O afastamento ilegal de Dilma Rousseff da Presidência da República resultou em grandes retrocessos no campo da comunicação pública. A EBC virou instrumento de propaganda política e as Fake News foram levadas a instrumento principal do discurso autoritário do governo Bolsonaro

 

O impeachment da presidenta Dilma Rousseff em 2016, sem crime de responsabilidade, concretizou uma ação articulada de ruptura da ordem constitucional, assegurando a implementação de um programa refutado nas urnas por quatro eleições consecutivas, justamente por seu caráter neoliberal, antinacional e antipopular. Nesse compasso, os atores do Golpe aprofundaram os riscos democráticos elegendo Jair Bolsonaro em 2018. As instituições, cujo papel é justamente o de garantir o Estado Democrático de Direito, tinham aberto o caminho para a prisão ilegal de Luiz Inácio Lula da Silva. Recém empossado, Bolsonaro disse a líderes conservadores, em Washington, nos Estados Unidos, o sentido do seu governo como um ponto de inflexão: “Nós temos é que desconstruir muita coisa. Desfazer muita coisa.”

Muita coisa mesmo. No tema da comunicação pública, assegurar o direito à informação foi ao mesmo tempo princípio e eixo estratégico do projeto de comunicação dos governos Lula e Dilma. Políticas progressivas de democratização, diversificação e inclusão digital, assim como a interlocução institucional respeitosa e permanente com a imprensa produziram avanços evidentes, com  a criação da Empresa Brasil de Comunicação (EBC), diversas vezes premiada; a promulgação da Lei de Acesso à Informação (LAI); o aperfeiçoamento do governo eletrônico; o lançamento do Plano Nacional de Banda Larga — o maior programa governamental de inclusão digital —; o empenho em garantir o direito dos usuários, a finalidade social das redes e o acesso a todos com o Marco Civil da Internet e depois com a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), formulada a partir de intensa participação da sociedade civil, buscando um ambiente de rede protegido e pautado por direitos.

Foram tempos diligentes em consolidar instrumentos de participação social na formulação e controle de políticas públicas, ressaltando a realização da 1ª Conferência Nacional de Comunicação (Confecom), em 2009. O Golpe interrompeu esse percurso de 13 anos de ação democrática e delineou o início de decomposição da comunicação pública.

Após cinco anos, a desconstrução é efetiva e os danos gravíssimos: por meio de atos inconstitucionais e ilegalidades flagrantes, a gestão governamental passou a ser pautada, e assimilada pelos governistas no Congresso, no desmonte estrutural do Estado e de políticas públicas consagradas. A relação institucional e democrática com a imprensa e com a sociedade, consagrada pelos governos do PT, foi substituída por discursos personalistas voltados à base eleitoral de Bolsonaro, expresso em agressões, difamação e ameaças a autoridades, jornalistas, líderes políticos e sociais, artistas e intelectuais identificados com a esquerda ou simplesmente a quem se opõe publicamente aos desmandos autoritários. 

A EBC e o fim da comunicação pública, democrática e plural

A fundação da EBC em 2007 é marco do cumprimento da Constituição Federal de 1988 que em seu artigo 223 determina ao Poder Executivo a obrigação de garantir à radiodifusão a complementaridade dos sistemas privado, público e estatal. Nascia com ela a TV Brasil, seguindo as diretrizes do Fórum Nacional de TVs Públicas, realizado em 2007 e coordenado pelo Ministério da Cultura, destinadas a consolidar um sistema publico de comunicação. Com a EBC, surge uma estrutura independente de produção de conteúdos, resguardada de tornar-se órgão federal de propaganda, em especial, por meio da participação da sociedade em seu Conselho Curador: 22 integrantes, dos quais 15 indicados pela sociedade, quatro pelo governo federal, um pela Câmara dos Deputados, um pelo Senado Federal e um indicado por funcionários da empresa. Toda a programação dos veículos da EBC — duas emissoras de TV, oito de rádio e duas agências de notícias — passava pelo crivo do Conselho, cuja composição refletia a diversidade regional e social do país. Estava se consolidando uma mídia pública, voltada a atender a pluralidade e a promover os direitos humanos.

Logo depois do Golpe, o governo Temer partiu para a ofensiva contra a EBC. Por medida provisória, alterou a estrutura da empresa e extinguiu o Conselho Curador, principal instrumento de participação social e fiador do caráter público da empresa. As diretrizes editoriais passaram a ser definidas pelo Conselho de Administração, formado integralmente por representantes do próprio governo.

E mais, alterou o mandato do presidente Ricardo Melo, antes de quatro anos não coincidentes com o mandato da Presidência da República que nomeava, mas não podia demitir, apenas o conselho poderia fazê-lo. Bolsonaro eleito, anunciou a fusão do canal governamental (NBR) com a emissora pública (TV Brasil). A censura a visões divergentes tornou-se prática diuturna. Os ataques à empresa persistiram, numa estratégia de difamar para privatizar até que, em abril de 2021, a EBC foi incluída no Programa Nacional de Desestatização (PND), por meio de decreto. Por ferir preceito da Carta Magna em sua natureza pública, vozes se levantaram denunciando a inconstitucionalidade da medida.

Raposas em cena: a agenda privada no centro da ação governamental

A agenda do governo foi tomada pela agenda do mercado. Temer extinguiu o Ministério das Comunicações e transferiu suas atribuições para o Ministério da Ciência e Tecnologia (MCTI). A Lei 13.424, de 2017, flexibilizou regras e obrigações de empresários de rádio e TV, tirando do Poder Executivo a prerrogativa de aprovar alterações societárias das emissoras, além de revogar artigo do Código Brasileiro de Telecomunicações que previa a anulação de concessões de empresas que ferissem dispositivos regulamentares ou legais. Não bastasse, anistiou empresas que perderam o prazo de renovação das concessões.

A prioridade nas telecomunicações passa a ser a mudança de modelo, dando forte impulso à reformulação do marco regulatório do setor, com foco na transformação das concessões em autorizações, instrumento precário de outorga. A Lei Geral de Telecomunicações (LGT) foi alterada. Para os serviços essenciais, deixou de ser obrigatória a aplicação do regime público, justamente o que requer os atributos de universalização, continuidade e modicidade tarifária.

Bolsonaro recriou o Ministério das Comunicações em 2020 e, para atender aos acordos com o Centrão, nomeou ministro Fabio Faria, genro do empresário Silvio Santos. A Secom da Presidência da República passou a integrar a estrutura do MiniCom, que, a partir de então, tem sob seu comando todas as áreas da comunicação governamental: a institucional, de publicidade e promoção e de imprensa, bem como aquelas responsáveis pela radiodifusão e telecomunicações, concentrando, assim, toda a cadeia institucional e de valor da comunicação pública no país. Desapareceu a prioridade de construir infraestrutura adequada à universalização, de conectividade avançada em 5G, e nas dimensões necessárias para atender a todas as regiões, em igualdade de acesso e potencial de incrementar o desenvolvimento nacional. Editais para novas rádios comunitárias e TV educativas nos municípios sumiram da agenda governamental, colocando à margem mais de 40% dos municípios brasileiros.

Nas telecomunicações, a gestão Bolsonaro completou a reforma da LGT iniciada no governo Temer, abandonando um projeto efetivo de inclusão digital e deixando o acesso à internet refém da dinâmica de mercado, mantendo políticas ínfimas. O edital do leilão do 5G desperdiçou a chance de estabelecer uma política de conectividade móvel que enfrente as limitações e desigualdades da situação brasileira.

A radiodifusão é o setor mais afetado pela reorganização dos investimentos publicitários do governo concentrando verbas a aliados: SBT, Band e Record. Um retrocesso de quase duas décadas na política de veiculação publicitária de governo implantada pelo presidente Lula, que, adotando o critério objetivo e transparente de mídia técnica — o percentual do investimento publicitário em cada veículo deve corresponder à sua audiência ou circulação —, tornou possível evitar privilégios e distorções.

A partir de 2007, o governo Lula implantou uma política de regionalização dos investimentos publicitários, aumentando o potencial de alcance das mensagens. Veículos regionais e locais passaram a compor a carteira, aproximando a população afastada dos grandes centros urbanos dos serviços e ações governamentais de forma transparente e democrática.

Desproteção de dados

Às vésperas do impeachment da presidenta Dilma Rousseff, o governo federal enviou ao Congresso, após anos de debate com a sociedade, um anteprojeto da Lei Geral de Proteção de Dados, alinhado com as melhores práticas internacionais e equilibrando a proteção dos indivíduos com o estímulo à inovação. Partindo deste texto e com a ação das bancadas do campo progressista e de entidades da sociedade civil, foi aprovada a LGPD — Lei 13.709, de 2018 —, que sofreu vetos do presidente Michel Temer a garantias importantes.

A gestão de Jair Bolsonaro buscou adiar o início da vigência da lei, implantou a Autoridade Nacional de Proteção de Dados, tomada de militares, e criou um supercadastro para ampliar a vigilância sobre os cidadãos. No contexto da pandemia, ainda editou a Medida Provisória 954/2020 para transferir um volume assustador de dados ao IBGE, cuja validade foi barrada pelo STF.

Omissão, desinformação e mentiras que matam

Treze meses após o primeiro caso do novo coronavírus registrado no país, a pandemia segue estável pelo alto, em número alarmante de mortes sem que o governo apresente um Plano Nacional de Comunicação que informe e oriente a população sobre a gravidade da doença, riscos e cuidados fundamentais no controle do contágio.

E, pior, não apenas omite informações sanitárias cruciais, como faz o oposto. Não há campanha de esclarecimento para efetivo enfrentamento da pandemia. A agenda de governo é anticientífica e de incentivo à contaminação. Divulga informações falsas com risco à saúde da população com dinheiro público. Influenciadores digitais são pagos para propagar “tratamento precoce”, já afirmado pela OMS e pela própria Anvisa como um protocolo ineficaz e prejudicial a alguns pacientes. Cloroquina e Azitromicina são medicamentos usados para outras enfermidades com graves efeitos colaterais.

No episódio dos influenciadores pagos para mentir pelo governo promovendo o “tratamento precoce”, a Secom informa o total R$ 987,2 mil gastos com filmes para TV, spot para rádio, vídeos e banners para internet e para mídia exterior.

O descaramento foi tanto que obrigou o Twitter a marcar uma postagem do Ministério da Saúde como “publicação de informações enganosas e potencialmente prejudiciais relacionadas à COVID-19”.

No início do ano, na semana em que os influenciadores faziam suas postagens, ofício do Ministério da Saúde à Secretaria de Saúde de Manaus previa visita de técnicos para difundir e aprovar “tratamento precoce como forma de diminuir os internamentos e óbitos decorrentes da doença” e ressaltava “comprovação científica sobre o papel das medicações antivirais orientadas pelo Ministério da Saúde”.

Antes, em outubro de 2020, a Organização Mundial da Saúde (OMS) já havia publicado um estudo sobre a ineficácia de diversos medicamentos do “tratamento precoce” brasileiro contra a Covid-19. Em janeiro de 2021, técnicos da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) se pronunciaram sobre a inexistência de tratamento precoce para o coronavírus.

Em fevereiro, pesquisa no Amazonas comprovou o efeito contrário: pacientes que tomaram remédios do suposto “tratamento precoce” tiveram maiores taxas de infecção que aqueles que não haviam sido submetidos a tal protocolo.

Um verdadeiro apagão de dados

Informações sob responsabilidade do Ministério da Saúde foram tiradas do ar diversas vezes e manipuladas nos cálculos de testagem, contaminação e mortes sob alegação de mudança de metodologia. O empenho do governo em desmontar as estruturas de produção de dados e informações é flagrante em diversas áreas: INPE, IBAMA, INCRA. Com IBGE, a ação envolve destruir o instituto por inanição.

O censo demográfico, depois de sofrer toda sorte de arremedos na estrutura da pesquisa e adiamento por conta da pandemia, foi suspenso indefinidamente e totalmente inviabilizado por falta de destinação de recursos no orçamento. Dos R$ 2 bilhões necessários, restaram alocados R$ 71,7 milhões, um escárnio com a pesquisa realizada desde 1940 e a mais importante do país, pois é dela a amostragem populacional que garante a devida repartição de recursos em educação, saúde, programas de transferência de renda, emprego e renda, entre outros.

Os prejuízos aos municípios são incalculáveis, podendo comprometer inclusive a vacinação contra a Covid-19. Sem dados e informações de governo confiáveis, não se faz comunicação de qualidade, seja ela pública ou privada.

O Estado brasileiro tomado de assalto

A estratégia de fakenews, incitação à violência, desinformação, repúdio aos princípios democráticos personificada por Bolsonaro, tornou-se recorrente em todas as esferas do governo. O país foi alijado de uma comunicação pública democrática e submetido a uma fábrica de notícias falsas e desinformação mantida com recursos públicos.

O Gabinete do Ódio, assim batizado por ex-aliados do presidente da República, deputados ouvidos pelo STF em inquérito que apura notícias falsas e ataques contra ministros do Supremo, definiram o esquema como uma estrutura montada para desferir ofensas à oposição, autoridades e instituições por meio de WhatsApp e diversas páginas nas redes sociais. O conteúdo é constante: discursos de ódio, subversão à ordem democrática e incitação à ruptura da normalidade institucional. Seus principais integrantes são assessores especiais da Presidência da República e da Secretaria de Comunicação Social (Secom), nomeados e remunerados pelo governo. Eles respondem a Carlos Bolsonaro, o filho responsável pela condução das mídias digitais da família. Há ação regionalizada nos estados, trabalho de também assessores de parlamentares que atuam de forma coordenada. Textos idênticos e disseminação simultânea indicam o uso de robôs, prática vetada.

Racismo, machismo, homofobia, misoginia nunca antes tão difundidos

A propagação de crimes de ódio evidencia um cenário de risco ao exercício da profissão de jornalista e à liberdade de imprensa no país. O Relatório da violência contra jornalistas e liberdade de imprensa no Brasil — 2020, publicação anual da Federação Nacional dos Jornalistas (FENAJ), registra um crescimento de mais de 105% dos ataques contra jornalistas
em 2020, ano mais violento desde o início da série histórica, no começo da década de 1990.

Golpe de 2016 - O ódio como política de Estado

Dos 428 registros, Bolsonaro responde sozinho por 175 casos de violência contra jornalistas, o percentual alarmante de 40,89%. É uma ação sistemática: 145 ataques genéricos e generalizados a veículos de comunicação e a jornalistas, 26 casos de agressões verbais, um de ameaça direta a jornalistas, uma ameaça à Globo e dois ataques à FENAJ.

Golpe de 2016 - O ódio como política de Estado

O presidente junto aos servidores públicos e dirigentes da EBC, recursos humanos do Gabinete do Ódio, respondem por mais de 60% das agressões. A FENAJ ressalta que os dois assassinatos em 2020, repetindo o número de 2019 é um alerta de grave insegurança para a categoria.

Para a FENAJ, o incremento da violência e de violações à liberdade de imprensa está diretamente associado ao bolsonarismo, no qual a agressão configura um dos instrumentos de controle da informação. Desacreditar a imprensa é premissa para a difusão de informações falsas sem o contraponto dos fatos, em especial, durante a pandemia, justamente quando o Jornalismo é reconhecido por seu caráter de atividade essencial no Brasil e no mundo.

Golpe de 2016 - O ódio como política de Estado

A Comissão Interamericana de Direitos Humanos, em relatório recente, também destaca o cenário preocupante à efetiva liberdade de expressão no país, constatando a relação violenta do presidente e de seus apoiadores com jornalistas que, no exercício da profissão, são perseguidos e ultrajados com ofensas verbais e, não raro, físicas. A CIDH observa a profusão, pelo presidente e seus filhos e funcionários públicos, de “expressões de incitação ao ódio e discriminação, facilitando a ação violenta de grupos racistas, homofóbicos e misóginos”. Com base no artigo 13.5 da Convenção Americana, a CIDH considera a apologia ao ódio, por qualquer motivação, delito gravíssimo de incitamento à violência, contrariando as obrigações de direitos humanos assumidas pelo Estado brasileiro.

Os perigos da apologia ao ódio estão postos no expressivo crescimento do número de ameaças e atos de violência contra jornalistas no Brasil relacionado ao exercício da profissão. Nos últimos cinco anos, segundo o relatório da CIDH, foram registrados ao menos 11 jornalistas assassinados e dezenas de agressões. Em 2018, ano de campanha eleitoral, ocorreram quatro mortes e graves ameaças por meio digital a jornalistas, especialmente às mulheres. A CIDH conclui que denúncias revelam a existência de “uma máquina de difamação” nas mídias sociais, verdadeiras “milícias virtuais” com apoio de robôs. Há no STF e no Congresso iniciativas de investigação dessas estruturas de produção e de divulgação de notícias falsas, muitas delas, como já vimos, financiadas com recursos públicos.

Por fim, os cinco anos de golpe produziram a mais profunda alienação do direito à informação e dos serviços de comunicação, direitos universais, igualitários e abrangentes de conteúdo, ultrajando a constituição e usando de desinformação e violência como estratégia de uma relação predatória com o Estado brasileiro.