Pouco antes da revolução cubana, Arthur M. Schlesinger, Jr., historiador, ganhador do Prêmio Pulitzer, foi encarregado pelo presidente Kennedy de fazer uma análise da situação na ilha.

Disse ele sobre Havana: “Me horrorizou a maneira como essa adorável cidade tinha se transformado desgraçadamente em um grande cassino e prostíbulo para os homens de negócios norte-americanos. Meus compatriotas caminhavam pelas ruas, se deitavam com garotas cubanas de 14 anos e jogavam fora moedas só pelo prazer de ver os homens chafurdando na sarjeta para recolhê-las”.

A conclusão da análise dizia simplesmente o seguinte: “A corrupção do governo, a brutalidade da polícia, a indiferença em relação às demandas da população por educação, saúde, habitação e por justiça social e econômica constituem-se num convite aberto à revolução”.

Obviamente, Schlesinger estava corretíssimo. Totalmente equivocados estavam os que descreviam a Cuba de Batista como um paraíso na Terra, como faz até hoje a propaganda anticastrista.

Schlesinger não estava só. O próprio presidente John F. Kennedy, que foi crítico a Batista em seu final, declarou, em tom de autocrítica: “Penso que não existe um país no mundo, incluindo os países sob domínio colonial, onde a colonização econômica, a humilhação e a exploração foram piores que as que aconteceram em Cuba, devido à política do meu país, durante o regime de Batista”.

No campo político, Fulgencio foi um ditador sanguinário. Quem diz isso não foram os comunistas ou os “bolivarianos”. Foi John Kennedy que afirmou que: “Nosso fracasso mais desastroso foi a decisão de dar status e apoio a uma das mais sangrentas e repressivas ditaduras na longa história da repressão latino-americana. Fulgencio Batista assassinou 20 mil cubanos em sete anos – uma proporção maior da população cubana que a proporção de norte-americanos que morreram nas duas guerras mundiais – e transformou Cuba em um Estado policial total”.

Assim, a Revolução Cubana não aconteceu por acaso. Foi reação popular a uma cruel ditadura apoiada pelos EUA, tanto o governo quanto grupos econômicos da máfia norte-americana. A autocrítica de Kennedy veio muito tarde.

A autocrítica também falta agora na administração Biden, que, emulando o pior de Trump, resolveu apertar o bloqueio de seis décadas, com a esperança de utilizar os atuais protestos para impor mudança de regime em Cuba.

Trata-se de embargo contraproducente, ilegal e cruel, que tem impacto negativo direto na alimentação, na educação e na saúde do povo cubano, uma vez que impede ou dificulta a chegada de alimentos, equipamentos escolares e medicamentos à Cuba.

Conforme a Cepal, o vergonhoso embargo imposto unilateralmente pelos EUA a Cuba já causou um prejuízo financeiro de ao menos US$ 130 bilhões, em suas seis décadas de existência. Para uma economia pequena como a de Cuba, é um prejuízo gigantesco, que impede o desenvolvimento e a diversificação produtiva da ilha caribenha.

Ademais, esse bloqueio anacrônico, concebido no auge da Guerra Fria, contraria frontalmente a Carta das Nações Unidas e as regras do direito internacional público, pois impõe sanções extraterritoriais a empresas e países que desejem comerciar ou investir livremente em Cuba.

O bloqueio não é apenas contra Cuba; é também contra a comunidade internacional.

Por isso, desde 1992, a Assembleia-Geral das Nações Unidas aprovou, por imensa maioria, 29 Resoluções que condenam, de forma clara e veemente, o embargo ilegal e cruel imposto à Cuba e ao mundo pelo EUA. Somente os EUA, Israel e, mais recentemente, o Brasil de Bolsonaro, se recusam a condenar o bloqueio ilegal.

A flagrante ilegalidade do bloqueio tornou-se criminosa com as adicionais 243 regras comerciais restritivas e draconianas impostas pelo governo Trump à Cuba em plena pandemia, as quais têm impedido esse país de receber imprescindíveis equipamentos de saúde, como respiradores, vacinas e outros insumos, vitais para salvar vidas de cidadãos cubanos. Foi isso que estimulou a atual onda de protestos.

É inadmissível e incompreensível que, já entrando na terceira década do século 21, os EUA continuem a reger sua política externa em relação à Cuba e à América Latina com base em diretrizes anacrônicas herdadas da Guerra Fria. É vergonhoso que essa vertente da política externa dos EUA continue a refletir os interesses minoritários e reacionários da comunidade anticastrista da Flórida, e não os autênticos anseios dos povos latino-americanos.

Esperava-se bem mais da política externa do presidente Joe Biden, a qual pretendia, em tese, colocar ênfase em negociações, formação de alianças e no fortalecimento do multilateralismo. Em relação à Cuba, esperava-se, no mínimo, que Biden continuasse a política, iniciada por Obama, de revisão do bloqueio ilegal, que sacrifica a população cubana.

Os óbvios problemas econômicos e políticos de Cuba não serão resolvidos com mais embargo e intervenções típicas da “guerra híbrida”.  O bloqueio e as sanções, que não funcionaram, para os objetivos pretendidos, durante seis décadas, continuarão a ter efeito contraproducente.

O cinismo do Império é, neste caso, evidente. Os EUA não estão preocupados com democracia e direitos humanos. Preocupam-se apenas em assegurar que o “quintal” esteja geoestrategicamente alinhado aos seus interesses.

No altar desses interesses, foram historicamente sacrificados direitos humanos, democracias, desenvolvimento, sonhos, esperanças. Nas veias abertas da América Latina, circularam impunemente ditadores e torturadores impostos pelos EUA, como Fulgencio Batista.

Desde que os interesses de Washington estejam assegurados, na sua luta geopolítica contra China e Rússia, vale tudo.

Vale até transformar um país inteiro em cassino e prostíbulo.