O condomínio das escravidões modernas
Quarto romance de Eliana Alves Cruz, “Solitária” expõe as feridas da desigualdade racial e social em história ágil sobre mãe e filha no trabalho doméstico
É surpreendente a produtividade da escritora Eliana Alves Cruz. Em apenas sete anos, a ex-jornalista de 56 anos chegou ao quarto romance em passo acelerado. Em “Água de Barrela” (2015), livro que recebeu o prêmio Silveira Oliveira da Fundação Palmares, ela reconstitui a história de sua ancestralidade, a partir de entrevistas com uma tia-avó ainda viva e encerrada num manicômio. Seguiram-se o policial “O Crime do Cais do Valongo”, em 2018, ambientado no Rio de Janeiro do século 19, e “Nada digo de ti, que em Ti Não Veja”, dois anos depois, em que a escritora se mantém no mesmo cenário das vidas de pessoas escravizadas, mas em chave mais lírica.
O quarto romance de Eliana gira em torno de Eunice, trabalhadora doméstica, e sua filha Mabel, que vai muito criança conviver no mesmo condomínio de luxo com a família para a qual a mãe trabalha. Com referências explícitas tanto a outras obras que tratam do tema, como o filme “Que horas ela volta” e recheado de marcas de histórias e tragédias reais do noticiário recente, “Solitária” mergulha na intimidade dessas duas mulheres, cuja diferença geracional contrapõe a submissão da mulher negra trabalhando para uma família branca obscenamente rica e a jovem que se arranca desse destino pela via da consciência racial e de classe em direção a outro futuro.
Este recém-lançado “Solitária” representa, a um tempo, o salto para a contemporaneidade na narrativa e a publicação por uma editora maior. Isso da nova casa não teria a menor importância, se os mecanismos de divulgação e de entrada na imprensa fossem mais democráticos. “Água de Barrela” (editora Malê), esforço ficcional sério e honesto de recriar a história não-escrita daqueles que foram arrancados de muitas Áfricas diferentes para virem trabalhar a terra nas Américas e que se detém, com muita pesquisa, o extraordinário material de memória familiar e alguma imaginação, nas histórias das mulheres que antecederam da autora.
Apesar do prêmio e do ineditismo da narrativa, “Água de Barrela” passou meio despercebido até que o boom editorial das escritoras africanas forçou as editoras correrem atrás para publicar ou relançar escritores e escritoras negras brasileiras. Na esteira do sucesso de “Torto Arado”, e dos relançamentos das obras de Carolina Maria de Jesus, “Água de Barrela” voltou às prateleiras reais e virtuais.
Se “O Crime do Cais do Valongo” (editora Malê) sofreu da síndrome da expectativa do segundo livro e entregou um pouco da imaturidade da autora num thriller pouco envolvente e arrastado, “Nada Digo de Ti, Que em Ti Não Te Veja” (editora Pallas) recupera a capacidade de fabulação de Eliana que, desta vez, escolhe como protagonista um personagem invisível entre os invisíveis, um homem trans no Brasil escravocrata.
De volta à “Solitária”, ainda que essa descrição pareça ser a de um romance de tese e, por ocasiões pontuais resvale exatamente nisso, no declaratório ou no muito explicado, a chave desse romance aparece aos poucos, nas revelações das ligações afetivas profundas e complicadas que existem entre esta mãe e esta filha. O microcosmo do condomínio como mais do que uma metáfora, mas o palco mesmo onde as desigualdades todas, sobretudo a racial e a social, se confrontam e se embolam em incidentes dramáticos é um dos grandes achados de “Solitária”.
O outro, que vem ali pelo final e que amarra a emoção dos acontecimentos que se sucedem de forma rápida em uma espécie de epifania, é quando as vozes das personagens Eunice e Mabel são substituídas por vozes inanimadas dos cômodos e quartos onde se desenrolam as tramas, numa espécie de paráfrase dos quartos que dão título aos livros de Carolina Maria de Jesus, se não a pioneira entre as escritoras mulheres e negras, a mais importante do século 20.
Com “Solitária”, Eliana Alves Cruz atinge um patamar literário que transforma seu nome em um dos mais interessantes do Brasil contemporâneo. Que sua produtividade e rapidez em publicar sigam sendo seu guia, pois com essa trajetória é de se supor que vem ainda muita coisa boa por aí. •