Mulheres pedem passagem

Em “O Canto das Rainhas”, o jornalista e pesquisador musical Leonardo Bruno conta a histórias de cinco estrelas no panteão do samba:

Alcione, Beth Carvalho, Clara Nunes, Dona Ivone Lara e Elza Soares

 

 

Quando a revista Focus Brasil se debruçou, duas semanas atrás, sobre o ano de 1972, o tal do ano de ouro dos discos de MPB, muitos dos críticos e pesquisadores entrevistados ponderaram que toda a década de 1970, apesar da repressão política e da censura à cultura e às artes, teve uma produção musical acima da média por muitos critérios. Um deles é a diversidade de gêneros musicais que emergiam ou reemergiam.

Num olhar afinado com as questões contemporâneas, no pequeno ranking que acompanhou as considerações dos entrevistados sobre o período, entre os discos mais esperados em listas desse tipo, apareceram artistas como Jorge Ben e Paulinho da Viola, ambos cariocas e com uma profunda ligação com as raízes do samba pré-Bossa Nova. 

Se o bim-bom de João Gilberto desconcertou jovens de muitas partes do Brasil, que entenderam que, naquele samba sincopado e na voz que parecida desafinada, toda a movimentação daqueles que faziam a cena carioca das boates da Zona Sul, dos pequenos shows universitários e da consagração internacional do estilo, abriu-se uma brecha para a invenção e inovação. Inclusive para os adeptos da tradição do samba do morro, das batucadas das favelas, daquela dos barracões de escolas de samba, que se mantiveram ativos, ainda que em compasso de espera.

Um livro lançado no final de 2021, “Canto de Rainhas – O poder das mulheres que escreveram a história do samba”, do jornalista Leonardo Bruno, joga luz sobre as histórias de um grupo ainda mais invisibilizado pela na história da música brasileira: o das mulheres sambistas.

As “rainhas” em questão são Alcione, Beth Carvalho, Clara Nunes, Dona Ivone Lara e Elza Soares. São mulheres de origens e épocas diferentes cuja presença no samba do eixo Rio-São Paulo é inegável.

Bruno mescla ensaios e perfis biográficos de cada uma dessas mulheres para compor um mosaico de uma música que “veio da Bahia” com o final da escravidão para as casas das tias baianas no final do século 19 para catalisar a junção das músicas que já se praticavam na então capital Rio de Janeiro e veio a ser chamada de “o” samba.

Nas descrições de como então se organizavam as casas das tias baianas, entre elas a mais famosa a da Tia Ciata, entende-se como esse gênero negro e ligado às tradições das religiões afrodescendentes traduzia, de certa forma, uma noção de nacionalidade e dicção brasileiras, então em disputa.

Na sala que dava de frente para a rua, ficavam aqueles que tinham acesso a alguma instrução musical e instrumentos de sopro, em geral homens negros ligados a ofícios que mantinham bandas, com bombeiros e militares.

Na cozinha, onde e enquanto as mulheres preparavam a comida, em geral havia canto e violão. No terreiro, atabaques e instrumentos de percussão, onde os mais jovens dançavam e cantavam os lundus, os pontos para os orixás e tudo o que era “africano” demais. Os encontros, festas religiosas podiam atravessar a noite e virar uma grande sessão de improviso.

Com o resultado de um desses improvisos foi que Donga, frequentador da Tia Ciata, numa manhã de novembro de 1916 foi registrar o “Pelo Telefone” como um samba. E, aí, oficialmente, começa a longa história de amor do povo brasileiro com esse gênero, por natureza híbrido e, a um tempo, tão genuinamente identificável.

 

Rainhas…

A, B, C, D, E

O recorte que o jornalista e pesquisador musical escolhe em seu livro são as enormes barreiras do machismo estrutural que essas cinco mulheres sambistas tiveram de enfrentar para se firmarem na carreira. Em alguns casos, encontram-se machismo e racismo, a outros junta-se a pobreza e os obstáculos de acesso ao mundo da cultura e das artes e, nesse sentido, a história dessas cinco mulheres é também uma história do Brasil do século 20, com seus horrores e belezas.

Dona Ivone Lara, a mais velha das perfiladas (nasceu em 1922), por exemplo, só conseguiu de fato gravar um disco com composições suas em 1974. Isso, embora sua primeira composição musical, “Tiê”, tenha sido feita aos 12 anos.

Compositora de inúmeros sambas consagrados por intérpretes do porte de Maria Bethânia, Cristina Buarque e Marisa Monte — e puxadora de samba da escola de Samba Império Serrano —, Dona Ivone Lara dividiu sua carreira artística com a de profissional de saúde. Ela era enfermeira e assistente social. Mas driblou o machismo do marido e só depois de aposentada e viúva conseguiu se dedicar exclusivamente à música.

“Quando me casei com Oscar, que era filho do presidente da [escola de samba] Prazer da Serrinha, achei que ia ter liberdade para cair no samba. Qual nada! Minha vida só mudou quando morreram meu marido e minha tia”, lembra. Se Dona Ivone não tivesse perseverado, imaginem que perda enorme seria não termos “Sonho Meu” ou “Rainha Quelé”, o samba-enredo da Império Serrano que homenageou outra mulher gigante do samba, Clementina de Jesus.

Elza Soares teve de abrir seu caminho na determinação quase alucinada de quem vinha “do planeta fome”, sofreu de violência sexual e assédio ainda criança e foi obrigada a casar pelo pai aos 13. Nascida em 1930, menos de uma década depois de Dona Ivone, Elza já encontrou um ecossistema musical em que o samba “tinha descido do morro” e encontrava lugar nas ondas de rádio.

Ainda assim, com sua vida de altos e baixos ao lado de Garrincha, Elza teve de desistir e reinventar sua carreira inúmeras vezes. Com sua voz potente e grave e escolhas de repertório mais ecléticas, ela nunca se descolou do samba, como se vê tanto num disco emblemático da década de 1970: “Elza Pede Passagem” (1972). Neste álbum, ela canta “Rio, Carnaval dos Carnavais” e “Barão Beleza”. E em um dos últimos trabalhos da cantora, o single “Black Power” de 2021, em parceria com Renegado, o rap e o samba se encontram sem dramas.

A mineira Clara Nunes talvez tenha sido a mais privilegiada, uma vez que sua carreira artística se firmou nos anos em que a indústria fonográfica sediada no Rio de Janeiro vivia um momento de bonança — e os produtores tinham muita voz.

Linda, jovem e de voz afinadíssima, os primeiros discos na Odeon gravados ainda nos anos 1960 tentaram “vendê-la” como cantora romântica, com um pé no ié-ié-ié, mas com a mudança de Belo Horizonte, Clara foi fisgada pelo samba e pelo cultura religiosa de afrodescendência.

A partir do disco Clara, de 1971, ela mergulha definitivamente numa brasilidade musical que tornou a cantora um objeto de culto talvez único na MPB. Como assinala o autor do livro: “Qual é o mistério de uma mulher que, 40 anos após a sua morte, continua despertando tanta paixão? A devoção a Clara Nunes vai do Oiapoque ao Chuí, passando por Caetanópolis, Cedro e Paraopeba — e a mineira consegue ser plural até nos povoados que reivindicam seu lugar de origem”.

O que faria uma família bem posta da Zona Sul carioca deixar a filha com nome de rainha (Elizabeth) a cair no samba e dedicar sua vida à carreira incerta de cantora? No caso de Beth Carvalho, havia uma tradição que remontava à avó paterna do Piauí, tocadora de bandolim em saraus.

A família de Beth, nascida em 1946, incentivou a educação artística dela e da irmã Vânia. Ambas foram matriculadas em curso de violão ainda adolescentes. A sambista circulava pelos bairros que viriam dar origem à Bossa Nova e já dominava o instrumento-símbolo do movimento, o violão, e passou a se arriscar como cantora.

Entrou no mundo dos festivais defendendo “Andança”, de Paulinho Tapajós, Edmundo Souto e Danilo Caymmi. Ficou em terceiro lugar no também 3º Festival Internacional da Canção, atrás apenas de “Sabiá”, de Tom Jobim e Chico Buarque, e da icônica “Pra Não Dizer que não falei das Flores”, de Geraldo Vandré.

Nos anos 1970, ela deu uma guinada definitiva para o samba nos discos. Em 1973, lança “Canto Para um Novo Dia”, que mereceria elogios desse ninguém menos que o jornalista e pesquisador musical Sérgio Cabral. No texto de encarte, uma espécie de “receita” para inventar uma cantora, ele afirma: “E diria finalmente para cantar as coisas que vem do povo. As músicas feitas pelos gênios do povo, impregnadas de talento e limpas das ambições comerciais e das neuroses da novidade (…) Sugeriria que ela servisse de ponte entre a cultura popular e o consumo, não deixando que o objetivo prejudicasse a origem. Teria de ser, portanto, uma cantora de muito talento. Beth Carvalho me poupou este trabalho. Ela já existe”.

Na ordem inversa dos perfis do livro, chegamos por fim na maranhense Alcione, nascida em 1947 e ainda em atividade. Ela também mostrou talento precoce para a música e recebeu educação musical em casa, pelas mãos do pai policial e integrante da banda da corporação, que a ensinou a tocar clarinete, saxofone e trumpete.

Abandonou a profissão exigida pelo pai de professora primária e desembarcou no Rio em 1967, época em que a cidade vivia uma agitação cultural e política intensa. Ainda assim, era nordestina, negra e pobre, três características que impunham dificuldades de toda sorte para que começasse a entrar no mundo da música e dos discos.

Teve de ser devagar, fazendo primeiro a trajetória de cantora da noite, até ser descoberta por Roberto Menescal, a esta altura diretor artístico da Polygram. No primeiro álbum, “A Voz do Samba” (1975), ela gravaria a composição de Edson Conceição e Aloísio Silva, “Não Deixe o Samba Morrer”, cujos versos — “Não deixe o samba morrer/ Não deixe o samba acabar/ O morro foi feito de samba/ De samba para gente sambar/ Quando eu não puder/ Pisar mais na avenida/ Quando as minhas pernas/ Não puderem aguentar” — são daqueles que, cantados pela voz imensa de Alcione, reverberam no corpo como se o apelo viesse da nossa própria garganta.

Com belo trabalho de pesquisa, o jornalista e pesquisador do Observatório do Carnaval da UFRJ, Leonardo Bruno em “O Canto das Rainhas” (editora Agir) resgata tanto o protagonismo do samba na vida do Brasil como o ativismo cultural importantíssimo que essas mulheres tiveram para imprimir suas vozes, composições, falas e musicalidade num gênero tão dominado por homens.  •