Glauber Rocha era irascível, temperamental, verborrágico, delirante, incompreendido, anárquico, provocador, irresponsável, marxista e porra-louca. Era tudo isso e muito mais. Era, sobretudo, um artista absolutamente genial e original. Em 22 de agosto de 1981, com apenas 42 anos de idade, o mais influente e reconhecido cineasta brasileiro no mundo partiu, um dia depois de voltar do exílio voluntário em Portugal. Faleceu vítima de um choque bacteriano por conta de uma pneumonia. Amigos e familiares, como a mãe do cineasta, Lúcia Rocha, foram mais a fundo. “Glauber morreu de uma doença chamada Brasil”.

“A Cultura Brasyleira está com câncer. Toritoma maligno. Carcimona Embriologenico. Melomena pulverizantyz. Metástase: os efeitos destrutivos possuíram órgãos, membros e almas dos artistas, burocratas que se ocupam de produzir, realizar e distribuir cultura no Brazyl”, escreveu o jornalista em 1979, em artigo publicado no Correio Braziliense. “A Televisão está contaminada pelos enlatados promocionais do FBI e da CIA. (Órgãos de segurança yankz). As Telenovelas veiculam problemas falsos, com roupas falsas e falas falsas. Nossas rádios transmitem 90% de música yank ou ‘multyz’ com o objetivo de SURDAR o povo”.

O que diria hoje Glauber? Ele morreu se queixando dos fascistas — sua briga com o cineasta Louis Malle, em pleno Festival de Veneza, em 1980, após ver seu genial “A Idade da Terra” ser ofuscado por um filme menor do francês, “Atlantic City”, é antológica. “É um cineasta de segunda categoria! Não tem condições de me derrotar! Faço cinema do futuro e ele, uns filmezinhos comerciais”, detonou. O baiano declarou que havia um conluio e que Malle só ganhou o prêmio porque a produtora Gaumont — “uma multinacional imperalista” — fez um jogo de cartas marcadas.

Malle partiu para cima: “E o seu filme foi produzido por quem?”. Glauber devolveu: “Pela Embrafilme, uma empresa estatal de meu país” — presidida na época por ninguém menos que e diplomata Celso Amorim, ex-chanceler de Lula. Sorrindo, cheio de ironia, o cineasta francês rebateu: “E o Brasil não tem um regime fascista? Ou você é daqueles que acha que [João] Figueiredo é democrata?”. Colérico, Glauber avançou sobre o colega. “Fascistas são vocês, que manipulam as multinacionais do cinema, que impõem toda sorte de mediocridade ao mercado do terceiro mundo!”

Ah, Glauber. Você não viu nada. Não viveu para ver a ascensão de um fascista de primeira linha — um bronco como Mussolini — chegar à Presidência do Brasil, depois que um líder operário deixou o poder, no auge da popularidade, com mais de 80% de aprovação, passando a Presidência para uma ex-guerrilheira, presa e torturada durante a ditadura militar, derrubada por um Golpe de Estado travestido de impeachment… A esquerda perseguida.

Felizmente, você não estava aqui para ver o que tentam fazer com a cultura nacional todos os dias. Como tudo está sendo rasgado e reduzido a pó. Você não viu Zumbi dos Palmares ser varrido da memória nacional, ou assistiu aos ataques de um negro que dirige a Fundação Palmares a figuras queridas da nossa cultura como o Antonio Pitanga — o Crysto Negro —, ou Zezé Motta.

Que bom, Glauber, que você não assistiu ao incêndio monstruoso do Museu Nacional, no Rio, durante o governo Temer, nem estava presente para ver a recusa do presidente do Brasil em entregar o prêmio Camões — o mais importante reconhecimento de um autor de língua portuguesa — ao Chico Buarque, em 2019… Também não viu parte dos teus manuscritos, cartas, roteiros, filmes e documentos serem destruídos pela omissão criminosa do governo federal, que jamais tomou providência para resguardar o acervo da Cinemateca Brasileira, que virou pó num galpão na Vila Leopoldina, em São Paulo.

Mas o Brasil pode vir a se apaixonar novamente pelo cinema do baiano em pouco tempo. Uma cópia em 4K de “Deus e o Diabo na Terra do Sol”, o segundo longa-metragem de Glauber, lançado no Brasil em julho de 1964, está sendo recuperado pela filha, Paloma Rocha. A obra, um dos marcos da cultura nacional, é referência como obra-prima do Cinema Novo, movimento que deu outro patamar à sétima arte no país e à produção cinematográfica nos anos 1960 e no início da década seguinte. A paixão de Glauber pelo Brasil deveria ser estudada nas escolas públicas. Afinal, sua obra foi reconhecida no mundo e louvada por diretores influentes como Jean Luc Godard e Martin Scorsese, ambos grandes fãs do baiano.

Glauber foi um homem de seu tempo, e transformou o cinema em um instrumento de arte e consciência social. Foi o primeiro a tratar da fome crônica nos sertões brasileiros como denúncia da miséria e da opressão. “A fome latina não é somente um sintoma alarmante: é o nervo de sua própria sociedade”, escreveu em 1981, em “Revolução do Cinema Novo”. “Aí reside a trágica originalidade do Cinema Novo diante do cinema mundial: nossa originalidade é nossa fome e nossa maior miséria é que essa fome, sendo sentida, não é compreendida”.