Em maio de 1982, o grupo carioca Barão Vermelho entrava em estúdio para gravar seu primeiro álbum. A poesia debochada e irreverente do cantor, somada à coesão sonora e visceral do grupo, rendeu uma das mais impressionantes obras do rock brasileiro

 

 

Em 1982, ainda debaixo da ditadura, o Brasil era um buraco fundo se você fosse jovem. Não havia nada muito rock’n’roll na música brasileira. Claro, tinha a Rita Lee — já na fase pop com teclados de Lincoln Olivetti —, mais o Rádio Taxi — com egressos da banda da ex-mutante — e a Cor do Som e o 14-Bis. Ou seja, tinha um rock, mas com pinta de MPB ou melado no pop. Rock mesmo tinha o Raul Seixas, mas a essa altura ele já estava começando a enfrentar problemas mais graves com a birita… Não era o mesmo transgressor dos anos 70.

Aí veio a Blitz, com seu disco de estreia (resenhado na edição 46 da Focus Brasil) e uma banda que era um sopro de renovação: o Barão Vermelho. Se você, como eu, era antenado em música, tinha pescado os elogios de Ezequiel Neves — lendário jornalista cultural e um dos editores da Rolling Stone brasileira, em 1972 — em suas colunas encharcadas de uísque na revista Som Três. Ele foi o primeiro a falar da banda na imprensa nacional.

De crítico fervoroso a mentor intelectual da banda até se tornar produtor musical, Ezequiel era uma extensão espiritual — e, digamos, também alucinada — do vocalista do grupo. O álbum de estreia do quinteto, lançado em setembro de 1982, é incrível. Um disco com frescor e poesia de primeira, blues, guitarras de riffs fortes, teclados e a voz rouca e irresistível de Agenor de Miranda Araújo Neto, com letras inspiradíssimas. Agenor era ninguém menos que o genial Cazuza. Esse disco marca o nascimento do artista para o grande público brasileiro. E a estreia era mais que promissora.

Basta ouvir “Todo amor que houver nessa vida”, um clássico — “Eu quero a sorte de um amor tranquilo/ Com sabor de fruta mordida/ Nós na batida no embalo da rede/ Matando a sede na saliva/ Ser teu pão, ser tua comida/ Todo o amor que houver nesta vida/ E algum trocado pra dar garantia”. A canção ganharia depois versões poderosas de Caetano Veloso e Cássia Eller.

O álbum tem ainda duas pérolas que são das canções mais poderosas de Cazuza: “Down em mim” e “Ponto fraco”. A primeira tem os versos que tornaram Cazuza um dos mais promissores poetas do rock brasileiro nos anos 80: “Outra vez vou me esquecer/ Pois nessas horas pega mal sofrer/ Da privada eu vou dar com a minha cara/ De babaca pintada no espelho/ E me lembrar, sorrindo, que o banheiro/ É a igreja de todos os bêbados/ Eu ando tão down”.

E “Ponto fraco” tem o sentimento de urgência juvenil que é maravilhoso, com a canção embalada pela voz sacana de Cazuza, tratando de um flerte com pinta de cantada nos bares da vida, enquanto as guitarras lembram os Stones na sua melhor fase, no final dos 60 e começo dos 70. “Benzinho, eu ando pirado/ Rodando de bar em bar/ Jogando conversa fora/ Só pra te ver passando, gingando/ Me encarando/ Me enchendo de esperança/ Me maltratando a visão”. E, por último, o disco tem um blues espirituoso — “Bilhetinho azul” —, com o verso que mais me impactou na época: “Como pode alguém ser tão demente/ Porra louca/ Inconsequente/ E ainda amar”.

A estreia do Barão é uma das melhores surpresas do rock brasileiro produzido naquela década de 80 que parecia marcar uma retomada do Brasil, sufocado pelas botas dos militares durante toda a década de 60 e 70. E é curioso que o lendário João Araújo, — produtor e presidente da Som Livre na época — jamais tenha cogitado contratar o grupo. Ele era o pai de Cazuza. E nunca se tocou para o talento do filho. Foi o jornalista Ezequiel Neves, que depois de ouvir as demos da banda em uma fita de rolo Akai, ainda em 1981, perturbou João até que ele gravasse o disco. Convenceu-o junto com o produtor Guto Graça Mello, que o provocou: ”Você vai deixar a concorrência contratar o Barão?” Felizmente, o pai era sensato.

“Barão Vermelho“ é um disco vital e um abre-alas para a geração roqueira que iria tomar de assalto a MPB nos dois anos seguintes — Paralamas, Legião e Titãs. A própria banda jamais repetiria um disco tão vital, roquenrou e debochado como este. O fato de o grupo não querer buscar o sucesso comercial fácil é que faz o álbum soar ainda tão contagiante e vívido, mesmo passados quase 40 anos.

Cazuza e a banda ganhariam o estrelato em 1985, no Rock in Rio, na véspera do nascimento da Nova República, anunciando: “Que o dia nasça lindo para todo mundo amanhã, com um Brasil novo, com a rapaziada esperta”. Era um sopro de esperança. •

`