ENTREVISTA | RICARDO GALVÃO – O governo tem uma atitude predatória para o país
O físico Ricardo Galvão é um dos mais importantes cientistas brasileiros. No início do governo Bolsonaro, ele ocupava o cargo de diretor do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, o Inpe, e entrou em confronto com o presidente e o seu negacionismo.
Diante de estatísticas que apontavam para o aumento do desmatamento na Amazônia, o presidente da República o acusou de manipular dados. Disse que os dados do Inpe eram mentirosos e que o cientista estaria a serviço de alguma ONG. Após a discussão pública, acompanhada por toda a comunidade internacional, Ricardo Galvão acabou exonerado.
Ele afirma que chegou a ver com bons olhos a proposta de redução do desmatamento ilegal apresentada por Jair Bolsonaro na conferência ambiental convocada por Joe Biden. No entanto, com o passar do tempo, para ele está demonstrado que o objetivo do governo é fazer com que práticas ilegais passem a ser legais, o que não melhoraria em absolutamente nada a situação da floresta amazônica.
Segundo o físico, o discurso negacionista e a forma como Bolsonaro combate e destrói a ciência brasileira são extremamente prejudiciais ao Brasil. Ele avalia que as consequências econômicas já estão sendo sentidas pelo empresariado.
Para Galvão, o novo relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas, o IPCC, vai provocar uma pressão ainda maior sobre o Brasil para que a floresta seja preservada. Nesta entrevista à Focus Brasil, o físico diz que a Amazônia corre sério risco de se transformar em uma savana. E as consequências para o Brasil e para o mundo seriam terríveis.
O professor da Universidade de São Paulo (USP) ainda aponta sobre os retrocessos na ciência brasileira e o quanto o país perde com o cenário de desinvestimento e destruição das entidades de fomento à pesquisa. Leia os principais trechos da entrevista:
Focus Brasil — O novo relatório do IPCC apresenta dados alarmantes, mas isso já é algo comum. O que muda, aparentemente, é o nível de certeza sobre os estragos causados pela ação humana até hoje e para o futuro. Quais as consequências desse novo relatório para a geopolítica ambiental?
Ricardo Galvão — Primeiro, é preciso entender que os relatórios do IPCC não são artigos científicos. O grupo do IPCC coleta dados de várias publicações. Para se ter uma ideia, os modelos numéricos que fazem a previsão de evolução do clima, se não me engano, são 30 ou 35. E nem todos eles dão os mesmos resultados. Então, a primeira coisa que se deve ter em mente ao analisar um relatório do IPCC são os adjetivos usados. Fala-se em “virtualmente certo”, que é 99% de certeza, “altamente provável” varia entre 90% e 99%, e assim por diante com “provável” e “improvável”. O relatório é feito exatamente para os gestores poderem elaborar as políticas públicas com relação às mudanças climáticas. De impactante nesse relatório que não tem nos outros, é que eles colocam como praticamente certo que o aquecimento é devido a um efeito antrópico, além dos efeitos naturais. Isso não era tão claro nos relatórios anteriores.
— De que forma os apontamentos do relatório afetam as nações? Temos a COP 26 em novembro.
— Eu acredito que a maior parte dos países, de acordo com os relatos que tenho recebido, está levando o relatório muito a sério e considera que já estamos atrasados em tomar as medidas corretas. Quanto a isso não há a menor dúvida. O principal efeito, naturalmente, vai ser uma pressão enorme na redução de utilização de combustíveis fósseis. Todos os países já estão indo nessa direção. A própria China, que nunca se esperou que assumisse um compromisso nesse sentido, está se comprometendo até 2050 a zerar a emissão de gases do efeito estufa. Eu acho difícil, mas pode acontecer. Outro efeito, naturalmente, vai ser a pressão contrária ao desmatamento nas florestas tropicais. Existem só duas ferramentas principais para reduzirmos o efeito de gases do efeito estufa: a primeira é diminuir fortemente ou zerar a utilização de combustíveis fósseis – que eu não acredito que vá acontecer antes de 2050, acho muito difícil. E, a segunda, são as florestas, principalmente, as tropicais.
As três principais florestas tropicais são a Amazônia, a floresta do Delta do Rio Congo na África e a floresta nas Filipinas. Esta última já foi bastante desmatada, então já é um emissora de gás carbônico. Ela não é mais absorvedora de carbono. A floresta amazônica até pouco tempo era ainda um absorvedor — absorvia mais gás carbônico do que emitia. Mas existem trabalhos muito recentes que estão tendo repercussão enorme, principalmente o trabalho da professora Luciane Haddad, do Inpe, que acabou de ser publicado na revista Nature, que oferece dados de medidas em 10 anos, de gases do efeito estufa em cinco localidades da Amazônia.
Isso já mostra que todo o Leste da Amazônia — o chamado arco do desmatamento, que começa no Maranhão e vai até o Norte do Mato Grosso, bordeando o Sul da Amazônia — toda essa região já está sendo um emissor de gás carbônico, o que é extremamente preocupante. Então, a Amazônia já está se tornando quase um balanço zero entre absorver gás carbônico. Já a Floresta do Rio Congo, não. Lá, eles continuam ainda sendo o principal sequestrador de carbono da atmosfera.
Então, acredito que na reunião que vamos ter em novembro vai haver uma pressão enorme sobre o Brasil. Não tenho dúvida disso. Porque o compromisso assumido pelo Bolsonaro na conferência convocada pelo presidente Joe Biden, já não está cumprindo. Ele prometeu que iria zerar o desmatamento ilegal da Amazônia até 2030. Até fiquei animado, mas agora já estamos percebendo que zerar o desmatamento ilegal, pelas medidas que estão no Congresso, é legalizar o que é ilegal. Isso é extremamente preocupante. Existem pressões de setores do governo para que se atue para diminuir o desmatamento, mas eu tenho dúvida que isso vá acontecer e estou esperando forte pressão sobre o país nesse aspecto.
— Qual é a situação do Brasil perante o mundo?
— Há um contexto histórico. O Brasil, desde a conferência Rio-92, com os trabalhos liderados pelo professor José Goldemberg, sempre teve protagonismo enorme nessa questão ambiental, de preservação das florestas tropicais e do desenvolvimento sustentável. Por exemplo, o sistema desenvolvido pelo Inpe para monitoramento do desmatamento amazônico, o PRODES, é um dos mais respeitados do mundo. Temos que lembrar que de 2004 a 2012, desde que o Inpe criou o sistema DETER de alerta, o Brasil reduziu o desmatamento na Amazônia em 80%. Caiu de mais de 27 mil km² para cerca de 4 mil km². Esse resultado foi considerado pela revista Nature como o maior exemplo de conservação e de sustentabilidade de florestas tropicais do mundo, naquela década. Em 2015, teve um trabalho publicado por cientistas de Harvard, da Universidade de Columbia e da Nasa falando sobre o sistema DETER. Disseram explicitamente, “outros países monitoram suas florestas com satélites, mas ninguém fornece os dados publicamente, gratuitamente, abertos e de altíssima qualidade como faz o Inpe no Brasil”. Ali, convocam os outros países a seguir o exemplo brasileiro.
Até 2014, o Brasil tinha um enorme protagonismo. E as ações que começaram a diminuir o controle do desmatamento na Amazônia, é preciso ser honesto, começou no governo Dilma, infelizmente. Mas o desmatamento foi incentivado por Bolsonaro com um discurso nefasto, predatório, incentivando o desmatamento. Com isso, a imagem que o Brasil tem no exterior ficou muito prejudicada. Pior do que a de qualquer outro país. O Brasil era considerado um exemplo agora é vilão do mundo. Isso terá consequência muito grande, já está tendo, e aquelas pessoas ligadas ao “bom agronegócio” estão preocupadíssimas. Os grupos que apoiam essas ações do governo, na minha opinião, são minoria.
Tudo isso, realmente, coloca o Brasil numa situação muito ruim que vai ter consequências econômicas. A consciência do desenvolvimento sustentável no exterior, principalmente na Europa, é enorme. Os consumidores já têm uma preocupação grande de não consumir produtos que não sejam produzidos de forma sustentável. O governo tem uma atitude predatória para o país.
— No Brasil, temos um governo que é inimigo declarado do meio ambiente, que destrói tudo, como já foi pontuado aqui. Como o senhor avalia a crise no Inpe?
— A questão do supercomputador já vinha de antes. Inclusive, na minha foi quando alertamos o governo de que teríamos que adquirir um novo computador. Estávamos numa situação difícil e em 2018 conseguimos fazer uma reestruturação do computador, trouxemos peças novas para alongar sua vida útil por mais um ou dois anos. Mas o governo já sabia disso. Então, a decisão de não substituir o computador já vem de antes [com Michel Temer]. Agora, o que aconteceu fortemente durante o governo Bolsonaro foi uma redução drástica do orçamento do Inpe. Isso teve consequências enormes.
O supercomputador só é ligado parcialmente à questão do meio ambiente. Ele funciona para fazer a meteorologia por satélite computacional e a segunda parte que é importantíssima, mas exige muito mais poder computacional — são as previsões climáticas. Os informes que o Brasil fornece para o IPCC são rodados no supercomputador do Inpe. Há programas desenvolvidos pelos próprios pesquisadores do Inpe. Esses vão ser fortemente afetados. Porque o computador que o diretor do Inpe está dizendo que vai comprar, que ele diz que é equivalente ao supercomputador, não é. Os informes sobre a questão de mudanças climática serão fortemente afetados.
— Os retrocessos que o governo Bolsonaro vem impondo à ciência brasileira representam quanto tempo de atraso no desenvolvimento da estrutura científica brasileira?
— Não é bem a questão de colocar em termos de anos perdidos. A ciência brasileira, a partir de meados da década de 80 teve um desenvolvimento enorme. Podemos usar até o adjetivo “espetacular”. Nós produzíamos menos do que 0,3% de toda a produção científica mundial e estamos agora em cerca de 2%. Nós formávamos menos de 2 mil doutores por ano e hoje formamos mais de 22 mil doutores por ano.
Durante os governos FHC, Lula, Dilma — até pelo governo Temer, que caiu um pouco —, a ciência teve um desenvolvimento fortíssimo. Agora, ela está sendo atacada principalmente com cortes de recursos orçamentários muito fortemente, mas estão minando uma fortaleza que ainda resiste. Na minha opinião, ainda resiste. Eu quero dizer claramente, se, por exemplo, a partir do ano que vem não tivermos mais o governo Bolsonaro, mas tivermos um governo que não seja negacionista e que valorize a ciência, eu acredito que entre 3 e 5 anos possamos recuperar musculatura. Agora, a perda enorme que está havendo é de pessoal.
O corte de bolsas é muito grande. Só para ter uma ideia, no meu laboratório na USP, que não é um laboratório muito grande, os últimos seis doutores que se formaram estão todos no exterior. É natural que uma pessoa que faz o doutoramento no Brasil vá para o exterior, passe dois anos. Todos os países fazem isso porque é muito bom para ampliar sua área de conhecimento, mas geralmente voltam para o país. Não há como voltar. Não tem possibilidades para voltar. Os cortes no CNPq foram drásticos.
A ciência brasileira só não sofreu mais porque grande parte da dela é feita aqui em São Paulo e a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo ainda tem musculatura para apoiar a ciência. Mas o desenvolvimento da ciência brasileira nesses governos passados não foi só em número, mas também na homogeneização pelo país. Ela era muito concentrada no Sudeste e Sul e agora está espalhada no Nordeste, no Norte, no Centro Oeste. Nesses locais também temos bons institutos e bons grupos de pesquisa. Todos dependem de recursos do governo e estão sofrendo muito.
Nós sabemos que se perdermos as pessoas, se forem para fora, é difícil voltar. Para dar um exemplo típico agora de governo Bolsonaro, um avanço espetacular que o Brasil teve, que o Inpe foi responsável, foi o desenvolvimento de satélites para uso civil, monitoramento da Amazônia, monitoramento de queimadas…
O Inpe teve o apoio do acordo China-Brasil para o desenvolvimento de satélites de observação da Terra, que foi muito exitoso. Foi considerado pela Unoosa — o escritório das Nações Unidas para uso pacífico do espaço — como maior exemplo paradigmático de sucesso em colaboração Sul-Sul na área espacial. E o Inpe desenvolveu um satélite, o Amazônia 1, que foi lançado pelos seus próprios engenheiros.
Ora, a equipe de engenharia espacial para desenvolver um satélite é de 80 pessoas. Bolsonaro cortou todos os recursos. Não temos mais a colaboração Brasil-China que completou 30 anos em 2018, estava projetado o satélite Amazônia 2 e não será feito. E o que acontece com essa equipe de engenheiros aeroespacial? Basta que a indústria se recupere um pouco para atraí-los. Vai levá-los embora. Isso não se recupera em cinco anos. Talvez em dez anos. Formar o know-how humano é custoso porque não é só ensinamento, tem a experiência. Isso vai ser, sim, uma perda muito grande para o país. E temos também outras áreas, em particular nas Ciências Biomédicas também temos perdas desse tipo.
— A situação da Amazônia hoje é a mais preocupante da História? Há recuperação possível?
— Olha, a situação está muito difícil e não é só sobre a questão de ser um sequestrador de gás carbônico da atmosfera, mas principalmente, ser o principal fator do nosso regime de chuvas em todo o país. No Sudeste, por exemplo, dependemos de toda a umidade que vem da Amazônia e já estamos sentindo na pele o efeito disso, a diminuição drástica nas chuvas.
Tem um estudo muito bem feito pelo professor Carlos Nobre que mostra a Amazônia como um todo, não só a brasileira. E se ela for desmatada mais que 25% a 30%, depende do modelo, a sua tendência a se tornar uma savana é irreversível. Vai deixar de ser uma floresta. Essa vai ser uma perda enorme. Enorme. Para a humanidade e para o país, fora a biodiversidade.
No Brasil, nós já desmatamos 20%. Estamos muito perto de chegar a esse limiar e isso é extremamente preocupante. Nós precisaríamos ter um governo que não só não fosse negacionista, mas que entendesse a importância da ciência, do desenvolvimento sustentável e tivesse capacidade diplomática para se articular com todos os países pan-amazônicos para a proteção da Amazônia.
Nós não só temos que reduzir fortemente o desmatamento, mas temos que voltar a plantar em várias áreas. Esse arco do desmatamento, nessa área, a estação seca já dura três semanas a mais do que o resto da Amazônia. As temperaturas médias são cerca de 2 a 3 graus acima e alguns produtores já sentem falta de água.
Então, a situação pode se tornar irreversível, prejudicando o país. E estamos vendo isso claramente no regime de água que não depende só da Amazônia, depende da circulação atmosférica, do fenômeno El Niño, mas tem um componente importante que é a Amazônia. Nós podemos recuperar, sim. Não só com ações governamentais, mas com o incentivo muito grande ao desenvolvimento sustentável da Amazônia. Precisamos que a sociedade, até os grandes capitalistas empreguem dinheiro e estimulem várias áreas usando o método que o professor Carlos Nobre chama de Amazônia 4.0 para encontrar lugares próprios ao desenvolvimento sustentável. Agora, para que possamos fazer isso é preciso que tenhamos políticos inteligentes, políticos que entendam o que é ciência e como fazer isso. Eu tenho dito que não teremos um desenvolvimento sustentável, socialmente justo e equânime no país sem políticas públicas fortemente embasadas no avanço científico e tecnológico.