Advogado e um dos coordenadores do Prerrogativas se diz preocupado com a falta de contenção de Bolsonaro, que mantém ataques permanentes ao Judiciário e ao Estado Democrático de Direito. A tentativa de calar artistas e críticos ao governo mostram a sombra do arbítrio. “Não se pode mais tolerar os ataques de Bolsonaro. Ele não tem limites”, alerta

 

 

Os ataques de Jair Bolsonaro ao regime democrático e ao Poder Judiciário voltaram. Primeiro, ocorreu a absurda tentativa de censurar manifestações políticas de artistas que participaram do Festival Lollapalooza, no último final de semana. O PL de Jair Bolsonaro acionou o TSE após a cantora Pabllo Vittar desfilar entre o público agitando uma toalha com o rosto do ex-presidente Lula.

O fato de um ministro do Tribunal Superior Eleitoral, Raul Araújo, ter concedido liminar tentando constranger os artistas é um dos pontos mais preocupantes. A opinião é do advogado Marco Aurélio de Carvalho, coordenador do Prerrogativas. Ele avalia que a posição do ministro causa “preocupação”.

Embora o próprio Raul Araújo tenha revogado a decisão, alegando que foi induzido a um erro, Marco Aurélio alerta: “É necessário ficar atento à régua utilizada pelo ministro para tomar suas decisões”. Antes disso, o ministro autorizou que a manutenção de outdoors com mensagens de apoio a Bolsonaro. “São dois pesos e duas medidas”, observa.

A tentativa de censura acabou fazendo com que mais artistas se manifestassem ainda com mais força durante o evento. Apesar da insatisfação, Bolsonaro não tratou mais do assunto. Porém, desde então, suas aparições públicas vêm sendo recheadas de novos ataques à Constituição e ao Judiciário.

O comportamento autoritário e antidemocrático do presidente da República é recorrente. O problema é que Bolsonaro segue impune. Na opinião do advogado, que é sócio fundador da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia, afastaram Dilma Rousseff uma presidenta, legitimamente eleita, sem qualquer crime de responsabilidade. E o atual presidente dá mostras reiteradas de crimes de responsabilidade e outros.

“Isso é mais grave, porque sequer instaura-se um processo de afastamento contra um presidente que comete crimes de responsabilidade quase que diariamente”, critica. Leia, a seguir, os principais trechos da entrevista:

Focus Brasil — Na semana passada, o Partido Liberal sigla de Bolsonaro, acionou o TSE para censurar manifestações políticas no festival Lollapalooza. Qual é a sua avaliação sobre essa tentativa de volta da censura?

Marco Aurélio Carvalho — Recebi com muita preocupação e com muita indignação a notícia de que o presidente da República acionou o Tribunal Superior Eleitoral numa tentativa de intimidar e de censurar a classe artística do país. Não podemos mais conviver com esse tipo de postura autoritária num regime democrático e em um Estado de direito. Isso revela um equívoco de dupla dimensão. A tentativa de censura é inaceitável no regime democrático. E o presidente parece não perceber isso. Ele tem pouco apreço pelas instituições e pelo Estado de direito. O outro equívoco é de natureza política: a tentativa de censura acabou, na verdade, alimentando a classe artística a se manifestar de forma ainda mais contundente. A comunidade jurídica recebeu com indignação e perplexidade a notícia dessa medida e, por outro lado, com espanto porque revela esse duplo equívoco.

O triste episódio abre uma janela de oportunidade para que o Tribunal Superior Eleitoral, reafirmando a sua competência, possa ratificar os princípios e vetores da ordem constitucional vigente do nosso regime democrático. É isso o que se espera. É preciso um recado forte do tribunal de que esse tipo de atitude não será tolerada. O tribunal precisa manter no país as condições normais de “temperatura e pressão” para as disputas de natureza eleitoral.

 

— O ministro, que havia decidido censurar os artistas, acabou revogando a própria decisão. Ele alegou que o advogado do PL o induziu ao erro.

— Com absoluta franqueza, não acredito que houve qualquer tipo de indução a erro. A petição do advogado constituído pelo presidente Jair Bolsonaro é de uma clareza indiscutível. O que se pretendia de fato era calar a classe artística, impedir manifestações de cunho político em eventos públicos. O precedente, caso, eventualmente, a medida tivesse êxito, seria preocupante para o regime democrático. Não tenho nenhuma dúvida. Acho que a medida foi bastante clara. Vimos um equívoco por parte do ministro quando tomou essa decisão mesmo que em caráter liminar, mas de toda sorte, reviu essa posição. Ele merece, portanto, nosso reconhecimento e aplauso. As pessoas não podem, sobretudo em funções públicas, ter qualquer tipo de compromisso com o erro. Foi um ato de grandeza acabar reconhecendo o equívoco e tentar corrigi-lo. Mas foi um equívoco de grandes proporções. Se, eventualmente, essa medida tivesse êxito, seria uma ameaça muito grave à nossa democracia. Criaria um precedente muito delicado.

Agora, o que causa espanto é que esse mesmo ministro tomou outra medida, no nosso entender, com todo o respeito,  absolutamente equivocada em relação a um episódio muito preocupante: os outdoors instalados em apoio ao presidente Jair Bolsonaro, em diferentes cidades do país, com cunho indiscutivelmente eleitoral. Isso ocorreu antes das eleições, configurando, portanto, campanha antecipada e, eventualmente, até abuso de poder econômico. Então, precisamos acompanhar as decisões do ministro para entender com que régua, com que métrica ele se conduz. Há uma contradição. Em uma situação flagrantemente ilegal, ele teve uma postura extremamente condescendente, generosa e contemporizadora. Já numa situação escandalosa, ele, em caráter liminar, acaba tomando uma decisão que poderia criar um precedente muito preocupante.

 

— Esse caso das manifestações políticas no Lollapalooza deve ser utilizado pela extrema-direita para alegar “legitimidade” das ideias absurdas, como se tudo fosse apenas opinião política. Quais os limites para a liberdade de expressão e de expressão.

— A liberdade de expressão, que é um direito sagrado garantido pela Constituição, não pode em hipótese alguma ser justificativa para o cometimento de ilícitos de natureza eleitoral ou eventualmente até para o cometimento de crimes contra a honra, seja quais forem, calúnia, difamação ou injúria. Muito pelo contrário, a liberdade de expressão tem limites claros num regime democrático, estabelecidos pela Constituição. O desrespeito a esses limites não pode ser tolerado porque provoca prejuízos irreparáveis até para a própria democracia.

 

— Mas os limites da liberdade de expressão estão claros ou é necessário que o Judiciário faça uma reafirmação para que fique claro o que é permitido e o que não é?

— Os limites da liberdade de expressão no nosso país estão claramente definidos no texto da Constituição de 1988. E não podem ser flexibilizados, qualquer que seja o pretexto. É realmente preocupante que o presidente esteja de forma recorrente ameaçando a ordem democrática, a ordem constitucional vigente, com o pretexto de se manifestar sobre tais e quais assuntos. A liberdade de expressão não pode, em hipótese alguma, ser abrigo para o cometimento de delitos contra a honra, de delitos de natureza eleitoral ou quaisquer que sejam os delitos. Ela não pode ser uma espécie de “guarda-chuva”, uma justificativa. Eu não posso utilizar a liberdade de expressão como justificativa para ofender as pessoas, para ameaçar as instituições ou para defender ideias que, de alguma forma, não estejam abrigadas pelos contornos que a própria Constituição define para as manifestações de pensamento no nosso país.

 

— O presidente voltou a fazer declarações ameaçando desrespeitar a Constituição e ameaçando o sistema democrático. Ele chegou a dizer que “cumprir a Constituição chega a dar embrulho no estômago”. Mais recentemente, fez ataques ao STF. Não deveria haver algum tipo de punição?

— Não há a menor dúvida. A gente vive uma situação paradoxal no Brasil. Tivemos no passado recente o afastamento de uma presidenta, Dilma Rousseff, legitimamente eleita, sem qualquer tipo de crime de responsabilidade que justificasse o impeachment, o que é de fato muito grave. Estamos vivendo, no atual momento, uma circunstância ainda mais inusitada. Há um número enorme de delitos sendo cometidos pelo presidente da República que poderiam, ou melhor, que deveriam ser capitulados como crimes de responsabilidade e nem sequer deram ensejo à instauração de um procedimento de afastamento. Então, é muito grave. Temos um presidente que comete diariamente crimes de responsabilidade, mas que não tem sequer um processo instaurado contra si. Podemos dizer que tão grave quanto afastar um presidente sem crime de responsabilidade, é ter um número enorme de crimes de responsabilidade sem que haja ao menos o início de um processo de afastamento. É isso o que nós estamos vivendo no Brasil. Diariamente, Bolsonaro atenta contra a ordem democrática, contra a independência e contra a autonomia dos Poderes. Ao que parece, ele não tem limites.

Esse tipo de conduta deveria ser repreendido de forma veemente pelo Supremo Tribunal Federal, evidentemente, mas em especial, pela Câmara dos Deputados. Na Câmara, há uma centena de pedidos de afastamento. O presidente da Câmara deveria, minimamente, instaurar algum para que o conjunto de deputados pudesse se debruçar sobre os pedidos e analisar a conveniência e a oportunidade de dar seguimento a um deles que seja.

 

— Aparentemente, Bolsonaro conseguiu se proteger graças ao apoio de Arthur Lira e do procurador-geral Augusto Aras, que atrapalha o avanço de investigações contra o governo.

— Sem dúvida. Vivemos um momento extremamente delicado. Não temos precedentes na história da nossa jovem democracia de um governo que tenha instrumentalizado tanto as instituições como este. Bolsonaro instrumentalizou a Polícia Federal, colocou em posições estratégicas delegados com os quais lideranças do governo mantêm relação de muita proximidade, o que põe em xeque o próprio papel da PF. Esse governo nomeou um procurador-geral que não tem dado prosseguimento a denúncias dos mais variados tipos e espécies que estão sendo apresentadas contra o próprio presidente, mas também contra líderes do seu governo. Bolsonaro capitulou as instituições. Isso nunca havia acontecido na nossa história em um grau tão preocupante como o que estamos vivendo. É realmente constrangedor perceber que a Polícia Federal, que é uma polícia de Estado, tenha virado uma polícia de governo. A polícia do partido que atende a interesses absolutamente circunstanciais, a interesses políticos e eleitorais desse grupo instalado no governo. E é igualmente constrangedor ver uma instituição como a Procuradoria Geral da República, que merece respeito, reconhecimento e aplauso, capitular também. Isso é muito triste. Estamos vivendo no Brasil uma situação muito, mas muito preocupante.

 

— Qual é a sensação de viver nesse país, sob essas condições?

— Olha, é uma vergonha. O Brasil nunca foi motivo de tanta descrença, descrédito diante da comunidade internacional. Já fomos a sexta economia do mundo, conseguimos enfrentar e erradicar a fome e a miséria, dando exemplo ao mundo de que era possível enfrentar esse tema tão sensível. Conseguimos liderar o maior programa de inclusão de famílias com distribuição de renda, recolocação no mercado de trabalho. Lideramos uma revolução na área educacional. Hoje, estamos vivendo dias que entristecem não só a nós, brasileiros, mas também a todos aqueles que têm carinho pelo país. É constrangedor. E a comunidade jurídica, de um modo geral, olhando a nossa situação, sabendo da importância que o Brasil tem para o mundo, fica muito preocupada também porque os exemplos são ruins.

 

— Que exemplos?

— Como eu disse, de instrumentalização das nossas instituições, de politização exacerbada do Judiciário e de judicialização da política. São faces perversas da mesma moeda: o ativismo judicial. De um lado, a judicialização da política. Do outro, a politização do Judiciário. Infelizmente, decisões jurídicas sendo guiadas por interesses econômicos, por interesses políticos, notadamente, eleitorais. E isso preocupa, evidentemente, a todo e qualquer cidadão que continua acreditando na democracia como melhor sistema e modelo para enfrentar as mazelas da humanidade.

 

— O Judiciário tem condições de conter ou asfixiar uma movimentação golpista de Bolsonaro?

— Não há a menor dúvida. Esse é um dos papéis do Judiciário. É claro que a gente não defende o ativismo judicial. Nós acreditamos que o Judiciário tem que se circunscrever aos limites das competências que foram definidas para esse importante Poder da República. Mas, na atual circunstância, não existe outro freio possível para conter os arroubos de natureza autoritária que são recorrentemente veiculados por esse governo e seus aliados. Então, o Judiciário tem um papel importante de freio, de contenção. Hoje, o Supremo Tribunal Federal, em especial, tem sido muito importante para a defesa da democracia no país. Nós não podemos deixar de reconhecer isso.

 

— O processo eleitoral de 2022 corre o risco de ser muito judicializado a partir do que vimos no Lollapalooza?

— Não tenho a menor dúvida. Bolsonaro não respeita nenhuma regra. Ele costuma, inclusive, impor para qualquer disputa regras próprias. Então, não há a menor dúvida de que vai ser uma campanha muito judicializada, com fake news em larga escala, propaganda eleitoral antecipada, abuso de poder econômico… Temos que ficar em estado permanente de alerta e vigilância. As demonstrações que Bolsonaro tem dado à sociedade são de que não vai respeitar regras estabelecidas para a disputa das eleições. Isso é claro. Um número enorme de “motociatas”, com gastos exorbitantes de dinheiro público sem qualquer tipo de justificativa, sem qualquer tipo de amparo legal, tem ocorrido.

 

— Fora o uso da máquina…

— A instrumentalização de determinados programas de governo com interesses eleitorais, a utilização de estruturas e aparatos do Estado para obtenção de informações e criação de cadastros… Sim. São vários exemplos. Então, é um número enorme de condutas que comprovam que Bolsonaro não vai respeitar as regras eleitorais. A gente tem que permanecer, como disse, de olhos abertos. Acho que essa é a tarefa. Não vai ser uma eleição fácil. Será extremamente delicada. Mas temos um legado para defender e um país para reconstruir e reconciliar. E a grande esperança é que o ex-presidente Lula, que foi reabilitado do ponto vista jurídico e eleitoral, hoje franco favorito para vencer essas próximas eleições, vai trazer para o país a paz que precisamos. Vai trazer a segurança jurídica que o país precisa para continuar a caminhar, para voltar a crescer e tudo o mais

 

— E a condenação de Dallagnol? Gostaria de perguntar sobre as doações que ele recebeu.

— Deltan Dallagnol deveria comemorar a decisão da Justiça que o obrigou a pagar R$ 75 mil ao ex-presidente Lula. Nada será suficiente para reparar os prejuízos à honra de Lula e sua família. Nem tão pouco, nada será suficiente para reparar o prejuízo de 580 dias de privação de liberdade. Não existe dinheiro no mundo que possa reparar o prejuízo de uma prisão injusta. Mais do que o prejuízo à honra, é um prejuízo que sentimos na pele. E ainda tem o prejuízo provocado para a sociedade. O Brasil foi privado de votar livremente em 2018. Lula era o franco favorito, assim como é hoje. Então, trata-se de um prejuízo que jamais poderá ser reparado. Diante de tantos prejuízos, Deltan tem mais é que comemorar a decisão. Porque ela foi, realmente, muito tímida. Em qualquer país do mundo, uma conduta como a dele seria penalizada com a prisão. O procurador deveria estar preso pelo que fez. Junto com o Moro, Deltan é um dos grandes responsáveis pela eleição do Bolsonaro. Ele ainda quebrou o país. O Dieese mostrou que a República de Curitina provocou prejuízos de R$ 172 bilhões e o fechamento de quase 4,5 milhões de postos de trabalho. Já com relação às vaquinhas, o que estamos pedindo é que se aplique a mesma régua. O que foi feito nos episódios anteriores que recolheram recursos para o pagamento das multas estabelecidas na Ação Penal 470, no chamado “Mensalão”, deveria ser aplicado agora. A Receita Federal, a Polícia Federal, os aparatos de fiscalização e controle do Estado têm que instaurar procedimentos para apurar essas doações que Deltan Dallagnol recebeu. Quem está financiando o procurador?

 

— E o ex-juiz Sergio Moro, que abandonou a candidatura à Presidência?

— É difícil imaginar que ele possa se apequenar ainda mais. É um sujeito que entrou para a história pela porta dos fundos, cumprindo um papel muito feio, defendendo interesses que, seguramente, não são nacionais e muito menos republicanos. Agora, o que Moro está demonstrando é um apego enorme ao poder. Sabendo que não tem condição de liderar a tal “terceira via” porque lhe falta voto, além de caráter e outras coisas, ele resolveu disputar eleições proporcionais para se esconder no abrigo de um mandato parlamentar. É um sujeito vaidoso. Essa conduta dele é bastante reveladora. No fundo, no fundo, tudo aquilo que a gente denunciava, aos olhos agora da sociedade está se comprovando. É um sujeito que tem, realmente, um projeto de poder. É extremamente calculista e está tendo aquilo que merece. Em breve, vai ser esquecido. O espaço relegado a ele na história é, com certeza, um espaço muito triste. Ninguém tem dúvida disso. •

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