Gil, um espírito luminoso
O cantor e compositor completou 80 anos de curiosidade e inquietude musicais. Relembre aqui alguns passos de sua trajetória como artista, poeta e agitador das causas da cultura
Gilberto Passos Gil Moreira completou 80 anos no domingo, 26 de junho. É apenas uma data, mais um aniversário na vida deste artista superlativo e cidadão das causas da cultura que começa no ano de 1942. Gil puxa a fila da geração da MPB que chega às oito décadas produtiva, inquieta e ainda personagens decisivos na cultura nacional, em talvez aquela que seja uma de suas expressões ao mesmo tempo mais acessíveis e mais interessantes: a música popular.
Em agosto, é a vez de Caetano Veloso, o grande companheiro de Gil na aventura tropicalista, seguido por Milton Nascimento, em outubro, e Paulinho da Viola, em novembro. É um acaso — e também não é — o fato de esses quatro artistas terem despontado na música brasileira mais ou menos no mesmo período. E, ainda que com influências e trajetórias diversas, terem participado dos mesmos movimentos e partilhado de muitas das inquietações musicais e estéticas.
Refiro-me aqui, evidentemente, a determinados momentos-chave do que se convencionou chamar, depois disso tudo acontecido, de música popular brasileira. O primeiro é a mudança de inflexão do samba para a Bossa Nova, no final dos anos 1950.
Não são um nem dois compositores desse período que relatam o impacto de ouvir no rádio a voz pequena, não impostada, do baiano João Gilberto em “Chega de Saudade”. Havia a inovação na maneira de tocar o violão, mais sincopado e percussivo, e a quase ausência de outros instrumentos nos arranjos. Inclusive o jovem Gilberto Gil, à época um estudante que ainda não pensava em virar artista vivendo em Salvador.
A Salvador dos anos 1960 era uma cidade de intensa atividade cultural, ainda pequena o suficiente para ter preservado tradições culturais populares e que emergiam em festas de largo, no Carnaval e outras datas religiosas ou cívicas. E cosmopolita a ponto de ter uma cena local de intelectuais e artistas do porte do músico Dorival Caymmi, do escritor Jorge Amado e do artista plástico Carybé.
Não é à toa, portanto, que Salvador tenha sido nessa época o polo cultural que produziu dois marcos culturais importantes e fundamentais: a Tropicália e o Cinema Novo. Mas se Salvador reunia as condições estéticas e o ambiente intelectual para a emergência de novas ideias e maneiras de fazer cultura, ainda era no Sudeste que estavam os meios de produção e disseminação, sobretudo para a música popular.
Desde o início de sua carreira, vemos esse Gil sincrético e curioso, procurando as pontes entre o trabalho como administrador em uma grande empresa quando vem para São Paulo e a como compositor, com a influência forte da música do sertão e do litoral, mais as pitadas dos eruditos Hans-Joachim Koellreutter, que dava seminários abertos na UFBA, Rogério Duprat e Júlio Medaglia, os músicos ligados ao grupo concretista em São Paulo.
Na era dos festivais e, depois do lançamento do disco-manifesto Tropicália, emerge um compositor maduro capaz de ao mesmo tempo de identificar no grupo paulistano Mutantes a força jovem do rockn’roll para se apresentar no festival da Record com “Domingo No Parque”. E, em seu disco “tropicalista”, de 1968, continuar investigando as possibilidades das canções de protesto à moda tropicalista — “Marginália III”, cuja letra em parceria com Capinam, que esteve ligado ao Centros Populares de Cultura, é exemplo de dessa capacidade de síntese tão gilbertiana.
Também foi Gilberto Gil que, apesar de participar da famosa ação de marketing conhecida como a passeata “contra” a guitarra elétrica, que contrapôs o grupo pós-bossanovista aos tropicalistas, Elis contra Nara Leão, melhor compreendeu o que Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band significava para a música pop mundial.
De perfil mais discreto do que Caetano Veloso, Gil esquivava-se das disputas mais acirradas dos tropicalistas, mas nem por isso era menos ativo e influente. A aventura tropicalista foi interrompida sob o tacão dos milicos, que prenderam Caetano e Gil em janeiro de 1969, depois da decretação do AI-5.
À época, a geração que surgiu nos festivais da canção era o que podia se chamar hoje de pop, transitando pelos meios de comunicação de massa, atraindo a atenção de um público jovem e entusiasmado e, sim, vendendo muitos discos e lotando shows. Maiores que eles, apenas Roberto Carlos, que corria numa paralela mais popular, e os artistas que tinham vindo da Jovem Guarda e seguiam numa trilha mais romântica.
A prisão de Caetano e Gil, no Rio, o período de prisão domiciliar, em Salvador, e exílio em Londres, portanto, causaram enorme comoção e não apenas entre seu público. De certa maneira, era a senha para avisar que o que viria em seguida seria ainda mais duro e terrível. Outros artistas foram presos, perseguidos e torturados. As artes, a cultura e a imprensa eram consideradas subversivas por critérios incompreensíveis e a oposição política ao regime foi calada, presa ou morta.
Na Inglaterra, no entanto, Gil encontra um ambiente multicultural estimulante e se aprofunda nas aproximações com a contracultura. Os discos de Londres, se têm algo de melancólico e nostálgico, refletem esse clima de pesquisa musical e poética, de contato com a diversidade dos sons dos imigrantes do Caribe, especialmente o reggae, e um mergulho mais vertical na musicalidade do rock.
Talvez por isso. na década de 1970, especialmente a partir de 1972, de enfiada Gilberto Gil produz pelo menos três discos que, se não estão em qualquer ranking decente de melhores da música popular brasileira, deveriam estar: “Expresso 2222”, “Refazenda” e “Refavela”.
O marco de “Expresso 2222”, com suas canções futuristas — “começou a circular o Expresso 2222, que parte direto de Bonsucesso prá depois” — que o ligam simultaneamente ao “Cérebro Eletrônico”, de 1969, e ao space rock que estava em voga na Inglaterra, combinadas ao resgate de parceiros como a Banda de Pífanos de Caruaru, em “Pipoca Moderna”, e o frevo de Onildo Almeida (“Sai do Sereno”) mostra um compositor que amadurece suas influências diversas numa elocução completamente pessoal e inovadora.
Três anos mais tarde, da viagem ao interior real e na busca por uma poética mais calma e reflexiva, ele lança “Refavela”. Este é um daqueles raros álbuns que não tem uma — nem uma! — faixa ruim. E tem verdadeiras obras primas, como “Ela”, “Pai e Mãe” e, sim, “Refazenda”. Além de parcerias-luxo, com Dominguinhos e Jorge Mautner (“Lamento Sertanejo” e “O Rouxinol”). E uma versão versão sublime de Dominguinhos e Anastácia — “Tenho Sede”.
Com “Refavela”, no entanto, Gilberto Gil entra de cabeça em outro lugar, numa África ao mesmo tempo real — o disco é também fruto de uma viagem a Lagos, Nigéria —, imaginária e ancestral.
É bem verdade que “Refavela” vem precedido de uma série de aproximações que Gil já vinha de alguns anos fazendo com o afoxé, dos bloco Filhos de Gandhi em particular, e do “Gil & Jorge — Ogum, Xangô”, um disco-jam que o reuniu com outro mestre do violão percussivo e suingado, Jorge Ben, num estúdio em longos sets de improviso, vocalises e diálogos musicais entre os dois homens negros, celebrando seus orixás do candomblé e da macumba, os batuques ouvidos no terreiro e vastidão da herança africana na músicas. Álbum duplo de apenas 9 faixas, chamar “Gil & Jorge” de um extenso e belo ritual de encontro também seria uma maneira justa de caracterizá-lo.
E aí vem “Refavela”, talvez o maior e mais surpreendente disco de Gil de toda a sua carreira até agora. Se não foi concebido com um álbum-conceito, disfarça bem, pois desde que se ouve a voz de Gil em “Refavela” até quando morre o refrão de “Patuscada de Gandhi”, a sequência das canções conta uma história, a da redescoberta da “alegoria, alegria e dor/ rico brinquedo de samba enredo/sobre medo, segredo e amor”, das perguntas que um menino negro (pode) fazer sobre sua origem ocultada pela escravização e que (também pode) chegar ao seu orixá de cabeça: “O filho perguntou pro pai: “Onde é que tá o meu avô/ O meu avô, onde é que tá?”/ O pai perguntou pro avô:/”Onde é que tá meu bisavô/ (…) Tataravô, bisavô, avô/Pai Xangô, Aganju/ Viva egum, babá Alapalá!”
“Refavela”, além disso, parece, novamente, adicionar à musicalidade já de altíssima potência de Gil outros interesses e campos de pesquisa, fazendo sua música mais ainda negra, global e comunicável pelo que tem de rítmico, percussivo e, sim, dançante. Não à toa, é Gil começa a se despedir dos anos 1970 numa parceria hippie-discothéque com Rita Lee em “Refestança”, registro de show ao vivo da dupla, e com “Realce” (1979), que reflete a projeção internacional do cantor desse período, sobretudo depois do primeiro convite a participar do Festival de Jazz de Montreux, na Suíça, em 1978. Um lado de hits que perduram até hoje como “Toda Menina Baiana”, “Superhomem – A Canção”, “Tradição” e, claro, “Não Chores Mais”, versão para o reggae de Vincent Ford consagrado na voz de Bob Marley.
Com carreira nacional e internacional de shows e apresentações de vento em popa nos anos 1980, Gil terá discos mais irregulares a partir de “Luar” (1981). Não será o único, no entanto. Tanto a emergência de uma nova geração de músicos e bandas, mais afinadas com as tendências internacionais, como um certo gigantismo dos estúdios e produtores equivocados abalam a capacidade de renovação de toda a geração tropicalista.
Ainda assim, é nesse período que Gil compõe “Drão”, “A Linha e o Linho”, “Tempo Rei”, “Esotérico”, “Extra”, entre outras. É a época de um Gil de extremos, capaz tanto de correr atrás do prejuízo geracional com uma equivocadíssima caricatura do que acontecia no cenário musical de São Paulo com “Punk da Periferia” como de criar um hino simples, clássico e emocionante, como “Andar Com Fé”, que até hoje é garantia de pista cheia e alegria.
O ecletismo real de Gilberto Gil também o fez se aproximar das novas gerações de músicos, especialmente daqueles que estavam fazendo um esforço estético de abrasileirar as influências de sons surgidos ou colocados em evidência depois do punk britânico, como o ska dos Paralamas do Sucesso, nos anos 1980. Ou, por outra, internacionalizar ainda mais a tradição, como o mangue beat de Chico Science & Nação Zumbi, nos anos 1990. Quem viu shows conjuntos de Gil e Paralamas, Gil e Chico, não esquece da sintonia fina que se materializava no palco e eletrizava as plateias.
O interesse de Gil nos temas da espiritualidade, que datam da era hippie, vão reaparecer e se renovar pela tecnologia e virtualidade digital nos discos mais espaçados dos anos 1990 — “Parabolicamará”, de 1991, e “Quanta”, de 1997. Dos anos 2000 para cá, Gil parece ter ido reestudar toda sua trajetória, criando projetos mais ou menos temáticos dedicados às raízes sertanejas em “Banda Larga Cordel”, os ritmos mais dançantes baianos e nordestinos “Fé na Festa” e, claro, o samba em “Gilbertos Samba”.
É preciso lembrar também que, neste século 21, Gil retomou uma carreira política que ensaiou no final dos anos 1980, quando foi eleito vereador em Salvador pelo MDB e aceitou ser ministro do primeiro mandato do então presidente Lula, permanecendo até a metade do segundo mandato.
Se Gil não existisse, no plano terreno, seria difícil de inventar um artista tão interessante e carismático como ele. Recentemente eleito para a Academia Brasileira de Letras, pelo conjunto de sua contribuição artística e intelectual à cultura brasileira, Gil também abriu sua casa e sua intimidade para a realização do documentário-reality show Em casa com os Gil, em exibição pela Amazon Prime, o que reconfirma seu talento para jogar em todas as posições, como se quisesse — e, melhor, conseguisse — estar, ao mesmo tempo, no papel do centro-avante, do goleiro e até do juiz no jogo da música e da cultura brasileiras. •