Se há alguma artista com propriedade para falar da Amazônia hoje em dia, chama-se Gaby Amarantos. Ela é de Jurunas, bairro antigo, periférico de Belém do Pará, onde as crianças nascidas no final dos anos 1970, como Gabriela Amaral dos Santos, tinham infância ribeirinha. Jurunas é, hoje, o bairro mais populoso da capital do Pará, com 60 mil habitantes, e a menina, aos 43 anos, uma das compositoras e cantoras mais instigantes do Brasil.

A musicalidade popular do Pará foi das últimas fronteiras de descoberta da moderna MPB, pelo menos aqui no Sudeste, centro tanto da produção musical (a indústria fonográfica) quanto dos meios de comunicação de massa, que, de certa forma, ainda determinam (ao menos em parte) o que faz ou não sucesso. Na verdade, a circulação independente sempre foi mais vigorosa do que se imagina, sobretudo a regional. De qualquer forma, quando começou a se falar em tecnobrega em São Paulo e no Rio de Janeiro, ali pelo início dos anos 2000, essa cena já existia há pelo menos duas décadas.  

E quando Gaby chegou com “Treme”, em 2011, a ousadia de canções como “(Ela Tá) Beba Doida” ou “Ex Mai Love”, a exuberância da cena paraense com suas colagens de carimbó, calipso e tecnomelody eclodiu como uma espécie de bomba. Aqui vale fazer uma pequena homenagem ao diretor artístico do disco, Carlos Eduardo Miranda. Morto precocemente aos 56 anos, Miranda foi um dos produtores mais talentosos dos anos 1980 e, nos 1990, descobridor de bandas como Skank, Mundo Livre S.A., lançadas pelo selo Banguela Records, que abriu em parceria com os Titãs. Repórter e redator da revista Bizz, Miranda tinha uma habilidade toda especial para formatar, no melhor sentido, novos talentos. Dirigiu as três edições do Terruá Pará em 2006, 2011 e 2013, projeto que envolvia dezenas músicos do Norte, desde a geração que nasceu nos anos 1930, do carimbó, como Dona Onete e Pinduca, o “rei da guitarrada” Mestre Vieira, aos já nascidos na Belém moderna, como Jaloo e Lia Sophia   

Foi Jaloo quem Gaby escolheu para produzir “Puraquê”, referência ao peixe-elétrico, que  em tupi e significa ”o que faz dormir” ou ”o que entorpece”. É um peixe daqueles que pode chegar a 2 metros de comprimento e 20 quilos. Suas descargas elétricas tem intensidade o suficiente para matar um cavalo adulto.

Em “Purakê”, já disponível nas plataformas digitais, as 13 faixas-clipe compõem uma espécie de sonho amazônico. Pensado como quase um álbum conceitual e cheio de participações especiais, é como se fosse o disco da maturidade de Gaby Amarantos. Ela continua a cantora talentosa (como muitas mulheres pretas e periféricas, ela começou a cantar em coro da  igreja e antes mesmo da adolescência, chamava a atenção pela voz cristalina) de sempre, mas nem por isso deixou de ser generosa: divide faixas com artistas decanos como Elza Soares, Ney Mattogrosso,  Alcione e Dona Onete, mas também com músicos mais recentes como Liniker, Luedji Luna, Potyguara Bardo, Urias, Viviane Batidão.

Nascido numa espécie de imersão artística de Jaloo e Gaby no Rio Tapajós, em 2019, antes, portanto, da pandemia, o disco oscila entre aquilo que os viajantes estrangeiros dos séculos 18 e 19  chamavam de a “melancolia tropical” e faixas que exalam um otimismo contagiante — e muito, muito dançável.

A pegada de “Purakê” se conecta com questões globais e futuristas. Numa espécie de metáfora musical, poética e visual parece que Gaby & Jaloo querem mostrar que a Amazônia também pode ser, além da maior reserva bioecológica do planeta Terra, o centro irradiador de uma cultura ao mesmo tempo profundamente enraizada nos povos indígenas, mas olhando para o mesmo vetor tecnológico que fundou o tecnobrega.

Ouçam Gaby. Seus recados são uma espécie de grito de alerta, mas também tem o frescor das pequenas alegrias possíveis nessa pandemia interminável e crudelíssima.