Outro feito de Guedes: inflação com recessão
Se alguém, no afã de denunciar a alta de preços usando um colar improvisado, como fez em 2013 uma conhecida apresentadora de TV, fizesse isso hoje, teria dificuldades em reunir todos os vilões da inflação em torno de um só pescoço. E não adianta, como insistem alguns, responsabilizar a pandemia por todos os males. A carestia dos alimentos, resultado do abandono da política de segurança alimentar, acentuada pela queda do poder de compra dos salários — duas realizações dos governos do pós-golpe de 2016 — é anterior à chegada da Covid-19. É desta época, do biênio 2017/2018, a volta do país ao Mapa da Fome da ONU.
Os atuais patamares da fome são o resultado da convergência entre a desestruturação da legislação trabalhista ao longo de 2017 a 2019, combinada com a agenda neoliberal que garantiu estagnação econômica, desmonte das políticas públicas, choque da pandemia e má gestão da crise sanitária pelo governo.
Desde a gestão Temer, o poder de compra dos salários caiu e nunca mais reagiu. Ao contrário, a luta pela sobrevivência que caracteriza os tempos atuais fez trabalhadores informais do setor de serviços diminuírem seus ganhos, enquanto medidas “de proteção” ao emprego adotadas pelo governo Bolsonaro disseminou o corte salarial nas empresas.
A fome é o aspecto mais sombrio do período. A mão invisível do mercado tem feito a sua parte na disparada dos preços. Sem estoques reguladores do governo, e sem uma intervenção que garanta a venda de alimentos preferencialmente para o público interno, como fizeram Índia, Vietnã, China e outros 11 países, o preço da comida fica ao sabor da variação internacional, com cotação em dólar.
“Essa inflação está ligada à posição brasileira no cenário internacional, com uma economia dependente e com uma moeda fraca”, explica a economista Juliane Furno, professora do curso Economia para Transformação Social, da Fundação Perseu Abramo. Isso se deve, segundo Furno, a problemas no balanço de pagamentos. O Brasil é um país que importa mais que exporta, o que o coloca vulnerável às oscilações do dólar. E o agronegócio, por seu perfil financeirizado, calcula o preço de seus produtos com base na cotação internacional – muitas vezes até preferindo exportar a vender para a população brasileira.
Não precisava ser assim, diz a economista. Ela cita como exemplo o arroz produzido pelo MST. “Eles calculam o custo de produção e inserem uma margem para vender. O preço fica abaixo do mercado”, explica a economista. “Por isso, uma política de fomento à reforma agrária e à agricultura familiar não deixaria o Brasil refém dessa oscilação internacional”.
Quem abastece a cozinha sente o problema, mas nem sempre as razões são explicitadas pela mídia comercial. A responsabilidade é quase integralmente imputada ao preço dos combustíveis – outro ponto fraco da gestão Bolsonaro, que submeteu a Petrobrás ao mesmo atrelamento cambial que encarece a comida. Câmbio, por sinal, que é muito desvantajoso para o real, neste momento, devido à fuga de capitais, que rumam para os títulos da dívida estadunidense, muito mais seguros.
Na hora das compras, o consumidor que ainda pode vai fazendo as contas do estrago da política econômica e social forjada pelo governo. O IPCA (Índice de Preços ao Consumidor Ampliado), acumulado em 12 meses, chegou a 8,35% em junho, mas a Inflação de alimentos bateu 15,3%. Dentre os quais se destacam produtos como arroz (48%), feijão (22%), carne (38%), leite (11%), gás de cozinha (24%) e óleo de soja (86,87%).
Etanol e gasolina, no mesmo período, subiram 65,24% e 45,80%, respectivamente. O risco de esse aumento ir parar nas tarifas de transporte público não está descartada. Outro aumento significativo, e que produz duro sofrimento, é o da energia elétrica, cuja bandeira 2 bateu em 52% em julho. Somada ao pesadelo dos aluguéis, a alta taxa de energia tem potencial para aumentar a população em situação de rua, outro sinal que marcará este período.
O Brasil vive uma estranha combinação de recessão e subida de preços. A destruição do mercado de trabalho é grave. Em janeiro de 2020, um mês antes do primeiro caso de Covid-19, o desemprego no Brasil atingiu 11,9 milhões de pessoas (11,2%), e o total de pessoas fora da força de trabalho chegou a quase 66 milhões – um recorde desde 2012, quando teve início a PNAD Contínua/IBGE, como resultado das políticas de desmonte do mercado de trabalho de Temer e Bolsonaro. A pandemia e a falta de gestão da crise por Bolsonaro acirraram a crise no mercado de trabalho.
Hoje o Brasil tem 14,8 milhões de desempregados, 6 milhões que desistiram de procurar emprego, 34,2 milhões de brasileiros na informalidade e 33,3 milhões de trabalhadores subutilizados.
A fome é resultado dessa combinação. Não é, como sugerem monetaristas iguais ao ministro da Economia, Paulo Guedes, um problema de excesso de demanda. “Ele chegou a dizer que o auxílio emergencial teria feito as pessoas a comprar mais comida”, ressalta Juliane Furno.
Diagnóstico falso, política ruim. A suposta culpa do auxílio emergencial não se sustenta. O que poderia ser um instrumento de forte ajuda, foi esvaziado. Os dados de 2020 variaram muito ao longo do ano. Ao longo de cinco meses do ano houve cobertura do auxílio emergencial de R$ 600 para um universo de mais de 60 milhões de pessoas. E os últimos três meses com auxílio de R$ 300. Nos primeiros quatro meses de 2021, os pobres ficaram sem cobertura alguma de seguro de renda, o que intensificou a crise e a fome.
O novo auxílio emergencial que está em vigor desde abril, varia de R$ 150 a R$ 375. É pouco. A cesta básica na grande maioria das cidades está em torno de R$ 600 — São Paulo, por exemplo é de R$ 626, segundo o Dieese. O auxílio está beneficiando 39 milhões de pessoas. Isso significa que 29 milhões foram excluídos, se considerarmos os 68,2 milhões beneficiados na primeira edição.
O programa Bolsa Família, por sua vez, acumula filas. Hoje 1,5 milhão de pessoas esperam ingresso. E a fila de espera só não é maior porque o Cadastro Único está praticamente parado, com o auxílio emergencial que passou a cadastrar as famílias pelo aplicativo. O CadUnico, tão elogiado no mundo, está agonizando, desatualizado há mais de um ano.
Se o Bolsa Família, vigente no governo Dilma no período de menor taxa de desemprego da história, fosse atualizado para garantir o mesmo poder de compra hoje, ele valeria R$ 300. Ou seja, se os valores do “novo Bolsa Família”, como anunciado pela oitava vez pelo governo federal, ficarem em média em R$ 300, o “novo” nada mais seria que a sua atualização monetária e manutenção do mesmo patamar do poder de compra vigente no governo Dilma. A mudança de nome seria exclusivamente política.
Já a fome não tem nome que possa amenizar seu significado e impacto. Segundo dados da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan), em dezembro de 2020, quando ainda vigorava o auxílio emergencial de R$ 300, 19 milhões de brasileiros estavam em situação de fome, insegurança alimentar grave, quando até as crianças não comem o suficiente no domicílio — 9% dos brasileiros.
E outros 24 milhões de brasileiros não comiam o suficiente — os adultos no domicílio passavam alguma situação de fome. Pela pesquisa, somados estes dois dados, podemos afirmar que 43 milhões de brasileiros experimentavam alguma situação de fome. É o equivalente à população da Argentina.
Já a pesquisa Datafolha de maio deste ano apontou que um em cada quatro brasileiros (25%) teve menos comida do que o suficiente em casa. O que equivale a 53 milhões de pessoas. Esta situação tende a ser igual ou pior hoje.