Fora do circuito
O Brasil reúne condições de produzir semicondutores em escala suficiente para diminuir sua dependência das importações e abrir caminho para desenvolver outros segmentos da indústria. Mas, com Bolsonaro e Guedes, agora não temos saída
Entre as variadas crises que o mundo atravessa, uma delas, apesar de se referir a um objeto pequenino, invisível na maioria do tempo, já faz sentir seus efeitos. A produção de semicondutores está abaixo da demanda. A crise já afeta o ritmo de fabricação e entrega de produtos de consumo, como automóveis. Mas a frustração do comprador do carro novo é o menor dos problemas.
Os semicondutores são tão indispensáveis à indústria contemporânea quanto já foram o carvão e o petróleo em outros tempos. Por isso, ocupa posição central em disputas comerciais entre países. E a capacidade de produzi-lo desempenha papel importante no desenvolvimento econômico das nações.
A agenda neoliberal traçada por Paulo Guedes no governo Bolsonaro, contudo, é incapaz de enxergar os erros que a realidade aponta. Os dois escolheram manter o Brasil na condição de inquilino menor do condomínio. Depois de abandonar a ideia de uma política industrial e de fomento à inovação tecnológica, o governo decidiu fechar o Centro Nacional de Tecnologia Eletrônica Avançada (Ceitec), estatal de semicondutores criada em 2008.
Cobrado por empresários da indústria sobre a necessidade de o país ter uma estratégia para este segmento tecnológico, agora o ministro da Economia diz que que pensa em diminuir impostos para estimular o setor. Mas escondeu da imprensa o projeto da Ceitec, que foi destruído pelo governo.
Sem o papel do Estado, a desoneração é insuficiente para reativar o setor. A opinião é do economista Uallace Moreira, professor da Faculdade de Economia da Universidade Federal da Bahia (UFBA), que reside agora na Coreia do Sul, onde atua como professor da Universidade Nacional de Seul. Ele é taxativo: “Não existe nenhuma empresa de semicondutores no mundo que tenha sido criada e consolidada sem apoio do Estado”. E cita os exemplos dos Estados Unidos, Japão, Coreia do Sul, China, Taiwan e Europa. “Em todas essas nações, o Estado ajudou”.
E a ajuda do Estado não se restringe à redução de impostos. Ele assegura que foi preciso alocar investimentos públicos e apresentar projetos de médio e longo prazo para estimular a atuação de desenvolvedores e fabricantes. Para Uallace, a questão nem é o Brasil querer se tornar protagonista internacional. Mas reduzir a dependência das importações.
Na balança comercial de eletroeletrônicos, os semicondutores respondem por 17% do déficit brasileiro. O país pode superar essa condição, por intermédio de um processo que deve ter início na retomada da política industrial específica. E, em fase posterior, na atração de grandes empresas, por intermédio de joint ventures. Tais parcerias, em que o fabricante se compromete a transferir tecnologia para o Brasil, são fundamentais. Foi o que fizeram a China e outros países, como Taiwan e Coreia do Sul.
A legislação já existe, lembra o professor. Mas precisaria ser reformulada e colocada em prática num eventual governo desenvolvimentista. “Se o Bolsonaro permanecer, não teremos chance, o desmonte continuará”, alerta.
Nessa retomada, o Ceitec, hoje esvaziado, mas ainda não vendido, pode e deve ter papel importante. É a opinião do professor José Alexandre Diniz, do Centro de Componentes Semicondutores, da Unicamp. “Essa experiência deveria, inclusive, ser estendida para outros centros regionais, como São Paulo”, recomenda.
O Ceitec está capacitado a desenvolver e produzir semicondutores para aplicações em setores públicos, como o SUS e a emissão de passaportes. Mas também para a indústria automobilística. E pode ir além. “Essa estatal está pronta a atuar no front end”, avalia Uallace, referindo-se ao mais aprimorado estágio de aplicação de semicondutores.
Para Diniz, professor que atua na formação de doutores na área e habituado a supervisionar a elaboração de novos projetos, a estratégia de desenvolvimento nacional para o setor deveria incluir apoio e parcerias com startups, onde costumam surgir inovações transformadoras. “Não precisamos de uma Intel para gerar certos produtos. O desenvolvimento se dá nas startups, essa é a ideia que deveria acontecer aqui”, aposta. “Há quem diga que produzir semicondutores é coisa para país rico, mas o Brasil pode fazer”. Diniz conta que o laboratório da Unicamp desenvolve protótipos, mas hoje não tem com quem produzir.
Uallace lembra que o setor de alta tecnologia, por exigir muita pesquisa e desenvolvimento, embute mais riscos nos investimentos. Além disso, tem um prazo de maturação de projetos em torno de 20 anos. “Por isso o Estado precisa aportar recursos e firmar parcerias”, explica.
O Brasil imaginado por Guedes e Bolsonaro está fora do circuito porque ainda vê o mundo como uma grande feira livre sem fronteiras. Enquanto isso, ganha cada vez mais força a tendência de comércio intrarregional no restante do mundo industrializado.
Dados da OCDE mostram que 70% do comércio exterior dos países europeus se dá entre eles mesmos. Na Ásia, 67% das trocas são feitas na própria região. As cadeias produtivas internas voltaram a ser prioritárias, especialmente após as crises de 2008 e da covid-19. Os Estados Unidos também sabem disso: parte significativa dos subsídios do Plano Biden está reservada a empresas estadunidenses. Para semicondutores, reservaram US$ 52 bilhões.
Por aqui, ainda dá tempo. A estratégia para a indústria, fortalecida nos governos do PT a partir da criação, em março de 2004, da Política Industrial, Tecnológica e de Comércio Exterior, (PITCE), precisa ser retomada. Sobre o processo de elaboração dessa política, o professor Diniz recorda: “Foi a primeira vez que eu vi o Ministério da Economia vir conversar conosco, ouvir nossas propostas”, lembra.
Outra medida necessária é o fortalecimento do mercado interno, hoje sufocado. Isso voltaria a atrair grandes empresas do setor, de olho no potencial interno. Segmentos econômicos em que o país é promissor, como agronegócio e saúde, também são potenciais clientes. A seu favor, o Brasil tem ainda as fontes de energia renovável como atrativos para o desenvolvimento de projetos de alta tecnologia, lembra o professor da UFBA. •