Silvio Tendler é conhecido como o “cineasta dos sonhos interrompidos” porque fez muitos filmes sobre figuras históricas que não puderam terminar suas obras. A lista de filmes produzidos por Tendler é longa. O trabalho com personagens marcantes da História do Brasil começou ainda durante a ditadura militar. Em 1968, realizou seu primeiro filme, sobre a Revolta da Chibata. Entretanto, diante da repressão, o filme foi queimado. A censura ao cinema nacional vivida naquele período passa por uma espécie de reedição na atualidade, com o incêndio da Cinemateca Brasileira. Uma tragédia preparada pelo governo de Jair Bolsonaro, na opinião de Tendler. O cineasta lamenta profundamente a situação e afirma que parte da memória nacional pode ter sido destruída, “o incêndio simboliza, de uma forma violenta e muito triste, o que eles querem fazer com o país. Porque é um incêndio que se alastra pela floresta amazônica, pelo Pantanal, pela arte, pela cultura e pela ciência”, afirma.

Testemunha e estudioso da História, Tendler diz que a censura às artes e ao cinema é algo que se repete, mas porque os conservadores são incapazes de realizar produções que tenham a mesma qualidade dos filmes “que nós realizamos”, diz ele, “eu aceitaria o confronto de bom grado”. O cineasta ainda falou sobre a figura de Jair Bolsonaro e do quão inacreditável é a sua eleição para a presidência da República. Aos 71 anos, ele está prestes a lançar o filme “A Bolsa ou a Vida”, que mostra a necessidade de se repensar a forma de lidar com o planeta no futuro. A seguir, leia a íntegra da entrevista:

 

– O senhor teve um filme queimado pela ditadura militar, então gostaria de saber o que o senhor tem a dizer sobre o incêndio da cinemateca que foi responsabilidade do governo federal por ter cortado verba, demitido funcionários e paralisado serviços de manutenção, quando o Estado brasileiro deveria presar pela nossa história.

– Eu acho que o incêndio da Cinemateca Brasileira, na situação atual, sem sombra de dúvida, é de responsabilidade do governo federal. Porque não foi por falta de aviso. Eu fui curador do Festival de Brasília do ano passado e dentro do Festival fizemos um evento no qual estavam presentes o Cacá Diegues, o Eduardo Escorel, o Roberto Gervitz – que é o grande articulador em defesa da Cinemateca -, o Vladimir Carvalho e nós fizemos um apelo para que fossem retomadas as atividades em defesa da Cinemateca. Estou te relatando fatos de um ano atrás. Antes disso, o Roberto Gervitz já tinha organizado um movimento em São Paulo pedindo a salvaguarda para a Cinemateca Brasileira. Os cineastas paulistas deram um abraço no prédio da Cinemateca e não só foram gestos públicos. Durante esse tempo todo, independente de questões político-ideológicas, eles ficaram de tratativas com o governo. Se dirigiram àquela “gaveta” que tem no Ministério do Turismo chamada Secretaria de Cultura e conversaram com os dirigentes da “gaveta”. A resposta do governo foi chamar a Polícia Federal e pedir as chaves da Cinemateca. Trancou a Cinemateca e não colocou ninguém em proteção ao patrimônio público. Não tinha um bombeiro, um eletricista, eu já não falo nem do “povo” da preservação dos arquivos, mas não tinha ninguém que garantisse a segurança física dos prédios e dos acervos existentes dentro.

Então, é uma responsabilidade do governo, sem sombra de dúvida. Agora eles tentam se esquivar e levantam uma coisa absurda de que poderia ter sido um incêndio criminoso. Se foi um incêndio criminoso, eu pergunto: criminoso de quem, cara pálida? Quem se interessava pela morte da memória nacional? Quem assumiu o governo dizendo que veio para destruir? Quem, desde 2019, asfixia as atividades de arte, ciência e cultura? Desde 2019 a Ancine está paralisada. O Ministério [da Cultura] foi dissolvido. O Ministério e os organismo culturais, hoje, formam um arquipélago, não formam um conjunto. Justamente, para desarticular todos os setores da Cultura. Está acontecendo em toda área pensante do país. É uma estratégia proposital. Eles acham que têm a estratégia da destruição como método e não a da construção. Então, estamos diante desse quadro catastrófico e o incêndio simboliza, de uma forma violenta e muito triste, o que eles querem fazer com o país. Porque é um incêndio que se alastra pela floresta amazônica, pelo Pantanal, pela arte, pela cultura e pela ciência. Recentemente, nós tivemos no CNPq o apagão dos Currículos Lattes. Sumiram milhares deles. Sumiram pesquisas. Para mim, aquilo foi um balão de ensaio. As pessoas protestaram e os currículos reapareceram, inclusive o meu. É como se você pudesse jogar pela janela uma carreira de 41 anos.

 

– O senhor falou um pouco sobre o simbolismo do incêndio, mas gostaria que você detalhasse um pouco mais, simbolicamente, o que é a destruição da Cinemateca.

– A Cinemateca é o maior acervo de conjunto da história audiovisual do país. Existem outras cinematecas no Brasil, regionais, com bons acervos, inclusive. Mas a Cinemateca de São Paulo foi sendo organizada para ser uma espécie de cinemateca-mãe. Ela teve uma reforma, “ganhou” um antigo matadouro de São Paulo que foi todo reformado e virou local não só de depósito de matrizes, mas também de atividades culturais. Ela teve esse depósito secundário que também pertence à Cinemateca diante do volume de material existente. E ali você tem materiais que vão do começo do cinema até o dia de ontem. No período, por exemplo, em que a Ancine teve um protagonismo muito forte nas atividades cinematográficas, fazia parte do contrato dos produtores que eram patrocinados pela Ancine, o depósito legal de uma cópia do filme na Cinemateca. É uma medida que se toma em vários outros países. Todo filme produzido tem que depositar uma cópia de boa qualidade na Cinemateca que ficará como uma matriz daquele filme, que será depositado em condições de umidade e temperatura para que ele possa ser preservado. Então, toda essa produção desses anos que está lá, se for queimada, é, mais uma vez, a morte da memória nacional.

Talvez já tenha gente que saiba a avaliação real do que foi queimado nesse último incêndio, mas circularam boatos, não sei até que ponto é verdade, mas que os acervos do Carlinhos Niemeyer, do Canal 100, estariam lá dentro. Então, as melhores imagens dos jogos de futebol e tal estariam lá dentro. Seria um crime isso. Mas eu não sei dizer qual é o volume do material que foi afetado e o que nós perdemos. O que eu posso dizer é que se for um fotograma, já é muito.

 

– A Ancine sofreu uma intervenção direta do governo Jair Bolsonaro que, entre outras medidas, vem realizando cortes no orçamento do Fundo Setorial Audiovisual. O setor é um dos mais afetados no campo da cultura. Como o senhor enxerga essa perseguição ao cinema brasileiro e de que forma a Ancine está sabotando o cinema nacional nesse momento?

– Na verdade, as pessoas se equivocam um pouco quando elas imaginam que o cinema brasileiro, que o Fundo Setorial Audiovisual, sobretudo, é financiado por verbas públicas. Então, a primeira coisa que um “bolsominion” te diz é “com o meu dinheiro não. Quer fazer tua propaganda, pega do teu dinheiro e faz”. Esse, além de mau eleitor, porque tem um péssimo gosto político-eleitoral, é um ignorante porque o financiamento do setor audiovisual vem do Condecine [Contribuição para o Desenvolvimento da Indústria Cinematográfica Nacional]. São taxas e impostos que os produtores, quando tiram o certificado de produto brasileiro pagam. Quando as televisões importam filmes, elas pagam uma taxa, ela vai para o fundo. Quando você compra um celular você paga uma taxa, essa taxa vai para o fundo. Então, não há um investimento direto do governo na produção do audiovisual. A Ancine é autônoma, ela é independente. E o financiamento das outras áreas, elas têm recursos parcos, mas são sobretudo oriundas de renúncia fiscal. Então, não existe essa coisa de estar tirando comida da boca de criança para jogar em arte e cultura, não existe isso. É uma balela. E fora isso, as atividades artísticas e culturais são fundamentais na sedimentação de um pensamento brasileiro. É fundamental para o país que elas existam.

O setor de arte e cultura e, proeminentemente, o cinema, gera empregos. É uma atividade extremamente rentável, qualificada. Você tem no campo profissional cinematográfico mais de 300 mil profissionais envolvidos diretamente e muito mais indiretamente e ainda têm indústrias que prestam serviços para o cinema. Você tem um quadro que gera empregos, que gera qualidade de vida e o próprio custo do Ministério da Cultura, quando esses governos paquidérmicos, de mau gosto, fecham o Ministério por razões de enxugamento da máquina, por razões de economia, eles esquecem de informar à população que o orçamento do Ministério é inferior a 1% do conjunto de despesas ministeriais. Fechar um Ministério que tem essa importância e que tem um custo operacional tão baixo, é muito mais uma medida discriminatória do que de economia.

 

– Ainda sobre esse ataque à arte e à cultura. Gostaria que você comentasse um pouco mais sobre esse período que é muito tenebroso, né. Essa tentativa de apagamento de uma parte da história e até de reforçar o que podemos chamar de cultura conservadora.

– Eu aceitaria de bom grado o confronto ideológico. Eu adoraria que me apresentassem filmes de direita com a qualidade que nós fazemos os nossos, mas eles não conseguem. Eles são incompetentes, eles são desqualificados, eles são despreparados. O cinema de direita já houve no Brasil. É um cinema ruim, de má qualidade. Em 1972, auge da ditadura militar, governo Médici, eles fizeram um filme em comemoração à independência do Brasil. Foi um fracasso. Fracasso. Toda a “grana” do mundo, elenco de primeiríssima qualidade, não vou citar os atores em respeito a eles, mas foi um fracasso. Você não cria heróis a fórceps. Então, na mesma época em que o Pasquim viralizava no país, em que o Joaquim Pedro de Andrade fez Os Inconfidentes – de Minas Gerais – com recursos italianos porque aqui ele não conseguia, a RAI italiana bancou Os Inconfidentes com José Wilker, Carlos Kroeber, com um baita elenco em um filme sobre a inconfidência baseado nos Autos da Devassa e no Romanceiro da Inconfidência, da Cecília Meireles, eles tentaram fazer o Independência ou Morte. Vamos para o confronto.

Eles fizeram recentemente um filme sobre a vida do Edir Macedo, fizeram filme sobre os 10 mandamentos. Não resiste [repete a mesma expressão rindo ironicamente]. Então, eles não têm a capacidade de fazer e aí eles censuram por conta da incapacidade de fazer igual ou melhor. E já que eles não fazem, ninguém pode fazer. Mas você teve pensadores conservadores no país de qualidade, mas não é o caso desse aprendiz de ditador.

 

– Falando nesse “aprendiz de ditador”, pensei em como lhe perguntar sobre o Bolsonaro. Se perguntaria a qual personagem de filme ou a qual filme ele poderia ser comparado e o porquê. Mas confesso que não sei se seria por aí. O fato é que gostaria que o senhor falasse sobre essa figura pitoresca e nefasta que, por mais medíocre que seja, está no cargo mais alto da República. Então, você que é um documentarista, primordialmente, e por esse motivo já estudou tanto o Brasil, como é impressionante que o país tenha feito isso democraticamente, que tenha chegado a esse lugar.

– “Cara”, eu acho que essa tua pergunta é irrespondível. Não dá para entender como esse “cara” teve 57 milhões de votos. Não dá para entender. Eu acho que ele é essa figura patética, burlesca, essa paródia. Talvez ele pudesse ser comparado, mas não resiste dois minutos, ao Grande Ditador do Chaplin, aquela figura caricata. Não sei. Eu comparo muito o [Paulo] Guedes ao Dr. Fantástico do Stanley Kubrick, aquele “cara” que viaja sentado numa bomba atômica, que quer fazer aquela coisa ciclotímica. E comparo também aquele general que ameaçou o Supremo e manteve o Lula preso [General Villas Boas] a essa mesma figura do Kubrick. São duas figuras nefastas e necrófilas na vida brasileira. O genocida, ele é uma figura abjeta. Ele se elegeu pela desarticulação das forças democráticas.

A gente se atrapalhou no meio do campo, ficou todo mundo chutando “fogo amigo” e ele conseguiu ocupar esse espaço. Ele foi eleito presidente da República sem participar de um debate. Vou te falar com toda franqueza, eu tenho muitas dúvidas daquela facada de Juiz de Fora. Eu não entendo como as esquerdas não pediram uma comissão internacional para apurar os acontecimentos. A quantidade de pessoas que morreu em torno daquele evento, o [Gustavo] Bebianno que era o “carro-chefe” dele teve infarto e morreu, a dona da pensão em que o Adélio esteve também morreu, o Adélio está lá num depósito de mortos-vivos, isolado da sociedade, ninguém ouviu o Adélio. Uma coisa fechada. Eu acho que eles devem essa informação à opinião pública. E acho que nós fomos incompetentes no trato da questão. Nós considerávamos tão fácil a derrota dele no 2ºturno para qualquer outro candidato que não consideramos isso. E o resultado está aí, o país purgando esse equívoco. Agora, o que me chama a atenção disso tudo é a votação que ele teve que foi surpreendente.

– Temos um novo embate com essa figura em 2022 e temos a volta do Lula, como o senhor está vendo o cenário político?

– Eu já votei no Lula em todas as eleições daqui para trás e, muito possivelmente, vou votar nele daqui para frente. Agora, eu diria a meus amigos do PT para “tirar o salto alto”. Eu acho que tem correntes dentro do PT que estão acreditando nessa eleição como uma coisa tranquila, e eu acho que eu já aprendi em eleições anteriores. Sempre convivi muito em torno de eleições e já ouvi de um deputado que não foi reeleito, quando disseram para ele “você está eleito”, ele falou “pelo amor de deus, não diz isso. Eleito é voto na urna”. Então, eu diria a meus amigos do PT para tomarem muito cuidado com esse certo triunfalismo que circula nas redes petistas, eu também circulo entre essas redes, e que considera a eleição do Lula, tranquila. Vou chamar atenção para uma eleição em que eu estive muito perto, em 1994. Nesse ano, o Lula partiu com 44% de intenções de voto, mas com duas medidas o Lula chegou no fim do 1º turno com 22% e o FHC eleito no 1º turno. E foram duas coisas que ninguém atentou. Uma, foi que o Lula passou um bom tempo rodando esse país nas Caravanas da Cidadania para juntar material para campanha e quebrar o mito de que o Lula não estava qualificado para ser presidente da República. Ele viajou acompanhado de grandes intelectuais, lideranças políticas, sociais, sindicais, artistas. Todo mundo entrou no ônibus do Lula e ele foi criando material para campanha, mas passaram no Congresso uma lei que proibia usar material externo na campanha eleitoral. E assim quebraram a perna da campanha do Lula. Todo o material que ele recolheu perdeu a validade. Então, essa foi a primeira coisa que quebrou.

E a segunda foi o Plano Real. FHC era o ministro de Relações Exteriores do Itamar, o chamaram, disseram que ele deveria assumir as finanças e inventaram o Plano Real da noite para o dia e o PT não entendeu a importância do Plano Real. Aí desmantelou a campanha do Lula. Eu estava lá e vi de 44%, o Lula cair para 22%. Bom amigo é quem fala a verdade.

 

– Quer dizer, o campo democrático e progressista precisa se preparar para muita luta.

-Acho que o Lula tem essa maturidade hoje e essa consciência de que sozinho ele não ganha essa eleição. Ele, hoje, tem essa consciência de que ele precisa unir forças num projeto comum de nação. Acho que nós estamos precisando disso, o Brasil pede isso. O Brasil pede essa humildade, seja quem for. E a unidade contra o fascismo. Porque, na verdade, puxando pela História, na Alemanha que virou nazista, os comunistas e os socialistas resolveram brigar entre eles e o Hitler ganhou as eleições. Isso aconteceu um pouco conosco aqui em 2018 e não pode se repetir em 2022 porque aí vai ser uma viagem sem retorno. Acho que a gente está conseguindo, apesar dos pesares, apesar dos 560 mil mortos – isso é uma guerra civil, 560 mil mortos é mais do que uma guerra do Vietnã, e acontece pelo projeto de governo de deixar o país explodir. O que está acontecendo no Brasil, 15 milhões de desempregados, nós não temos uma estatística de quantas pessoas morreram de inanição nesse período, os desabrigados. Você tem hoje um governo genocida. E esse governo genocida tem uma estratégia do mal, uma força de resistência que a gente não pode vacilar e acreditar que eles chegaram batendo no teto. Acho que não. Acho que a gente tem que brigar para tirar esses caras do poder.

E aí vai ser um trabalho muito grande nosso para desmontar as milícias, desalojar do poder esses tantos militares que estão juntando os “caraminguás” no governo, mas pior do que isso, controlando o país, mapeando o país. Eles são do mal. Temos que tomar cuidado com isso tudo. E vamos ter que remontar uma política cultural, de emprego, de desenvolvimento industrial que represente um revigoramento do país.