O fim do Bolsa Família é um retrocesso para o sistema de proteção social do Brasil
Após 18 anos, o Programa Bolsa Família (PBF) é uma das mais bem-sucedidas intervenções públicas de combate à pobreza no mundo. Apesar do seu grande prestígio e grande cobertura (14 milhões de famílias atendidas), o programa teve desde seu princípio muitos inimigos. O ponto de aglutinação dos oposicionistas é que o objetivo central do programa deveria ser melhorar o vínculo das crianças com a escola, para que no futuro elas se libertem da pobreza. Os mais radicais gostariam que os recursos fossem investidos em programas educacionais e ponto final. Os mais brandos admitem o papel da assistência social apenas como facilitador do acesso a educação. Nos seus vários matizes, os adversários do Bolsa Família refutam o seu papel de alívio imediato à pobreza e à extrema pobreza, não estão confortáveis com o seu papel na melhoria da saúde, nem na decisiva contribuição para a redução da fome no Brasil.
O Bolsa Família possui ainda outro tipo de adversários, os que pretendem “modernizar” o programa desconstruindo os principais fundamentos do seu sucesso. Entre especialistas em todo o mundo há consenso sobre dez pontos fortes do Bolsa Família.
- O PBF possui impactos positivos consistentes com seus objetivos no alívio imediato dos efeitos da pobreza e extrema pobreza, saúde, educação, trabalho infantil e empoderamento da mulher. Uma rápida consulta no Google Acadêmico indicará mais de 100 mil estudos sobre “Bolsa Família”;
- Cadastro Único. É uma ferramenta de uso diverso que compreende a gestão, o monitoramento das condições de vida dos beneficiários e permite a coesão entre os vários níveis envolvidos;
- Complementariedade com os serviços de assistência social. O PBF é parte do Sistema Único da Assistência Social, que busca atender as populações vulneráveis em suas várias demandas;
- Articulação com outros programas sociais. O PBF se articula com os programas de saúde, educação e prevenção ao trabalho infantil;
- O desenho do programa é simples, sendo de fácil entendimento para seus gestores e beneficiários;
- Em países em desenvolvimento, é um dos poucos programas desta natureza que realiza pagamentos mensais, revisões periódicas e inscrição no programa com regras estáveis e transparentes;
- Modelo de gestão. Este é baseado em cooperação nos vários níveis de governo (federal, estadual e municipal), monitoramento efetivo, modelo eficaz de combate à fraude e inovação;
- Sustentabilidade financeira. Realiza atualização dos valores dos benefícios e do valor dos critérios de renda para o ingresso no programa de forma consistente com o espaço fiscal;
- Transparência. São conhecidos os beneficiários, os municípios atendidos, os valores transferidos, os relatórios de pesquisas realizadas e os dados de pesquisas realizadas;
- Avaliação e monitoramento. O PBF é o programa mais avaliado em toda a história das políticas públicas do Brasil.
A MP nº 1061/2021 que institui os programas Auxílio Brasil e Alimenta Brasil subverte vários atributos de sucesso do PBF. Neste texto, trato apenas do Programa Auxílio Brasil. Incorre em vários erros simultâneos. O seu desenho confuso, implicando objetivos imprecisos sobre o que se pretende alcançar na promoção e na proteção sociais. A medida, apesar de citar várias vezes a importância do Sistema Único da Assistência Social, enfraquece o seu papel articulador dos programas de proteção social, em especial no programa de transferência condicionada de renda.
Como consequência, beneficiários e gestores dos programas de proteção social terão dificuldade de entender o modelo proposto, caso ele seja vitorioso. A população em geral, que financia a política pública com impostos diretos e sobretudo indiretos não entenderá onde o programa pretende chegar. O eventual fracasso parcial ou completo comprometerá o prestígio internacional acumulado pelo PBF e pela política de proteção social do país. Além disso, há risco evidente de que gestores federais sem conhecimento das matérias implementem conteúdos de competência de outros ministérios, podendo gerar, inconsistências, competição, redundância e ineficiência.
A MP interfere também na governança do atual PBF. Ela não garante a permanência da participação integrada e complementar dos três níveis de governo, nem da participação social, em especial da representação dos beneficiários, na gestão do programa. É inevitável a percepção de que esta atabalhoada visa a apropriação política exclusiva do programa pelo nível federal, o que levará a competição pelos atores subnacionais, gerando programas redundantes para angariar prestígio junto ao eleitorado. Sai a cooperação técnica e entra luta inescrupulosa e voraz pelo retorno eleitoral.
A MP se exime em definir a regularidade na revisão dos valores dos benefícios e nos limites de renda para inclusão para o programa.
O modelo de financiamento do novo programa segue o modelo de improviso e inadequação do seu desenho. Financiar um programa de longa duração com precatórios e venda de patrimônio público, é admitir a precariedade como método e suprimir o benefício de milhões no curto prazo. Com níveis altíssimos de endividamento público por conta do desastrado combate da Pandemia do COVID-19, a MP pretende agora financiar o aumento do gasto alongando dívidas e comprometendo um recurso que sequer existe. Será irônico ver um Congresso que derrubou uma presidenta sob o pretexto de que sua política provocava desequilíbrio fiscal endossar tal iniciativa. Programas baseados em financiamento precário geram insegurança aos beneficiários e minam a credibilidade do Estado e dos próprios programas.
Os inimigos do PBF reinventam seus ataques. É importante uma reação geral para que não percamos uma das melhores invenções da política pública do país.