‘Medida provisória’ um retrato do Brasil
Filme de estreia de Lázaro Ramos na direção conta o dia em que o governo brasileiro resolve devolver todos os descendentes de escravos para a África
Se tivesse sido lançado, como previsto em 2020, o impacto de “Medida Provisória”, filme dirigido por Lázaro Ramos e estrelado por Taís Araújo, Alfred Enoch, Seu Jorge e Adriana Esteves, talvez tivesse sido menor. Mas estamos em 2022 e desde a estreia tornou-se já um filme-fenômeno. Além de cinemas cheios, fazendo uma impressionante bilheteria de 85,5 mil apenas no primeiro final de semana, as sessões têm chamado a atenção pelo fato de, em muitos casos, acabar com manifestações contra o atual governo.
Fiel às suas raízes teatrais, Lázaro montou uma espécie de peça-didática sobre racismo projetada num futuro próximo: exatamente no dia em que será paga a primeira indenização a uma mulher, descendente de pessoas escravizadas, o governo brasileiro começa uma ofensiva de “devolução” dos negros ao continente africano.
Com traços da estética afrofuturista, acompanhamos, portanto, a jornada de dois primos, Antônio (Alfred Enoch) e André (Seu Jorge), numa escalada de violência e perseguição. A mulher de Antônio, Capitu (Taís Araújo), é médica. Antônio, advogado, é um homem da palavra. André, jornalista e blogueiro, de ação. Todos moram num apartamento de classe média no Rio de Janeiro.
Nos primeiros 15 minutos de filme, acompanhamos esse núcleo central, como se fosse um primeiro capítulo de telenovela, incluindo os travellings rápidos pela exuberância da beleza da Baía de Guanabara; as filmagens de alto à noite; em suma, os cartões-postais do Rio.
Até que entram em cena, como se fosse num segundo ato, o núcleo de poder branco, com a representante de um Ministério da Devolução (Adriana Esteves); a sinistra Dona Izildinha, vizinha dos primos Antônio e André, em participação de Renata Sorrah.
A referência ao ritmo e ao desenrolar de uma telenovela — ou de um episódio de minissérie em streaming — não é fortuita. A produção de Daniel Filho, um dos responsáveis, entre outras coisas, por levar Janete Clair para a Rede Globo e por séries como “Malu Mulher” e “Carga Pesada”, deixa clara a intenção de atingir o grande público.
Lázaro e Taís também têm origem na telenovela. Atuaram juntos em pelo menos duas novelas e estrearam a série “Mister Brau”. Ambos têm atuações fortes nas redes sociais tanto na discussão do racismo como na da cultura.
Taís e Lázaro, nascidos no final da década de 1970, pertencem também à geração de profissionais negros na tevê aos quais foram designados papéis de protagonismo e de não-subordinação.
Talvez por isso que Lázaro tenha escolhido para estrear na direção de um longa metragem a adaptação de uma peça teatral de 2011 de Aldri Anunciação, uma vez que o texto da peça permite um elenco quase que em sua totalidade composto por pessoas negras. É aí também que reside uma das forças do filme; a representatividade num país que escamoteou seu racismo estrutural até anos bem recentes.
Nesse sentido, a escolha de não-atores em papéis-chave para o desenrolar da trama resvala em textos excessivamente enunciados como se fossem recitados. Exceção aí é o rapper Emicida, cujo traquejo em programas de entrevistas na televisão e, por assim dizer, sua desenvoltura no tema da discussão do racismo em camadas diversas — só ver o documentário “Amarelo” sobre caminho percorrido até o show no Theatro Municipal em 2019 — confere um ar de alegoria ao que é mais duro em outros casos.
Outro problema do filme são momentos em que a explicação transcende a ficção, o que vai resultar numa cena fraca com uma espécie de justiçamento em paralelo e que provoca, de certa forma, a resolução dramática do filme.
Creditando-se à inexperiência do diretor ou a escolhas conscientes para reforçar a veia didática e reiterativa da tese central de “Medida Provisória”, o fato é que esses momentos quebram aquilo que se chama de “suspensão da descrença”, aquela qualidade do bom texto narrativo de ficção que consiste fazer o leitor ou espectador aceitar premissas inverossímeis.
Em outras palavras, quem for esperando um marco do afrofuturismo como “Pantera Negra” ou do cinema alegórico como “Parasita” vai dar com os burros n’água.
No entanto, o filme-fenômeno consegue entregar vastas emoções, mesmo com suas imperfeições. O trio central composto por Taís Araújo, Enoch — ex-ator de ”Harry Potter” e da minissérie How to ”Get Away With Murder” — e Seu Jorge, bem como coadjuvantes de papéis pequenos, mas decisivos, caso de Flávio Bauraqui, e a potência da trilha sonora de Rincón Sapiência fazem o filme valer a pena. Sobretudo se visto na tela grande do cinema, como se deve. •