Elas dizem: o coiso nunca mais
Enquanto o governo quebra a cabeça e abre os cofres para tentar amenizar a rejeição a Jair Bolsonaro no eleitorado feminino, as mulheres ganham as ruas mais uma vez em todo o Brasil
É pela vida das mulheres”! Quem quer que já tenha ido a uma manifestação no Dia Internacional de Luta das Mulheres já ouviu essa palavra de ordem que vem como uma onda de força e beleza. De uma simplicidade muito genuína, o slogan diz simplesmente que a violência sexista ameaça mulheres de todas as idades, etnias e nas mais variadas circunstâncias exatamente por serem mulheres. De uma força impressionante, ele avisa ao patriarcado que as mulheres estão juntas para resistir, lutar e avançar em seus direitos.
Nesta terça-feira, 8 de Março, milhares de mulheres em centenas de cidades no Brasil estarão juntas, mais uma vez, para lembrar que a luta continua. Neste ano, o manifesto da Articulação Nacional de Mulheres Bolsonaro Nunca Mais, elaborado e assinado por mais de 40 entidades, organizações e movimentos sociais de mulheres chamando para atos unificados “por um Brasil sem racismo, sem machismo e sem fome” e contra o governo Bolsonaro.
No manifesto, as entidades afirmam uma posição política clara e de combate: “Carregamos o fardo de toda exploração capitalista, patriarcal e racista que nos oprime enquanto mulheres responsáveis pelas famílias, negras, indígenas, quilombolas, LBTs, jovens, idosas e com deficiência (PcDs), nos campos, nas águas, florestas e cidades. Vivemos em um sistema político e econômico que utiliza da exploração da nossa força de trabalho e dos nossos corpos para se sustentar. Produzimos grande parte de toda riqueza do mundo. Somos fundamentais para a reprodução social, através do trabalho doméstico e de cuidados, bem como para aquele considerado produtivo. Ainda assim, somos 70% da população mais pobre do mundo”.
Também condena a condução da política genocida do governo brasileiro diante da disseminação do coronavírus, da ineficiência e negacionismo no combate à doença e à lentidão na aquisição de vacinas: “Como denunciado na CPI da Covid, Bolsonaro, aliado a setores da burguesia brasileira, agiu intencionalmente para disseminar o coronavírus ao negar evidências científicas, boicotar políticas de controle da pandemia, incentivar o uso de remédios ineficazes e atrasar a aquisição de vacinas, em uma clara política de extermínio. De forma criminosa, difundiu mentiras para atacar a vacinação infantil e negligenciou as políticas de atendimento às populações indígenas no enfrentamento e combate à Covid-19.”
O que os movimentos feministas e as organizações de mulheres também sabem é o que as pesquisas eleitorais detectam semana sim, semana não. E essa resistência do eleitorado feminino a Jair Bolsonaro vem causando enorme incômodo no comando da campanha de sua reeleição. Em todas as pesquisas mais recentes, como a do DataPoder, em 2 de março, há diferenças muito significativas de intenção de voto e avaliação do governo quando consideram as diferenças de respostas entre homens e mulheres.
A diferença entre as mulheres que avaliam o governo como ruim ou péssimo, por exemplo, é de 8 pontos percentuais em relação aos homens: 56% das mulheres e 48% dos homens desaprovam o presidente. Na intenção de voto em primeiro turno, 35% dos homens e 28% das mulheres dizem que votarão em Bolsonaro. Ainda que as pesquisas de intenção de voto ainda sejam apenas indicativas de tendências, essa resistência das mulheres a Bolsonaro e ao bolsonarismo vem ainda da campanha de 2018 e vem se aprofundando em seu governo.
O alerta amarelo soou. Na última sexta-feira, 4, às vésperas do #8M2022, Dia Internacional de Luta das Mulheres, a coluna de Carla Araújo, do UOL Economia, informa sobre a contra-ofensiva que Bolsonaro e Paulo Guedes preparam nas próximas semanas.
Segundo a jornalista, serão apresentados novos programas de crédito numa série de cerimônias oficiais que “tem sido chamado entre membros do governo de ‘semana ou pacote de bondades’”. Exatamente nesta terça, 8 de março, quando estão sendo convocados atos em todo o Brasil contra o governo, será lançado pelo Palácio do Planalto o “programa voltado para o público feminino, batizado de ‘Brasil para Elas’”.
Elas são as mulheres mais pobres, que tiveram de enfrentar três anos de perda de emprego, renda e direitos trabalhistas, além de doença, morte e luto. São as mulheres que estão na linha de frente dos cuidados, com crianças, idosos e doentes. São as mulheres que têm jornadas duplas, triplas e, ainda, complementam renda com micro e pequenos negócios.
Responsáveis pelo abastecimento doméstico, elas sentiram no bolso o galope inflacionário, que tornou gêneros alimentícios básicos proibitivos para muitas famílias. Com as crianças e adolescentes no ensino remoto, além de terem aumentado as despesas com eletricidade, internet e equipamentos como celulares e computadores, mais uma carga foi imposta às mulheres, que hoje chefiam mais da metade das famílias brasileiras.
Os casos de agressões contra mulheres e de violência doméstica aumentaram em proporções alarmantes. Só na cidade de São Paulo, 34% da população já presenciou ou soube de agressões contra mulheres entre 2020 e 2021, segundo pesquisa da Rede Nossa São Paulo. No mesmo levantamento, 18% disseram saber de conhecimento de casos de violência doméstica e familiar contra mulheres cometidos por parente próximo ou que convive.
A tudo isso, o governo Bolsonaro responde com indiferença, hipocrisia ou, pior, cortando direitos ou vetando projetos de lei que avançam nos direitos femininos. Em 2021, apesar de aprovado pelo Congresso, o presidente vetou projeto de lei que prevê distribuição de absorventes a 5,6 milhões de mulheres que sofrem de pobreza menstrual, ou seja, não têm dinheiro para comprar absorventes e, por isso, deixam de ir à escola, comparecer em entrevistas de emprego ou ao trabalho.
Em pautas mais complexas, como o direito ao aborto, o bolsonarismo responde com fake news, desinformação e terror. Em 21 de fevereiro, quando os movimentos feministas da Colômbia tiveram enorme vitória, ampliando o direito de interrupção de gravidez até a 24ª semana de gestação, o presidente foi às redes sociais repetir a comparação do direito ao aborto a uma espécie de passe-livre de assassinatos com a “anuência do Estado”.
A ministra Damares Alves, suspeita de ter agido para impedir que uma criança de 10 anos, grávida de um tio, interrompesse a gravidez num dos três casos permitidos pela Constituição brasileira em 2020, fez feio na ONU ainda na semana passada, em discurso na abertura do Conselho de Direitos Humanos da ONU.
Uma das duas ministras mulheres que integram o ministério de Bolsonaro, ela ignorou a guerra entre Rússia e Ucrânia para falar das realizações do líder da extrema-direita que “a imprensa tenta esconder”. E reiterou a posição retrógrada do bolsonarismo em relação aos direitos sexuais e reprodutivos, discorrendo sobre medidas do governo de defesa contra o aborto e afirmando que não “há no direito internacional qualquer respaldo para se valer do aborto para planejamento familiar”. Além dos disparates, Damares mostra uma ignorância profunda quando associa a interrupção da gravidez ao “planejamento familiar”.
O bolsonarismo se firmou num fantasmagórico combate à corrupção, combinado ao pacote chamado de “ideológico” que incluía o ataque generalizado aos avanços nas lutas contra discriminação de gênero e de raça. Além disso, insiste na identificação permanente da esquerda com uma apavorante “dissolução da família e dos valores cristãos”, além de todo o bestialógico do forte conservadorismo brasileiro que tinha vergonha de dizer seu nome.
Enquanto não dá para prever o efeito do “pacote de bondades” da dupla Bolsonaro e Guedes, as mulheres vão às ruas em 8 de março defender a vida, a democracia e dar início a uma onda de esperança.