O diretor australiano Baz Luhrmann encara a história de um dos maiores artistas da música norte-americana em filme longo e musicais memoráveis, apesar dos furos e romantização do rei

 

 

Que ninguém vá ao cinema ver “Elvis”, de Baz Luhrmann, esperando mais do que entretenimento de alta voltagem. O cineasta australiano que reinventou o musical para as platéias contemporâneas escolhe, conscientemente, fazer uma biografia cinematográfica às avessas, de maneira a contentar o maior público possível. Afinal, não há negócio como o negócio do show, do entretenimento.

Considerando a tendência recente das cinebiografias de astros da música pop, que abordaram personagens vivos ou mortos, como Elton John e Freddie Mercury, o filme de Luhrmann até que se destaca positivamente pela extravagância e pelas liberdade que toma com o roteiro. Biografias extensas, bem pesquisadas e com furos não cabem em obras ficcionais, mas em documentários ou livros. Para o cinema de grandes audiências, e que busca prêmios no Oscar, melhor mesmo é ficcionalizar.

Para isso, escala aquele que é um dos mais bem-sucedidos atores norte-americanos da atualidade. Tom Hanks encarna o Coronel Parker, o empresário que inventou e sacrificou ao mesmo tempo a carreira de Elvis Aaron Presley (1935-1977). É do ponto de vista de Parker, que, no filme, a audiência vai se encontrar com o jovem branco que cresce em bairro negro em Memphis, Tennessee, interpretado por Austin Butler, um ainda jovem ator vindo dos seriados de TV e descoberto para o cinema pelas mãos de cineastas do circuito mais independente, como Jim Jarmusch e Quentin Tarantino.

É uma espécie de jornada do herói às avessas, uma vez que, de cara, conhecemos os mecanismos de construção da imagem do herói pelo olhar daquele que o percebe como potência. Se estivéssemos no terreno mais simples da fantasia, estaríamos junto aos deuses que o ajudam ou atrapalham em sua jornada. Mas Lurhmann tem pressa de construir, em pouco mais dos 15 minutos iniciais do filme, um ambiente em que se destaca a ilusão (e não o mistério), a manipulação e a dependência entre criador e criatura.

O circo e a glamurização das aberrações, o parque de diversões, os espetáculos populares que combinam excitação e medo são a matéria prima de Parker, definido como antagonista e vilão desde o início. Ao mesmo tempo, temos um primeiro e lindo clipe (serão muitos) em que um Elvis adolescente, vivendo num gueto pobre, encontra-se com a música e a dança, observando casais negros dançando blues de roupas e corpos colados e participando de uma missa, onde o gospel revela o transe do corpo pelo som.

No momento seguinte, no encontro de Parker e Elvis, o empresário, interessado numa nova nova atração para audiências jovens, vê um homem no final da adolescência que se apresenta com “cabelo de negro e maquiagem de menina” —, de terno rosa para uma platéia sentada que espera números comportados de música country, o estilo do brancos pobres do mundo rural norte-americano. O que ele testemunha é parte da história: garotas histéricas com o rebolado, o apelo sexual e a voz de Elvis.

Se há, por assim dizer, fidelidade mais canônica aos dados biográficos do artista estão concentrados nesse primeiro terço de filme. Mas Lurhmann, um diretor que costuma fazer elipses temporais e tomar liberdades estilísticas com qualquer que seja o material que se apresente, começa a operar a partir daí seu estilo.

Estreando em Hollywood depois de um triunfo em Cannes com “Strictly Ballroom”, com uma versão adolescente de um dos textos mais encenados de William Shakespeare, “Romeu e Julieta“”, o australiano com gosto pelo exagero e pelo grand guignol até agora não tinha se aventurado por um personagem real. Em seu último filme, “Great Gatsby” (2013), centra num personagem clássico da literatura norte-americana e que teria sido inspirado num magnata do cinema. Mas o faz pela releitura do romance de F. Scott Fiztgerald.

O problema de lidar com Elvis, um sujeito que viveu sua breve vida sob os olhos do público e cuja morte 45 anos atrás ainda não é aceita por alguns fãs mais fanáticos, é que há tantos fãs (disco de 1959, quando ele tinha apenas quatro anos de carreira, já apontava que “50 milhões de fãs de Elvis não podem estar errados”) e tantos donos de sua história que é preciso mais que suspensão de descrença para topar “Elvis”, o filme.

Se os números musicais são esplendorosos e conduzidos com muita graça por Butler e coadjuvantes, sobretudo nas suas voltas à comunidade negra do blues em Beale Street — a casa onde se apresentam nada menos que B.B. King (Kelvin Harrison Jr.), Sister Rosetta Tharpe (Yola), Big Mama Thorton (Shonka Dukureh) e Little Richard (Alton Mason), este em performance eletrizante — o mesmo, no entanto, não pode se dizer para a “politização” enfiada à fórceps, que toca nos temas do racismo e da luta pelos direitos civis, os assassinatos dos Kennedy, John e Bobby e o mal-estar americano na Guerra do Vietnã, sobretudo no período 1968-1973, quando os Estados Unidos começam a sofrer perdas que resultam em sua derrota.

Ao mesmo tempo, o contraste entre um Hanks crescentemente repugnante, moral e fisicamente, viciado em jogo e no dinheiro que Elvis produz para ele, e a sensualidade do cantor, ator e performer que fazia as mulheres atirarem calcinhas no palco, se revela com toda a qualidade que uma produção apuradíssima, figurinos que são réplicas exatas de vestimentas de palco crescentemente extravagantes (e cafonas, cá entre nós) e aquelas coreografias icônicas que tanto escândalo causavam na América conservadora perfeitamente reproduzidas.

Há muito que Luhrmann não faz cinema de autor ou nada parecido com isso. Desde o Oscar com “Moulin Rouge”, em 2001, sua especialidade é mesmo essa de criar musicais grandiloquentes, com um pé na cafonice e na estetização burlesca, recuperando linguagens de palco distantes do conceito limpinho e arrumadinho que impera na indústria do cinema.

Nos filmes anteriores, ele se aproximou da trilha sonora da maneira pós-moderna, usando bandas mais contemporâneas — nos anos 1990, grunge para os amores venezianos do século 14; nos anos 2000, os delírios de absinto da Paris do século 19 se dão ao som de clássicos da dance music; enquanto a era do jazz do “Gatsby” se desdobra em rhythm’n’blues e rap dos anos 2000, com direito a Jay Z e Beyoncé.

Em “Elvis”, apesar das cenas incríveis com as canções que abordam de forma quase que excessivamente didática as influências dos rimos negros que desembocariam no rockabilly, no rock’n’roll, nas baladas românticas que fundaram o repertório de Elvis, ele não tinha outra saída. A não ser selecionar e editar um punhado de canções de forma a contar as guinadas de personagem do Elvis — “The pelvis”, rebelde, roqueiro, romântico, astro de cinema, showman de Las Vegas. E, ao mesmo tempo, criar números musicais na tela grande energéticos e dramáticos, deixando para trás a noção de fidelidade ou rigor também em relação ao conjunto da obra.

Tudo isso ressalvado, “Elvis” está arrebatando bilheterias por onde passa, exatamente por essa capacidade de falar com um público médio e, ao mesmo tempo, criar um público que ainda não existe, alavancar a base de fãs. E isso apesar de o filme deixar a desejar em termos de ritmo justamente no período decadente e mais conflituoso da relação Parker-Presley, bem como em nome da classificação indicativa, ameniza muito a relação do popstar com álcool e barbitúricos. Luhrmann, definitivamente, entende bem melhor da parte brilhante do que da obscura do roteiro. •

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