ENTREVISTA | ELEONORA DE LUCENA – “A imprensa no Brasil prejudica a democracia”
Ex-diretora-executiva da Folha, e uma das mais experientes jornalistas do país, hoje à frente do Tutameia, Eleonora tem uma visão crítica da velha mídia comercial. “Houve um silenciamento sobre o verdadeiro caráter neofascista de Bolsonaro”, denuncia. O resultado é a crise atual, mas ela também avalia que a esquerda errou ao não apostar na produção de notícias
Alberto Cantalice e Pedro Camarão
As grandes empresas de comunicação que também costumam ser chamadas de “grande mídia” produzem um jornalismo enviesado e sem pluralidade. É assim na política, na economia e no cotidiano. Esta é a avaliação de Eleonora de Lucena, ex-diretora-executiva do maior jornal do país, a Folha de S. Paulo, durante 10 anos. Ela lembra que, em 2010, a então presidente da Associação Nacional de Jornais (ANJ), Judith Brito, declarou que, como não havia oposição ao governo no país, caberia à grande imprensa comercial exercer esse papel.
Tal ambição parece ter sido a responsável por parir a Lava Jato e também a ascensão de Jair Bolsonaro à Presidência da República. A oposição ao governo era, na verdade, oposição ao Partido dos Trabalhadores, algo que ainda está em curso. Mas que pode mudar. “Depende do mercado financeiro”, afirma Eleonora.
A experiente jornalista, que atualmente mantém na internet seu próprio veículo de jornalismo, o site Tutaméia, afirma que é o mercado quem orienta a visão de mundo dos órgãos de imprensa no Brasil.
E que a posição dos veículos da mídia comercial diante do candidato do PT depende completamente do sentimento do mercado. Nesta entrevista à Focus Brasil, Eleonora de Lucena analisa o trabalho realizado pelos maiores veículos de jornalismo do país e considera importante que se busque um novo modelo de jornalismo, que priorize o interesse público. Leia, a seguir, os melhores trechos.
Focus Brasil — A cobertura jornalística feita pelos grandes veículos é intrigante pela forma como vêm tentando desqualificar ou gerar desconfiança com relação ao ex-presidente Lula. Ao mesmo tempo, buscam fazê-lo parecer como Bolsonaro. Por outro lado, batem em Bolsonaro, mas são suaves quanto à política econômica. A prática jornalística está em segundo plano?
Eleonora de Lucena — Isso vem de muito tempo. Estamos vendo há muitos anos uma cobertura, falando de forma geral, muito enviesada. A mídia aceitou uma cobertura sobre o Bolsonaro de uma forma quase que surreal. Quer dizer, o presidente é um personagem que foi e ainda é tratado — seu governo e, especialmente, a área econômica — de uma maneira inaceitável. O Bolsonaro é um neofascista. Ele foi poupado por muito tempo. Durante o período da campanha eleitoral, não se teve nenhum tipo de investigação sobre quem era esse personagem, um político muito conhecido para quem, minimamente, acompanha o Congresso e conhece a situação do Rio de Janeiro.
Houve um silenciamento sobre o verdadeiro caráter neofascista desse personagem. É uma cobertura que, tomando o período eleitoral como base, começou dessa maneira. Mas, pior. A tentativa de igualar [os candidatos] na campanha eleitoral [de 2018] foi um erro. Escrevi sobre isso. Foi um erro histórico. A mídia contribuiu como muita gente diz, e eu concordo, para que Bolsonaro chegasse aonde chegou. Seja pelo silenciamento ou por outras estratégias. Houve esse conluio que acabou levando-o ao poder. Essa tática de tentar igualar Lula e Bolsonaro, pode ter tido algum tipo de sucesso lá atrás, mas vai fracassar. Aliás, já fracassou porque não tem possibilidade de qualquer cidadão aceitar esse tipo de comparação.
— Os grandes grupos de mídia têm agido mais como empresa do que como imprensa?
— Isso é evidente. Tivemos em 2010 uma declaração da então presidente da Associação Nacional dos Jornais [Judith Brito] que sintetizou bem essa preocupação. E estamos falando de 2010, no final do governo Lula. Ela disse que como não havia oposição no país, a mídia, os jornais, tinham que desempenhar esse papel. Isso foi dito de forma explícita. Eles têm uma preocupação política, sim. E isso se agudizou de lá pra cá. Está muito presente e precisa ser dito claramente. Se há uma posição política aberta, ela tem que ser explicitada de forma transparente.
O problema no Brasil, como a gente sabe, é que a diversidade dos órgãos de mídia é pequena. Quase não há diversidade e isso acaba minando o debate, obstruindo as vias de discussão da própria sociedade. Não há canais de mídia que possam oferecer outra visão ou uma visão plural da situação. O debate não flui porque as posições são muito semelhantes. No limite, isso prejudica o país porque não há espaço público para debater ideias. E a esquerda não conseguiu construir nenhum tipo de mídia capaz de levar ao grande público sua visão de mundo. A realidade é essa. Não há múltiplas visões, não há debate. E isso prejudica o país.
— A mídia alternativa é algo recente…
— Não. A gente teve na ditadura militar uma mídia alternativa muito forte. Naquela época, conseguiu fazer o contraponto e foi um instrumento importante na derrota da ditadura. Essa mídia não continuou… Com a volta da democracia, os grandes grupos se fortaleceram. A democracia, a inclusão social, o fim do analfabetismo, a expansão das redes de televisão, tudo isso proporcionou que um número maior de brasileiros tivesse acesso à informação. Agora, com a revolução digital, nem se fala. Mas houve uma mídia alternativa naquele período, assim como em outros da história. A gente tem hoje uma mídia alternativa que cumpre um papel importante de tentar fazer um contraponto, mas é pulverizada. Não tem peso no conjunto e acho que isso é um problema. E, principalmente, ela não é produtora de notícia. Mais repercute a pauta e a notícia que saem dos grandes grupos que continuam dando, digamos, as linhas principais do debate público. E quem tem uma visão diferente, fica dando opinião – o que é muito importante – ou debatendo, criticando essas visões, mas não há uma produção de informação que apresente outra visão de mundo.
— Essa atuação da mídia comercial tem impacto sobre a conjuntura?
— Claro. Prejudica a democracia. É o que eu estou dizendo. A democracia significa o debate. Em vários países existe o estímulo, o incentivo para que haja essa diferença, para que exista o debate, o confronto de ideias. Mas, no Brasil, está obstruído. O debate democrático está obstruído pela falta de pluralidade da mídia.
— O ex-juiz Sergio Moro é tratado pelos grandes veículos como um candidato normal, como se fosse digno de credibilidade, mas foi considerado pelo Supremo Tribunal Federal um juiz suspeito. Ao mesmo tempo, há jornalistas dando a entender que a operação está sendo vítima de uma “vingança” do sistema. Como você vê esse quadro?
— A essa altura do campeonato está muito claro que Sergio Moro representou e representa no Brasil os interesses norte-americanos. Isso ficou evidente em todo o processo da Lava Jato. Foi uma intervenção patrocinada, estimulada, municiada, melhor dizendo, pelo Departamento de Justiça dos EUA, com o claro objetivo de arrasar a economia brasileira, destruir empresas, atuar no sentido de demolir a Petrobrás e o pré-sal. Uma atuação para derrubar um governo que na geopolítica se colocava de maneira independente em relação aos EUA. Pode-se fazer muitas críticas aos governos do PT, mas do ponto de vista estratégico o Brasil, na América do Sul especificamente, os governos Lula e Dilma construíram uma visão de independência. Da mesma maneira, tentou, com sucesso inicial, fazer uma articulação com China, Rússia, Índia e África do Sul, os BRICS.
E houve um choque com os interesses norte-americanos que desejam, há mais de um século, governos subservientes aqui na América do Sul. Então, Moro foi um instrumento e continua sendo. Sua tarefa é a destruição da autonomia brasileira, do país. E ele foi, infelizmente, incensado de maneira absolutamente equivocada, errada… Eu estou utilizando a palavra “errada”, mas talvez não seja a mais correta porque, evidentemente, há interesses convergentes entre a mídia e os EUA. Isso está muito claro. E daí a explicação de porquê Moro foi muito propagandeado como um paladino da Justiça, quando, na verdade, agiu para destruir o país e levar adiante os interesses norte-americanos.
Agora, Moro está numa posição totalmente fragilizada porque não consegue subir nas pesquisas. Ele não consegue falar, não consegue se expressar e está exposto a um contraditório, ainda pouco agudo, que nunca teve enquanto era juiz. E isso trabalha contra ele. Acho que é uma aposta que os EUA vão ter que rever porque provavelmente não vai conseguir ter muito espaço na disputa eleitoral.
— Temos 70 milhões de pessoas que se informam somente pela TV aberta e o rádio. Há um deliberado silenciamento não só do Lula como também dos setores progressistas. Qual caminho você acha que um governo de corte progressista, pegando as experiências vividas, pode fazer para diminuir a alienação sobre a vida do país?
— Essas coisas precisam ser vistas em conjunto. Para levar informação a essas pessoas a gente precisa ter crescimento econômico, desenvolvimento, emprego, salário. Temos que levar de fato a democracia para todas as regiões. Temos uma quantidade enorme de brasileiros que não tem acesso à informação. O que acessam é uma informação truncada, enviesada, muitas vezes deturpadas e, diria também, mentirosa. Porque essas mídias acabam reproduzindo informações não checadas. Então, de fato é uma situação que deixa as pessoas sem condição de reagir àquilo. E não há nenhum tipo de preocupação em fazer uma mídia diferente. Não há.
O que há de preocupação na esquerda é fazer publicidade e propaganda eleitoral. Não há preocupação em criar e produzir informação, em ter uma visão de mundo. É um processo muito mais complexo do que simplesmente levar qual informação, para quem e como. É uma discussão que deve incluir muitas áreas e, numa perspectiva de desenvolvimento do Brasil, essas pessoas têm que participar do debate. O que acontece é que elas não tem informação e não se sentem capacitadas, incentivadas a participar.
— Temos neste momento um encontro de problemas: a mídia cerceia a pluralidade de discursos, mas temos a avalanche das redes sociais que fragmenta ainda mais e engoliu os grandes veículos. É mais difícil chegar ao “por onde começar” porque não basta ter uma lei que impeça os monopólios.
— Sim. Sempre falamos das cinco ou seis famílias que dominam os veículos de comunicação. Mas falamos pouco das duas ou três “big techs” que dominam o mundo. Essa fragmentação é um processo que vem de décadas e diz respeito ao próprio neoliberalismo, que trabalha para atomizar os indivíduos. A ideia é romper os laços e cada um pensar no seu mundo. Essa evolução que a gente tem nas redes sociais é a expressão acabada disso. É uma estratégia de comunicação, de dominação, de poder. Tudo está fragmentado e pulverizado. Não há uma visão de conjunto. A questão da mídia e do debate é de tentar oferecer uma visão de conjunto. Isso é importante. Pode se ter várias perspectivas, mas elas têm uma ideia do que é o país, do que precisamos ter e fazer, para onde temos quer ir, de onde a gente veio.
São debates fundamentais para a definição das pessoas, das políticas públicas e isso a gente não tem. Há uma expansão enorme das mídias sociais que estão sendo questionadas em vários lugares do mundo e reguladas. Esse debate não chegou aqui ainda. A gente tem as empresas de mídia que fazem a produção de notícia que a esquerda não faz. Eles fazem. A gente pode dizer — e a gente diz — que é enviesado, que muitas vezes é mentiroso, que tem vícios, que é posicionado fingindo que não é. O modelo dessa mídia está numa crise sem precedentes não só no Brasil, mas no mundo todo. Saíram os dados de circulação dos jornais e da audiência do Jornal Nacional e de outras emissoras. Mostram uma queda de audiência. Isso ocorre por conta dessa pulverização imensa que a gente vive no acesso à informação.
Há uma confusão também entre informação e entretenimento. Muitos órgãos partiram para essa linha de jogar no entretenimento para conquistar audiência e isso joga contra a informação porque confunde as estações. Uma coisa é o entretenimento e outra coisa é a informação. O modelo tradicional está numa crise histórica. A esquerda, os progressistas, não tem tido sucesso nem em pensar numa alternativa a isso. E o avanço é cada vez maior das empresas estrangeiras que, a gente sabe, tem interesses políticos. As informações que saíram sobre Facebook e Twitter mostram isso. Tais empresas, de uma maneira geral, tendem a ter uma inclinação mais à direita. Então, acho que trata-se de uma discussão global sobre a interferência política dessas empresas e em algum momento a gente vai ter que discutir isso aqui também.
— A velha mídia assumiu um lado nos últimos anos. Agora, o Brasil tem um problema da prática jornalística em si. Falta apuração. Precisamos de um novo modelo, como a imprensa pública do Reino Unido e outros países da Europa? É isso o que vai garantir uma cobertura mais equilibrada e plural?
— Deve-se discutir um modelo. Essa imprensa de alguns lugares da Europa sobre a qual você falou surgiu a partir da Segunda Guerra Mundial e da ascensão e derrota do nazismo e do fascismo. Nesses países, que viveram esses períodos tão terríveis da história, eles entenderam a importância da comunicação. A gente tem que discutir um modelo em que haja de fato interesse público em primeiro lugar, um debate, uma visão de construção de conversa do público. Porque aqui a gente não tem. Só temos pulverização e propaganda.
— E como você encarou a cobertura da Lava Jato? Pouco se discutiu até aqui o papel dos veículos de imprensa.
— A mídia, em geral, publicou, editou, fez as reportagens de forma a incensar a Lava Jato, colocá-la como uma operação contra a corrupção. Foi ela quem começou alardeando isso. Mas fez uma cobertura enviesada, acrítica, sem ouvir outros personagens. Faltou pluralidade. Isso é um dado inquestionável. Se a gente for fazer um estudo das páginas, da edição, se olhar o Jornal Nacional ou os jornais, houve enviesamento na cobertura. E isso ocorreu também no Judiciário. É uma sequência de erros que… A gente fala de “erros”, mas é uma questão política. Essa coisa de atropelar as esferas de checagem, contraditório, de simplesmente publicar o que parece ser mais forte e com viés político, isso prejudicou a credibilidade da própria imprensa, do Judiciário e do Ministério Público. E, assim, tais instituições comprometeram a democracia brasileira.
— Com relação à economia, o mundo está discutindo um novo modelo. O debate é sobre o fim do receituário neoliberal. Os grandes veículos internacionais estão funcionando como palco para esse debate, mas aqui quase não se fala sobre.
— Sim. Aqui há uma mistura de fundamentalismo com provincianismo, uma visão muito dissociada da realidade. Acho que são coberturas que não levam em conta o país e o mundo. Vira uma coisa repetitiva. São as mesmas opiniões sendo repetidas a de eternum. Os mesmos fantasmas são erguidos, quando a situação mundial mudou. Desde 2008 discute-se de forma muito transparente que esse modelo produz crises sucessivas que acabam provocando mais desigualdade. Há também uma tentativa de normalizar a desigualdade, essa concentração de renda cada vez mais absurda. Mas isso só se aprofundou agora com a pandemia, que mostrou o quanto é necessário, sim, o Estado, o investimento público. Os países que têm serviços públicos de saúde conseguiram de alguma maneira atacar essa pandemia. Quer dizer, a adesão quase que religiosa a essas ideias do neoliberalismo provocou mortes.
O debate econômico no Brasil está todo esclerosado. Não tem ventilação, não tem ideias, não tem olhar para a população. É uma coisa de gabinete no sentido mais caricato. Não leva em consideração a situação. E isso tudo eu acho que está desmoronando porque a pandemia está colocando em xeque esses governos que ficaram contra as evidências científicas. Muitos deles voltaram atrás, mas o Bolsonaro é um sócio do vírus. A gente sabe que ele desde sempre apostou na morte.
— Diferente do que o Estadão propugnava, não era uma escolha difícil. Fizeram uma escolha de fato pelo Bolsonaro.
— É claro. Eu escrevi isso. Era uma questão de civilização e barbárie e houve um baque explícito em apoio ao Bolsonaro. Inclusive, como disse, acho que a cobertura do governo foi muito leve, acrítica. Não tocou, especialmente, nas questões econômicas. A crítica vinha muito na parte de comportamento, sobre declarações, mas no grosso houve um apoio que começou a ruir quando veio a pandemia. E agora vamos ver o que vai acontecer. Há quem veja indícios de um desembarque do Bolsonaro e um apaziguamento, digamos, uma bandeira branca em relação ao candidato do PT. Vamos ver, não sei. Vai depender muito do mercado financeiro, que é realmente quem dá o tom das visões de mundo na cobertura. O mercado apostou no Bolsonaro e vamos ver se vai abandonar o presidente. Tem muita gente que já identifica alguns sinais. Acho que ainda é cedo. •