1972 – O ANO MÁGICO DA MPB
Num dos períodos mais tenebrosos da repressão, os discos que chegavam quase todos os meses às lojas no Brasil traziam vozes e sonoridades que iluminavam aqueles tempos sombrios
Em 2022, vários discos essenciais da MPB completam 50 anos de lançamento. A geração que viveu a efervescência cultural entre 1964 e 1968, que viu e sobretudo aquela enfrentou as batalhas dos festivais de música na TV, aparece com álbuns de ruptura. São discos experimentais e/ou de uma maturidade surpreendente, como é o caso de Caetano Veloso e Gilberto Gil, recém-chegados do exílio em Londres.
Outros artistas, que estiveram mais ou menos nas margens desse processo e em outros nichos de público, começaram a explorar caminhos inovadores e diversos. Além disso, surge também uma geração que sintetiza — ou coloca em curto-circuito — as experiências do período anterior, com influências da Bossa Nova e da Tropicália.
Como toda efeméride é apenas uma conta que se faz a partir do calendário, Focus conversou com jornalistas e pesquisadores de música para debater se, de fato, 1972 é um ano especial na música brasileira.
Também perguntamos quais as forças dentro da cultura e da vida política e social do Brasil naquele período estavam operando para que o ano mágico se tornasse “um divisor de águas para a música pop brasileira”, como aponta o crítico norte-americano Andy Beta, em resenha sobre o álbum “Clube da Esquina”, no Pitchfork, em 2018.
Por fim, não podíamos deixar de fazer a pergunta difícil: de todos esses discos marcantes, quais são os seus três — e apenas três — favoritos? Leia, a seguir, os principais trechos das entrevistas.
OS ANOS 1970 NA MPB
“Eu acho que 1972 foi um ano especial, mas eu não particularizaria esse ano. De 1968, ou seja, da Tropicália em diante, todos os anos foram bem especiais, até no mínimo 1976. Essa produção do início dos anos 70 tem muito a ver com o legado que ficou da era dos festivais, uma coisa que fortaleceu demais a música brasileira. E, mesmo sob muita guerra no contexto dos festivais, o ponto de vista dos tropicalistas prevaleceu, virou hegemônico”. Pedro Alexandre Sanches, jornalista cultural e crítico musical.
“A década de 1970 é muito importante para a música brasileira como um todo, indo além daquilo que consideramos como MPB. Foi uma época de estabilização do mercado do disco e também do showbiz, com estruturas maiores de shows, turnês pelo país, junto com a influência do rádio e da TV. Alguns artistas que iniciaram suas carreiras na década anterior também atingiram um nível de maior autonomia e maturidade em suas carreiras e dentro das gravadoras, e puderam ousar mais. O público também já parecia estar mais preparado para essas novidades, já bem articulado com o desenvolvimento de linguagens artísticas já influenciadas pela música de massa norte-americana, dialogando também com tradições locais. É um momento em que os artistas brasileiros consolidam uma dicção muito particular”. Luciana Xavier de Oliveira, professora e pesquisadora de relações étnico-raciais da UFABC .
1972 NO BRASIL
“Eu acho que 1972 foi um ano muito importante para a música brasileira, se você pensar nos discos que foram produzidos, mas entendo isso dentro de um processo que já vinha vindo antes, desde a Tropicália. Ou seja, é um amadurecimento da música brasileira. A influência da contracultura, da cultura internacional, já estava mais assimilada. Dois dos discos que eu amo — “Transa” e “Expresso 2222”, começaram a ser feitos pelo Caetano e pelo Gil quando eles ainda estavam no exílio. E aí tem uma volta deles para as raízes brasileiras, mas já influenciados por tudo que estavam vivendo lá em Londres”. Luanda Baldijão, DJ e pesquisadora musical.
“Se 1972 foi um ano especial? Acho que dá para cravar sim. Tinha um ecossistema musical funcionando”. Jotabê Medeiros, jornalista e escritor.
“Foi um ano especial, um ano doido. Acho que hoje tem muita música boa, mas aquele momento era uma época do disco mesmo. A maioria ainda não estão manchados pela produção horrível dos anos 1980, que estraga um monte de músicas lindas. Tenho a impressão de que, entre os discos meio mal gravados dos anos 1970 e os discos bem gravados dessa mesma época, não tem uma diferença tão grande como vai ter depois. Ouvindo hoje em dia, fica gritante essa diferença entre os 70 e os 80.” André Maleronka, jornalista e documentarista.
O CENÁRIO INTERNACIONAL
“1971 é o ano que tem o primeiro disco do Som Imaginário, que tem Wagner Tiso, o Fredera (Frederiko), fanático pelo Genesis e pela cena do rock progressivo. Eram músicos que acompanhavam o Milton e isso vai influenciar o “Clube da Esquina”. O Arnaldo Baptista, que também tem um discaço desse ano, “Mutantes e Seus Cometas no País dos Baurets”, usa a expressão ‘vasos comunicantes’, para definir isso. O próprio disco dos Mutantes tem muita influência de rock progressivo, do Yes, por causa do Sérgio Dias. No final de 1972, no ano em que o David Bowie lança “The Rise and Fall of Ziggy Stardust and the Spiders from Mars”, os Secos e Molhados gravam seu primeiro disco, que só vai sair em 1973. E 1972 ainda é o ano em que os Rolling Stones lançam aquele que é considerado o melhor disco deles: “Exile on Main Street”. Tudo isso são os tais vasos comunicantes. A sonoridade dos discos desse início dos anos 1970 tem muito a ver com a cena internacional”. Jotabê Medeiros
A INDÚSTRIA FONOGRÁFICA & A ERA DOS FESTIVAIS
“Os anos 1970 foram uma época propícia para a produção musical e cultural popular massiva, pois a economia do país se abria para o capital internacional, o que gerou o barateamento de bens de consumo, como roupas, discos, TVs, aparelhos de som, acompanhando a expansão dos veículos de comunicação de massa que já vinha ocorrendo desde os anos 1960. A indústria cultural no país estava cada vez mais consolidada. Novos segmentos de consumidores eram explorados pelas gravadoras, o que impulsionava o surgimento e investimento em novos e jovens talentos da música de diferentes gêneros musicais. Havia ainda uma melhora do poder de compra desses diferentes setores sociais que também queriam se ver representados na música que consumiam, especialmente pensando em diferentes públicos jovens”. Luciana Xavier
“A gente vivia, na verdade, o finzinho dos festivais da canção também, o que incentivou os artistas a fazer boas canções. Eles se sentiam desafiados, a TV e a indústria fonográfica estavam crescendo. Ficar entre os finalistas de um festival poderia mudar a carreira de um artista. As gravadoras investiam muito na produção dos álbuns. Nesse período, tem aqueles discos com orquestrações grandiosas e muitos músicos tocando”. Kamille Viola
“Pensando nas gravadoras, houve um avanço da tecnologia dos estúdios de gravação que proporcionaram esses discos”. Luanda Baldijão
“O grande sucesso da era dos festivais fez consolidar uma indústria fonográfica, musical. É aí que se cria aquele slogan que ia nas capas dos álbuns: ‘disco é cultura’. Era uma espécie de lobby para isenção de impostos que as gravadoras estavam fazendo junto à ditadura. Mas, sim, deslancha pra caramba a produção de MPB. Como a indústria estava forte, e assim ela se manteve até a crise do petróleo, então tinha espaço para todo tipo de experimentação que estava acontecendo”. Pedro Alexandre Sanches
BOSSA NOVA, TROPICÁLIA E O QUE VEIO ANTES
“A geração da década de 1970 foi impactada pela bossa nova, pela ruptura que o João Gilberto significava e por aquele sentimento de um Brasil que ia dar certo, que tinha orgulho de si mesmo e era bem visto no exterior, o que contrastava com o que estávamos vivendo aqui politicamente com a ditadura”. Kamille Viola
“Acho bem interessante pensar que a galera desses álbuns, que faz esses discos são considerados ‘clássicos’, já estava fazendo música há uns 10 anos ou mais. Ou seja, é um período de maturidade musical. Ao mesmo tempo que tem todo o peso de antes, é uma época que as pessoas estavam enxergando o que estava acontecendo no mundo. Mesmo quem estava estreando em disco, como o Jards Macalé, já trabalhava com música há muito tempo”. André Maleronka
CONTRACULTURA X DITADURA
“Esse período da contracultura tem esse sentido de resistência. Por exemplo, o fato de os Novos Baianos morarem juntos e produzirem em uma comunidade, era também uma forma de reagir contra a repressão. Os movimentos sociais de resistência ao Golpe de 1964, e as manifestações culturais anteriores, como a Tropicália, influenciam decisivamente esse momento”. Luanda Baldijão
“O Brasil estava numa ditadura militar, então era um momento que, embora houvesse o registro de todo o problema que a gente vivia, sem democracia, parecia que a música queria ir adiante disso, tinha um esforço muito bom para enxergar à frente da escuridão”. Jotabê Medeiros
“Ainda que o contexto político geral no Brasil correspondesse a um acirramento da repressão e das desigualdades, havia transformações mundiais em curso que estavam transformando os costumes e influenciando modas, gostos e práticas de consumo da sociedade. E a música, em especial, se tornou uma espécie de vetor desses anseios, e também válvula de escape, ancorada ainda no surgimento de uma série de movimentos culturais juvenis, que ampliou as noções mais tradicionais de se fazer política e possibilitou uma maior autonomia para as criações culturais e artísticas naquele momento”. Luciana Xavier de Oliveira •