Os governos do Partido dos Trabalhadores provocaram uma revolução social no Brasil com todos os programas inéditos que foram adotados. A questão para Maria Rita Kehl, psicanalista, jornalista e poetisa, é que uma parcela da sociedade se sentiu desprivilegiada nesse processo de mudança, o que gerou o ressentimento. É claro que soma-se a isso a decepção com o PT e Lula produzida pela orquestração da Operação Lava Jato com a chamada “grande mídia”. O ressentimento é perigoso, segundo a psicanalista. “O ressentimento elegeu Hitler”, lembra.

A brutalidade de Jair Bolsonaro e os ataques contra mulheres, negros, homossexuais e outros grupos sociais não vão acabar ou diminuir nem nesse período eleitoral que se aproxima. É o pensa Maria Rita Kehl. Ela considera que Bolsonaro gosta de ser bruto e que “só não é mais mal porque não tem poder para isso”. Por mais que tente abrir os cofres públicos para atrair quem o rejeita, “tem coisas que são mais fortes do que ele”, antevê a psicanalista, que não vê possibilidade do presidente se conter. Leia a seguir trechos da entrevista concedida à Focus Brasil:

 

Focus Brasil — Bolsonaro está tentado criar uma série de politicas públicas com o objetivo de diminuir a rejeição que as mulheres têm a ele e que sempre foi alta. Qual é o entendimento da senhora sobre a figura do Bolsonaro em relação às mulheres?

Maria Rita Kehl — Vocês se lembram do [Adolf] Hitler interpretado pelo [Charles] Chaplin? É um filme muito bom que tem um tipo “hitleriano” [O Grande Ditador, de 1940]. Dizem a ele: “Calma, você não pode fazer isso. Você não pode perder os seus eleitores”. E ele tinha que se segurar porque senão o seu braço se estendia para frente, fazendo uma saudação semelhante à nazista. Eu acho que o Bolsonaro tem isso. Ele é profundamente misógino e profundamente tosco. Bolsonaro gosta de ser bruto. Isso está na raiz dele. Então, diz que vai fazer e é capaz de propor um programa para consultar uma mulher e no meio da conversa está xingando-a. Tem coisas que são mais fortes do que ele. O que me preocupa muito é o apoio que ele tem e isso ainda é difícil de entender.

A eleição eu até entendo, apesar de repudiar 100%, porque, claro, a Lava Jato acabou, naquele momento, com um partido que tinha sido uma grande esperança para o país. E, de fato, trazido grandes melhorias para os pobres. Estou falando do PT. A Lava Jato prendeu o Lula. Isso gerou uma decepção de quem era beneficiário do Minha Casa, Minha Vida ou de quem tinha um Bolsa Família. Pensaram: “Esse cara só estava tirando dinheiro, ele deu uma esmolinha para nós e estava pegando dinheiro para ele mesmo”. Ou falando: “Olha a casa dele”. Tudo isso baseado em todas aquelas mentiras. Essa decepção, embora o Lula tenha sido solto, contaminou a sociedade. Nada como uma mentira repetida muitas vezes para que pareça verdade. E aí, na decepção, as pessoas vão para o extremo oposto. Pensam: “Esse aí é autêntico, não mente. Ele é ‘roots’”. Além do mais, cassaram a Dilma [Rousseff]. A Lava Jato só se voltou para o PT.

Na cabeça dessas pessoas fica uma coisa de que o PT é um partido de bandido. O Lula era bandido. Dilma era “péssima presidente” e tem um detalhe a mais, que não é detalhe. A Comissão Nacional da Verdade criada pela Dilma junto ao Congresso incomodou muita gente, não só quem tinha algum “rabo preso” com tortura. Bolsonaro inclusive devia conhecer muitas dessas pessoas. É só lembrar que ele homenageou o [Carlos Alberto Brilhante] Ustra na votação do impeachment em 2016. Mas a comissão também incomodou porque muita gente não queria saber daquilo, veio muito tarde. Saía no Jornal Nacional, não era mal divulgado. Muitas vezes eu fui parada, andando na rua ou em aeroporto quando me reconheciam, e ao perguntarem se eu era da CNV, respondia toda contente que sim e não teve uma pessoa que não perguntasse: “E o outro lado, vocês não vão investigar?”. Eu demorava para entender, falava “que outro lado?”. E a resposta era “o lado dos terroristas”. Eu começava a explicar que não eram terroristas, mas pessoas que queriam lutar contra a ditadura, que os militares “abafavam” o que acontecia… Mas as pessoas não queriam saber. Isso era muito impressionante. Eu explicava com muita educação, mas elas viravam as costas e íam embora. O incômodo criado pela revelação daquelas coisas todas, gente desaparecida, morta sob tortura, todas as injustiças e brutalidades… Tenho a impressão de que muitas pessoas acabaram justificando na cabeça delas. Era muita coisa para assimilar.

 

— Quer dizer, a Comissão Nacional da Verdade acabou mexendo numa ferida que “levantou a tampa de um bueiro” para surgir essa extrema-direita.

— Sim. Se tivesse sido logo depois, como aconteceu com Argentina, Uruguai e Chile. Todos tiveram comissões da verdade, mas aqui demorou muito. Aconteceu depois de mais de duas décadas da redemocratização e as pessoas se incomodaram. De fato, é angustiante. Mas, ao invés de quererem saber direito e dizer “que nunca mais aconteça”, resolveram justificar: “Eram os terroristas”. Certamente, isso se espalhou nas redes também. “Eram terroristas, jogavam bombas, queriam tornar o Brasil um país comunista”. Isso tudo criou um ambiente fértil para a direita.

 

— A senhora não acha que toda essa cronologia, as jornadas de 2013, o não reconhecimento da derrota pelo Aécio Neves em 2014, as pautas-bomba contra a Dilma, o Golpe de 2016, a prisão do Lula e as fake news contra o Fernando Haddad — o conjunto da obra gestada pela mídia e Lava Jato — abriu espaço para uma espécie de catarse coletiva?

— Certamente. Espero que, agora, ainda mais com o Sergio Moro condenado como juiz suspeito, haja um reposicionamento da maioria das pessoas. Você tem toda a razão. Tinha uma coisa orquestrada e era muito grande. Tudo coincidiu. E criou-se uma decepção no povo com relação ao partido que tinha trazido muita esperança. Eu acho que isso fez as pessoas ficarem ainda mais revoltadas. Depois é que veio a suspeição do Moro, Lula foi solto, mas aí já era tarde. O fato é que agora o Moro é que é suspeito contra Lula, o candidato que, se não fizerem nenhuma jogada suja, é o provável vencedor.

 

— A questão do Bolsonaro, não só com relação às mulheres, mas essa forma autoritária, contra os negros, isso não lhe parece um sintoma de sociopatia ou é só maldade, mesmo, como dizia Hannah Arendt?

— É que a maldade dele não é banal, como dizia a Hannah Arendt em “Banalidade do Mal”. O Bolsonaro só não é mais mal porque ele não tem poder para isso. Ele não é como o [Otto Adolf] Eichman que dizia “eu estava só cumprindo ordens”. É isso o que a Hannah Arendt chama de banalidade do mal. Se te mandarem colocar 30 milhões de judeus num campo de concentração, você manda porque você está só cumprindo ordens. Não é culpa sua. No caso do Bolsonaro, não. Ele sustenta as ordens.

 

— Bolsonaro governa o país há mais de três anos e toda sua incompetência e maldade estão escancaradas. Como mais de 20% da sociedade brasileira continua o apoiando?

— Olha, eu teria que chutar muito, mas a gente tem que pensar alguns eventos da história do Brasil. Por exemplo, o país foi o último das Américas a abolir a escravidão. Foram 300 anos de escravidão. E, o que é pior, quando ocorreu a abolição, não houve nenhuma reparação às famílias descendentes dos escravos ou para os próprios escravos. Quando a escravidão terminou, o fazendeiro que tinha, digamos, 300 escravos, colocou 250 na rua e foi explorar os 50 que ficaram. Isso criou no Brasil uma classe baixa, predominantemente negra. O país herdou coisas incríveis dessas pessoas que vieram para cá forçadas, verdadeiras marcas da nossa cultura. Mas, na verdade, existem racistas no Brasil. Como os negros ficaram sem emprego, a justificativa dada pelos racistas era de que eram vagabundos, se não eram forçados, não trabalhavam. Além disso, tem outras coisas. Houve duas ditaduras com uma diferença de poucos anos, a do Getúlio [Vargas] e a de 1964. Foram só 19 anos de diferença entre uma e outra. As duas ditaduras terminaram sem qualquer reparação. Quando estávamos na Comissão da Verdade, éramos interpelados sobre se não iríamos denunciar os terroristas. Não adiantava tentar explicar, as pessoas já estavam com ideia feita.

E a Dilma não foi uma administradora carismática como Lula. Não sabia lidar com as contradições dentro do governo. Acho que ela era até mais rígida no que tem de mais correta, mas qualquer político sabe que alguma hora é preciso negociar para um lado ou para outro em nome da sobrevivência. Talvez a retidão da Dilma mais a CNV foram coisas que acabaram criando clima para que ela caísse. Depois, veio o [Michel] Temer, que foi um traidor, e preparou o terreno para isso que a gente tem agora. Mas eu não sou uma analista política, estou só enumerando fatos que todos já conhecem.

 

— Então, a senhora acredita que além de tudo, a Dilma foi vítima da misoginia da política brasileira.

— Acho que sim. Quando o Bolsonaro diz para a Maria do Rosário “só não estupro porque você não merece”, veja o que um deputado é capaz de dizer, olha a quebra de decoro. Mas veja como existe um machismo que protegeu esse cara. A vida dele seguiu normal. Quer dizer, e daí? “Ah, foi uma gracinha que ele falou”… “Foi uma piada de mau gosto. Ha ha ha”… É muito grave.

 

— O país vive hoje profundas divisões. Em paralelo, há uma tentativa de se construir uma frente mais ampla, mas é na política. Na sociedade, existe caminho possível para um processo de convivência com as diferenças?

— Eu acho que passa, em primeiro lugar, por políticos dispostos a dialogar com os vários segmentos fragmentados, separados como se fossem inimigos. Acho que isso é importante. O país precisa de mediação. E Lula é um cara capaz disso, mas acho que não precisa ser só ele. Lula é capaz porque é negociador há 50 anos, tem muita escola. Mas penso que mesmo nós, nas conversas, podemos fazer isso. Porque senão, mesmo que ele ganhe, teria um percurso muito duro.

 

— É preciso que os diferentes setores da esquerda e do progressismo estejam disponíveis para dialogar.

— Claro. O engraçado é o seguinte, veja como você joga uma faísca e ela pega. Essa ideia de que o Lula é o perigo do comunismo, ele teve duas gestões e ainda indicou alguém para mais uma gestão e meia, não houve ali nada relacionado a transformar o Brasil num país comunista. E agora ele vai implantar o comunismo? Faltou politizar um pouco mais a sociedade. Não no sentido partidário, mas levar a discussão pública a algumas coisas. Esse termo comunismo, por exemplo, o Brasil nunca foi. É um fantasma que levantaram aí e agora qualquer coisa que se fale já acusam de ser comunista.

Eu, que sou pedestre, tento muito dialogar na rua, mas acho que além disso, as pessoas que são convictas das suas ideias não querem ouvir. Mas talvez durante a campanha seja possível dialogar sobre esse símbolo do comunismo de forma um pouco mais inteligente, já que o Bolsonaro vai jogar com isso.

 

— Existe uma rejeição contra o atual presidente em vários setores da sociedade. É possível que o Bolsonaro consiga diminuir tal rejeição?

— Bom, como dizem os americanos “follow the money”. Ele agora está concedendo esse Auxílio Brasil, se a Câmara deixar, e essa Câmara é completamente venal. Se ela deixar que o Bolsonaro expanda isso até às vésperas da eleição, ele ganha. É simples. Eu acho horrível, mas essa é a estratégia dele para ganhar.

 

— A ideia de família parece em disputa e, no entanto, trata-se mais de uma polêmica que a extrema-direita tenta introduzir. A extrema-direita se autointitula defensora da “família”. A senhora acha que é possível evoluir dessa discussão de significado do que é família, da ideia de que a família está em risco?

— Olha, não sei dizer. Psicanalista é muito bom para tentar entender o que deu errado, mas muito difícil para prevenir sobre o que vai acontecer. É preciso se falar com muita clareza e confio no Lula para isso. Então, uma família formada por um casal homossexual não é família? Uma mãe que engravidou e o cara abandonou, ela não é família junto com seu filho? Porque a ideia é essa que a única família é o casal heterossexual, casado na igreja de preferência, com seus filhos e aí se exclui famílias homoparentais e se exclui famílias de pai ou mãe solteiros. E existem muitas famílias como essas. O estranho é como elas não reagem e se organizam para dizer: “nós também somos família”. Talvez isso possa colaborar no debate eleitoral. Incitar essas pessoas a se manifestarem. Veja, existe de tudo em família. Eu tive pacientes molestados pelo pai ou pelo padrasto. Não é porque é esse formato de família que eles defendem que está tudo certinho lá dentro. Tive pacientes filhos de mães cruéis, que não ouviam e distorciam o que os filhos diziam. Então, família pode ser um lugar muito bom, que te acolhe, protege e orienta, como pode ser um lugar em que se é mais vulnerável e que faz muito mal.

 

— O preconceito parece ser uma característica muito forte no Brasil. É isso mesmo ou trata-se de algo comum a outros países?

— Países como a França, por exemplo, estão a anos-luz de nós. Mas aqui também já estivemos a anos-luz de onde estamos hoje. A Parada Gay era o maior evento desse tipo no mundo todo e não sei se vai dar para ter esse ano, se eles vão ser ameaçados, se não vai ser perigoso. O que acontece é que em outras décadas da história, quando o Brasil estava ligeiramente mais progressista, foi um enorme avanço para um país que teve 300 anos de escravidão, monarquia por um tempão, que demorou para proclamar a República. E quando a proclamou, militares assumiram a Presidência… enfim, tivemos duas ditaduras… Tudo isso faz com que o Brasil seja um país bastante conservador e militarizado. Mas tenho esperança de que a gente possa voltar a um lugar melhor, até porque esse governo está indo mal para muita gente.

A gente não percebeu quanta gente ressentida foi emergindo em um momento muito feliz do Brasil, em que estavam vindo à tona as questões da negritude, em que os negros estavam acessando a universidade… Uma vez eu estava numa fila de embarque no aeroporto e tinha uma família negra na mesma fila. Eu ouvi uma pessoa dizendo “esse aeroporto está parecendo uma rodoviária”. E ali, pra mim, tinha um universo de pensamentos. Aquela pessoa entraria no avião, ninguém a impediria, mas do que ela estava reclamando? Ela falou isso, evidentemente, com desdém. Vamos supor que ela fosse uma pessoa de classe média ascendendo para uma classe média mais alta, começando a voar de avião, achando aquilo um baita privilégio, uma conquista. E, de repente, tem uma família negra? Eu acho que essas coisas fizeram com que uma parte da classe média ficasse muito revoltada. A gente tem que pensar então o que é essa classe média brasileira. Principalmente, esses arrivistas que não é ruim que tenham conseguido subir uma faixa na escala social – muito por causa dos programas sociais – mas de repente o cara não quer saber de quem está atrás dele. Ele quer só aderir ao pensamento dos mais ricos. É uma hipótese.

 

— Bolsonaro representa a luta pelo direito de ser idiota? 

— [Ri] Eu não diria desse jeito. Por mais idiotas que os idiotas sejam, eles não se acham idiotas. Mas eu acho que ele representa a luta dos ressentidos, desses que ficaram fora do debate, desses que não acompanharam o que estava acontecendo, desses que só tinham reações reativas, não tinham nada a propor. Eles eram só “isso não porque não entendi, não gostei”. Então, ele é um representante dos ressentidos. E não são ressentidos porque ficaram de fora dos programas sociais, é porque estavam de fora de uma certa circulação de ideias, do debate que estava se estabelecendo pelo país…

Enfim, acho que Bolsonaro representa o ressentimento. O ressentimento, diz Tzevan Todorov, elegeu Hitler. Uma classe média decaída que na crise dos anos 1930 na Alemanha chegou muito perto da classe baixa em condição de vida, foi quem elegeu o Hitler. Alguém que dizia que iria acabar com a “escória”. Os judeus eram aqueles que continuavam tendo seus negocinhos por pior que fosse e aí tem a “noite dos cristais” em que as vitrines deles foram quebradas por esses ressentidos. Arrumaram um bode expiatório e aí foi, para se acharem fortes. Não acho que o Bolsonaro tenha o carisma de um Hitler, mas, enfim, é bom a gente lembrar.