Europa em guerra
Para espanto do Ocidente, Putin avança sobre a Ucrânia, numa ação militar fulminante e eficaz, reduzindo as chances de Zelensky cumprir a promessa de ingressar na OTAN e se armar contra o vizinho. Mesmo sob sanções econômicas da Europa e dos EUA, a Rússia redesenha a geopolítica. E o Brasil sentirá os efeitos da crise
Desde dezembro, Vladimir Putin vinha se queixando oficialmente que a Organização do Tratado do Atlântico Norte, que nasceu após a Segunda Grande Guerra Mundial, precisava se conter e não avançar para os arredores de Moscou. O Ocidente fez poucos ouvidos e ainda instigou o presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, a ingressar na Otan e anunciar uma campanha de armamento nuclear.
No final de 2021, a Rússia anunciou aos EUA e à OTAN que estava na hora de parar as movimentações na sua área de influência. O Kremlim exigiu que o ocidente parasse de desenvolver infraestrutura militar perto das fronteiras russas e contesse a expansão rumo ao leste. O ultimato de Putin foi ignorado. Dois meses depois, Putin jogou uma cartada dura.
Na madrugada de quinta-feira, 24, a Europa acordou com Putin inaugurando uma política de guerra agressiva, lançando uma ofensiva fulminante e estonteante sobre a vizinha Ucrânia, deixando a comunidade europeia e a Casa Branca perplexas. O efeito imediato da guerra no leste, o que seria impensável desde a derrocada da União Soviética, pode ser sentido nas primeiras horas da quinta. Assombrando mercados e cidadãos.
Naquele dia, o preço do petróleo saltou para US$ 105 o barril e as ações nas bolsas nos principais mercados caíram com a notícia da invasão russa. A Rússia mostrou as garras e fez estragos, com disparos de foguetes e tropas avançando rapidamente em todas as partes do país desde a madrugada. Unidades russas invadiram o norte da Ucrânia pela Bielorrússia, ao leste por Donbass e ao sul pela Crimeia, anexada em 2014. Em cadeia de rádio e TV, na noite de quarta, Putin descreveu o ataque como uma ‘operação militar especial’ e anunciou que o objetivo era ‘desmilitarizar e desnazificar’ a Ucrânia.
O russo disse que se tratava de ‘proteger as pessoas’, ‘sujeitas ao genocídio pelo regime de Kiev’. E declarou que uma ocupação do país não era o objetivo do Kremlin. Com o fogo cruzando os céus da Ucrânia, a Casa Branca reagiu ainda naquela manhã.
O presidente dos EUA, Joe Biden, anunciou amplas sanções à Rússia pela guerra provocada por Putin no leste europeu. As penalidades afetarão os maiores bancos da Rússia, a indústria de armas, a maior empresa de energia — a Gazprom — e famílias próximas ao Kremlin. Em seguida, a Europa anunciou sanções econômicas pesadas, com a Alemanha declarando que fecharia o gasoduto Nord Stream2. Mas as ameaças não contiveram Putin nenhum milímetro no avanço para mostrar à OTAN e ao Ocidente que a velha Rússia não pode mais ser ignorada.
A ação militar desencadeada por Moscou foi rápida e devastadora: o estado-maior ucraniano admitiu ataques explosivos com aeronaves, artilharia e mísseis de cruzeiro a boa da infraestrutura civil e militar. Até o prédio do Ministério da Defesa da Ucrânia veio abaixo. Ao final da sexta-feira, os soldados russos já estavam em Kiev e o Kremlin anunciava os termos da rendição de Zelensky.
Na Grã-Bretanha, a nação acordou com a transmissão da BBC tentando manter a calma e seguir em frente: “Há guerra na Europa. São 7 da manhã do dia 24 de fevereiro. As manchetes desta manhã…” O presidente francês Emmanuel Macron, que procurou aplacar Putin, advertiu severamente sobre “um ponto de virada na história da Europa”. Convocando uma cúpula de emergência da OTAN, o secretário-geral Jens Stoltenberg, ex-primeiro-ministro da Noruega, declarou que “a paz em nosso continente foi abalada”.
Para um continente onde a guerra da velha escola havia recuado em parte aos livros de história, onde o conflito recente resultou em disputas burocráticas sobre a dívida grega ou restrições ao coronavírus, o ataque total de Moscou à Ucrânia foi anacrônico – e um salto para o desconhecido.
Apesar da guerra de 12 dias da Rússia com a Geórgia em 2008 e a anexação da Crimeia em 2014, os temores recentes de intervenção de Moscou se inclinaram mais para campanhas de desinformação, suposta fixação de preços em energia e a morte misteriosa de alvos russos nas ruas europeias.
Ainda assim, a extensão do ataque russo inspirou uma medida de choque. “Os líderes europeus queriam empurrar a Rússia para debaixo do tapete, queriam lidar com a China, a covid, as mudanças climáticas”, disse James Nixey, especialista em Rússia do think tank britânico Chatham House. “Eles simplesmente subestimaram deliberadamente, ou pensaram que Putin estava sendo exagerado… que o governo Biden e o Reino Unido estavam gritando lobo. Eles pensaram que era um grande blefe”, disse ao Washington Post
Na quinta-feira, líderes europeus continuavam travados em um tenso debate-feira sobre o quão duro seria atingir Putin. Biden sugeriu que os bancos russos não fossem cortados da SWIFT, uma rede global vital para transferências internacionais, porque países europeus ainda não apoiavam a medida financeira que alguns chamaram de “opção nuclear”.
As opções disponíveis na manga e lançadas até agora pela UE e EUA não só parecem ter surtido pouco efeito como podem levar o Kremlin a aprofundar a sua relação com a China, o que seria impensável há 50 anos, quando Richard Nixon desceu em Pequim para distensionar a relação da América com o gigante asiático.
No início deste mês, Xi Jinping recebeu Putin em Pequim, para a abertura dos Jogos Olímpicos de Inverno, e revelou a aproximação das duas potências nucleares. “Nossas relações bilaterais progrediram em um espírito de amizade e de associação estratégica. São relações realmente sem precedentes”, disse o russo. O presidente da China classificou a parceria como “inabalável, passada, presente e futura”.
Os ministérios das Relações Exteriores de China e Rússia publicaram um longo comunicado conjunto em que reafirmam a aproximação em diversas áreas, como cooperação na Nova Rota da Seda, diplomacia, comércio exterior, combate à pandemia de covid e a defesa de um mundo “policêntrico”. A questão da Ucrânia também estava na pauta.
“As partes opõem-se a uma maior expansão da OTAN e apelam à Aliança para que abandone as suas abordagens ideologizadas da Guerra Fria, respeite a soberania, a segurança e os interesses de outros países, a diversidade das suas origens civilizacionais, culturais e históricas, e exerça uma atitude objetiva em relação ao desenvolvimento pacífico de outros Estados”, apontava o comunicado. “Os lados se opõem à formação de estruturas de blocos fechados e campos opostos na região da Ásia-Pacífico e permanecem altamente vigilantes sobre o impacto negativo da estratégia Indo-Pacífica dos Estados Unidos na paz e estabilidade na região”.
No mesmo dia, Putin anunciou acordo para a construção de um novo gasoduto que fornecerá 10 bilhões de metros cúbicos de gás russo aos chineses. O ministro da Energia da Rússia, Nikolai Shulginov, e o presidente da estatal russa de petróleo e gás Rosneft, Igor Sechin, estavam em Pequim com o presidente. “Nossos petroleiros prepararam novas soluções muito boas no fornecimento de hidrocarbonetos para a República Popular da China”, afirmou Putin.
Curioso que a Casa Branca tenha ignorado um alerta, feito pelo diplomata George Frost Kennan, defensor de uma política de contenção da expansão soviética durante a Guerra Fria. Em 5 de fevereiro 1997, publicou um artigo no New York Times apontando que a expansão da OTAN seria o erro mais fatídico da política americana em toda a era pós-guerra fria.
Certa vez, o primeiro-ministro inglês Winston Churchill brincou que “os americanos sempre farão a coisa certa, mas somente depois que todas as outras possibilidades forem esgotadas”. Infelizmente, Kennan não foi ouvido e seguiu sendo solenemente ignorado até morrer em 2005. Pois foi Kennan quem redigiu em 22 de fevereiro de 1946 o ‘Long Telegram’, um telegrama de 5.400 palavras enviado da embaixada americana em Moscou para Washington aconselhando a Casa Branca a adotar a “contenção” pacífica da URSS.
Esse golpe de brilhantismo analítico, que Henry Kissinger saudou como “a doutrina diplomática de sua época”, forneceu a base intelectual para lidar com a União Soviética sob Josef Stalin, conforme consagrado na ‘Doutrina Truman’. Agora, os ensinamentos de Kennan estão sendo revistos, não pelos diplomatas ocidentais, mas pela mídia russa.