar passos mal dados, mas também mostra uma capacidade de produzir passagens de ternura e de beleza.

“Quatro décadas com Lula” se inscreve no rol daqueles livros necessários para dar o testemunho desse tempo vivido para quem viveu junto — ou andou junto, como diz a autora. Mas também para quem, no futuro, quiser conhecer a maneira que a geração de- la, Lula, José Dirceu, pegos num mesmo contrapé da história, tentou entender o Brasil estando ao lado de sua gente e elegendo as causas do povo para, enfim, mudar um tanto o destino do país. E a melhor parte é saber que essa turma ainda está por aqui, atuando e pensando com as novas e novíssimas gerações. •

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