O legado de Angeli
Um dos mais talentosos cartunistas brasileiros de todos os tempos anuncia aposentadoria por questões de saúde. Ao longo de 50 anos como um dos mais influentes artistas do país, o paulistano fez de sua obra um retrato duro e crítico da realidade nacional
Quem acordou cedo na última quarta-feira, 20 de abril, foi surpreendido por um tuíte da família do cartunista Angeli, anunciando seu desligamento profissional da Folha de S. Paulo, jornal onde trabalha desde 1973. Ele foi diagnosticado com afasia, condição neurodegenerativa que afeta fala e escrita. É como se uma das maiores estrelas dos quadrinhos, do cartum político e, claro, da crônica dos costumes da sociedade brasileira tivesse se apagado.
Apesar do choque inicial, é apenas a aposentadoria precoce. Angeli tem 65 anos. E é um dos maiores artistas gráficos que o Brasil viu nascer na segunda metade do século 20. Ainda que já estivesse se afastando aos poucos nos últimos anos, em passo mais lento devido aos problemas de saúde — e um tanto à sua personalidade mais introvertida e reclusa — ainda produzia capas para a revista Piauí e charges para a Folha.
Nascido em São Paulo em 1956, Angeli estreou a tira “Chiclete com Banana” no caderno Ilustrada ainda na década de 1970. A partir dali, criou personagens que se tornaram emblemáticos da cena cultural paulistana, como Rê Bordosa, Bob Cuspe, Os Sktrotinhos, entre muitos.
Em tempos de censura e repressão política e policial nas ruas, como ainda a maior cidade industrial do país, São Paulo, determinadas expressões artísticas florescem pela sua capacidade de sintetizar. E quase que não há uma forma mais breve do que unir imagem ao texto do cartum e das tirinhas. Driblava-se os olhares vigilantes vários, dos donos de jornal aos censores propriamente ditos.
A cena dos quadrinhos no Brasil dos anos 1970 é um exemplo disso. Além de uma série de publicações específicas dessa área, publicadas de forma independente, como a revista Grilo, havia enorme demanda para artistas gráficos nos veículos da imprensa alternativa, alguns de circulação nacional e tiragens semanais.
Com a abertura “lenta, gradual e segura”, também a grande imprensa foi despertando para os mais jovens e com outras referências culturais que tornavam-se também leitores e assinantes de jornais e revistas. Esse cenário deságua nos anos 1980 naquilo que podemos, de fato, classificar como um período de efervescência cultural, pelo menos nas grandes cidades brasileiras.
É nesse contexto que Angelil, ao lado de Laerte, Luis Gê e Glauco fundam a revista Chiclete com Banana, em 1985. A publicação seria quase um laboratório de experimentações nos quadrinhos e influência decisiva para gerações de leitores e quadrinistas.
Com uma habilidade notável para criar personagens e humor afiado, Angeli registrou nas tiras e quadrinhos as profundas transformações pelas quais passava o Brasil da redemocratização, enfatizando tipos urbanos como o punk Bob Cuspe, os frequentadores e frequentadoras de bares de São Paulo, como Rê Bordosa, em sua ressaca permanente. Também abriu espaço aos velhos hippies Wood e Stock, ao guru Rallah Ricota e tantos outros.
Nesse sentido, pode-se dizer que, nessa criação quase compulsiva de personagens observados nas ruas, Angeli incorporava algo da tradição da crônica literária, plasmando modos de se expressar que surgiam, gírias e até posturas corporais.
Seu traço, preciso nos detalhes, mas, ao mesmo tempo sujo e sem pudores, contrastava com aqueles que eram seus companheiros de geração, de revista e que culminaram naquela que será a coisa mais ousadas de quadrinhos em jornal desse período: “Los 3 Amigos”, uma história quase completa e colaborativa.
Inicialmente assinada em conjunto pela Laerte e por Glauco (1957-2010), chegou a ter convidados especiais como Luis Gê e, mais adiante, Adão Iturrusgarai. Transformados em caubóis, em algum lugar de fronteira, Los Três Amigos — que poderiam ser quatro — tinham aventuras diversas e meio entediadas, cada um montado em seu pangaré, nos quais os próprios quadrinistas eram personagens e com o detalhe de contrastar no mesmo espaço físico do jornal desenhos tão diferentes.
Angeli também tinha uma relação forte com a música, especialmente o punk e o pós-punk britânico dos anos 1980, como se depreende pelos personagens e, mesmo, pelas tiras auto-reflexivas que, a partir dos anos 2000, ele publicava sob o nome de “Angeli em Crise”. Ali, aparece encerrado em seu apartamento e sua coleção enorme de discos em vinil.
Não foi esse gênero musical, no entanto, que o cartunista topou ilustrar para um clipe animado encomendado pelo UOL. A partir da tradução de uma canção de Cole Porter, “Let’s do it”, e com as vozes de Chico Buarque e Elza Soares, o clipe “Façamos”, dirigido pela jornalista Mara Gama, foi um tour de force tecnológico e criativo.
A canção de Porter convida a amada (ou o amado) a aceitar o convite de um encontro — ou de um relacionamento — em ritmo de jazz e, a partir disso, descreve como os animais todos o fazem. No roteiro do clipe, isso foi transformado em diversas cenas das costas de um sujeito enorme, já bastante tatuado, e que está sendo tatuado novamente. •