O movimento negro brasileiro tem pressa para reverter os retrocessos nas políticas públicas, retomar a construção de uma sociedade que respeite os direitos dos cidadãos e, principalmente, derrotar o racismo enraizado no Brasil. As metas são apontadas pelo historiador e professor Douglas Belchior, fundador da União de Núcleos de Educação Popular para Negras/os e Classe Trabalhadora  (Uneafro) e pela advogada premiada pela ONU e ativista Sheila de Carvalho. Os dois são membros e articuladores da Coalizão Negra por Direitos, que reúne 250 organizações de todo o Brasil.

Derrotar Jair Bolsonaro é fundamental, mas outras batalhas se impõem ao movimento negro. Eleger uma bancada negra — “um quilombo no Congresso Nacional” — é uma tarefa fundamental porque o país nunca teve essa bancada negra. Para cumprir esse objetivo, uma das preocupações da Coalizão Negra por Direitos é com a reforma eleitoral. Por isso, assim que o recesso terminar, vão à Brasília se posicionar contra a proposta do “distritão”.

Acompanhar a agenda do Congresso e criar canais de influência com parlamentares é uma das funções da Coalizão, que tem projeto para o país. As propostas estão na internet e serão apresentadas a as candidaturas do campo progressista. “O movimento negro não vai mais aceitar ser invisibilizado”.

Os dois líderes do movimento negro consideram Luiz Inácio Lula da Silva o melhor nome para enfrentar Bolsonaro. Douglas Belchior, que encontrou o ex-presidente recentemente, afirma que o país deve a Lula o direito de se candidatar porque Bolsonaro só chegou ao poder graças a prisão e interdição política do líder petista. A seguir, trechos da entrevista à Focus Brasil:

 

O protofascismo está perdendo força e engajamento ou a raiz desse problema é estrutural e vai muito além do Bolsonaro e do bolsonarismo?

Douglas Belchior — Os valores conservadores da sociedade brasileira são anteriores o Bolsonaro. Ele é a sua expressão política, conseguiu personificar os horrores dos piores valores brasileiros. A gente vive um momento de um encontro cruel, historicamente perverso. De um lado, um Estado que tem uma natureza genocida e uma natureza fascista. É preciso lembrar isso. O Estado brasileiro é um monstro contra o povo. Sempre foi. Você não tem histórico de Estado a favor das demandas da população brasileira. O que a gente tem historicamente é o exercício do povo organizado, de parcelas da população oprimida se organizando para incidir junto ao Estado pela garantia de direitos de humanidade, sociabilidade, políticos, econômicos, culturais etc. Mas o Estado sempre foi um instrumento a serviço dos interesses das elites, do status quo.

Aliás, tem uma “frasezinha” no Manifesto Comunista que talvez encontre no Brasil de hoje a sua principal concretização na vida real: “O Estado não passa de um escritório dos interesses da burguesia”. Assim mesmo, com essas palavras. Talvez o que nós estamos vivendo hoje seja esse significado elevado à enésima potência. Então, o Estado tem essa natureza, um instrumento voltado para a repressão da maioria, em prol dos interesses de uma minoria. Um Estado que sempre colocou como alvo dos seus braços armados a maioria do povo brasileiro e sempre colocou sua estrutura a serviço dos interesses econômicos das elites históricas. No início do século 20, daqueles herdeiros diretos dos escravocratas. E no desenvolvimento do século e até os nossos dias, dos novos ricos e dos interesses diversos das elites e dos interesses internacionais.

Do outro lado [do encontro perverso], você tem uma figura que representa esse pensamento mais conservador. Ou seja, é um encontro de um Estado de natureza genocida com um presidente que defende o genocídio, que é explicitamente racista, fascista, defensor de valores autoritários. Esse encontro, nessa proporção, não tínhamos vivido ainda. Isso é o inédito da “parada”. O cara foi eleito com um discurso fascista, exaltando torturador, foi eleito para ressignificar valores da ditadura militar. E foi eleito defendendo tudo aquilo a que o Estado Democrático Direito se contrapõe. O encontro dessa figura política com o Estado que tem natureza genocida, dá no que deu. Em meio a uma pandemia, você tem o Estado operando contra a sua prerrogativa fundamental num momento como esse que é defender a vida dos cidadãos. Ele opera contra a vida dos seus cidadãos. Então, o nosso desafio é muito maior.

Eu me lembro que na semana seguinte à eleição de 2018, após o primeiro turno, juntamos os cacos e chamamos um ato com o objetivo de mobilizar a base social do movimento negro aqui em São Paulo para a campanha do Fernando Haddad no segundo turno. Reunimos, eu, Érica Malunguinho, Andréia de Jesus (eleita em Minas Gerais) e Leci Brandão. Lotamos o Teatro Oficina e o tema era: “No país da escravidão, de que fascismo falamos?”. Um país que é resultado de 400 anos de escravidão, assentado no racismo enquanto sistema de dominação. O que é o fascismo no Brasil senão a prática cotidiana e sistemática do racismo? O “buraco é muito mais embaixo”. Derrotar o Bolsonaro não significa derrotar o que ele significa ideologicamente. O que nós chamamos de bolsonarismo hoje, são valores da cultura brasileira. [Valores] Contra os quais o Partido dos Trabalhadores, por exemplo, sempre lutou. E sempre teve esses valores como adversários. O que derrotou o Lula nas três eleições que ele perdeu foram esses valores que sustentam o Bolsonaro. Não há dúvida. Ele [Lula] representa ideias antagônicas a esses valores que sempre foram majoritários. E, mesmo nos anos de governo Lula, embora tenhamos tido experiências de políticas diferentes, ele teve esses valores como opositor. Isso reapareceu na “mamadeira de piroca”.

 

Sheila de Carvalho – Douglas contextualiza bem o que estamos falando. Falamos de um projeto de Brasil que nasceu com a finalidade de dar errado para boa parte da população e é esse projeto que o Bolsonaro e as elites que o defendem e dele necessitam para fazer vingar o seu projeto de massacre da população negra e vulnerável, projeto que tem percorrido o Brasil desde a sua essência. Ainda que o Bolsonaro não seja parte dessa elite, a elite que sempre ditou as regras no Brasil depende do bolsonarismo. A derrota que tivemos em 2018 não foi apenas eleitoral, foi a derrota de um projeto de disputa de mundo, aquele projeto de país e sociedade que foi sonhado e formulado a partir do período de redemocratização. A derrota de 2018 representa a derrota de tudo aquilo que foi construído numa sistemática de reconhecer e ampliar direitos para todas e todos os brasileiros.

E só tentando racializar a partir da perspectiva do Douglas, o Bolsonaro nunca escondeu os seus ânimos genocidas. Ele nunca fez um discurso desalinhado disso. Durante boa parte da campanha, o discurso do “bandido bom é bandido morto” apareceu de forma recorrente e é um discurso que a nossa sociedade significa. Então, a eleição do Bolsonaro foi uma democratização da barbárie, de certa forma. Foi a gente ver que a barbárie, sim, tem espaço e ecoa no Brasil. E quando ele vira presidente não deixa de ser diferente, especialmente o que nós, enquanto movimento negro, denunciamos sempre que é a questão do genocídio negro no Brasil. Bolsonaro se tornou um instrumento efetivo para que esse genocídio fosse fortalecido durante esses anos que estamos vivendo sob o bolsonarismo. Acho que vale muito relembrar o que foi o “pacote anticrime” do Sergio Moro, discutido no Congresso, aprovado, mas conseguimos algumas vitórias importantes a partir da resistência do Movimento Negro, de deputados federais do campo progressista que era não deixar a licença para matar que o Bolsonaro queria impor. Se a gente vive hoje um cenário de violência sistêmica e racista dentro das nossas comunidades, eles queriam agravar isso ainda mais através de instrumentos legais e liberar de vez o genocídio.

Foi muito importante essa resistência contra o “pacote anticrime” do Moro, mas eu sempre lembro uma fala que o Bolsonaro fez na época da discussão do projeto. Ele foi indagado sobre os índices de violência policial porque havia saído uma pesquisa mostrando o aumento acentuado de pessoas mortas pela polícia. O Bolsonaro disse “é assim que tem que ser. Temos que amassar eles igual baratas”. Então, ele nos enxerga enquanto insetos a serem pisados, não é nem como seres humanos, quanto mais reconhecer a necessidade de se estender a cidadania para todas e todos. Ele faz um processo de cidadania seletiva a serviço de uma elite que sempre quis apartar a parte maior da sociedade.

 

Qual é a pauta da Coalizão?

Douglas Belchior – A Coalizão é uma aliança nacional de movimentos negros. Não representa o todo do Movimento Negro, mas conforma hoje a principal articulação, reúne as mais tradicionais organizações de movimento negro do país, tais como o Movimento Negro Unificado, as Associações Pastorais de Negros, a Conaqui que é a maior confederação de quilombolas do Brasil, organizações de mulheres negras importantes, como é o caso de Geledés, de Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades, Criola (Rio de Janeiro), Fórum de Mulheres Negras de Pernambuco, do DF, de SP. A Coalizão se relaciona com articulações internacionais também no campo do movimento na América Latina, na África, especialmente, e nos EUA, com o Black Lives Matter.

Surgiu com a demanda de fazer advocacy, de fazer incidência política no Congresso, acompanhar a agenda que toca sobretudo nos direitos da população negra brasileira. Também no Judiciário e nos fóruns internacionais, como OEA e ONU, onde a Coalizão tem atuação sistemática e permanente há mais de dois anos.

 

Sheila de Carvalho – A gente tem uma agenda muito ampla. A sociedade brasileira tende a condicionar a luta antirracista, a luta do movimento negro, como algo relacionado só a uma agenda de equidade ou de representatividade. Só que estamos falando de uma agenda sistêmica. Temos propostas da Coalizão Negra por Direitos no âmbito da economia, educação, saúde pública… Bossa agenda transita por várias áreas. Nosso lema de 2021, por exemplo, é “nem de Covid, nem de fome, nem de bala”. Nossas agendas são os impactos da Covid em relação à população negra que foi algo que a Coalizão apontou desde o começo da pandemia e que se comprova até hoje no racismo existente no processo de vacinação. Quando começam a ser aplicadas as vacinas no Brasil a população negra foi preterida, chegamos a um índice de que para cada duas pessoas brancas, uma negra era vacinada no Brasil. Escancara o racismo no sistema de saúde pública.

A fome, que infelizmente virou novamente agenda central, fez com que a Coalizão Negra por Direitos tivesse que se mobilizar buscando políticas públicas para o enfrentamento, considerando os impactos econômicos. Então, teve nossa luta pelo auxílio emergencial e depois pela sua manutenção. Fizemos uma ação em todos os estados por projetos de renda básica universal, nos termos estabelecidos pelo ex-senador Eduardo Suplicy. E, por fim, a agenda da violência. Mesmo durante a pandemia, os índices de violência policial contra pessoas negras continuam crescendo de forma assustadora.

E tem o nosso papel na resistência pela democracia. Lançamos um manifesto em 2020 que continua reverberando até agora: “Enquanto houver racismo, não haverá democracia”. Para gente lutar por esse Estado Democrático de Direito, também precisaremos enfrentar o racismo. 

 

Como vocês enxergam essa relação entre mídia e racismo no Brasil?

Douglas Belchior — Temos uma sociedade negacionista da história, do que foi a escravidão no Brasil, do impacto e da gravidade do crime de lesa humanidade que significa o racismo. E é a sociedade. Eu estou incluindo aqui o campo da esquerda, partidos, sindicatos… Todo mundo é. E a imprensa e os meios de comunicação de massa foram e continuam sendo fundamentais para a popularização de conceitos, para a massificação do ideário racista como um sistema de dominação. O racismo é sistema de dominação. Está na moda falar que o Brasil é estruturalmente racista, muita gente fala isso e existe uma armadilha nesse conceito porque eu posso ficar colocando a culpa do meu racismo na estrutura: “Ah, realmente, falei uma merda. Mas é porque o racismo estrutural, né, gente? Eu fui educado assim, é foda ser contra a minha própria natureza”. Nosso país foi construído a partir do racismo, a partir da lógica da dinâmica social cravada na diferença racial.

Se você olha para o topo da pirâmide social brasileira, é igualzinho ao que era em 1888. Não mudou. Quem é dono de patrimônio no Brasil, de herança, de riqueza, quem tem poder político, os donos dos meios de produção, dos meios de comunicação são os brancos. Isso é explícito, esfregam na nossa cara todos os dias, mas a gente nega. Só é possível entrar num lugar, como é Jacarezinho, e matar 30 porque aquele lugar é repleto de gente preta. É impossível imaginar uma ação como aquela num bairro de classe média, num bairro misturado que tenha algumas pessoas brancas. Não existe. O que é a figura do Datena acompanhando abordagem policial o dia inteiro, repetindo frases preconceituosas, conceitos racistas, formando a opinião de milhares de pessoas todos os dias?

A Rede Globo mudou agora o seu editorial em relação a isso, e você perguntou do avanço e vou falar sobre isso. Se você imaginar que há 15 anos, quando o Brasil discutia cota racial, a Rede Globo e a Folha de S.Paulo eram contra cotas e se posicionaram como parte da sociedade contra as cotas para negros em universidades. O Ali Kamel, que ainda hoje é o chefe do jornalismo da Globo, se deu ao trabalho de escrever um livro para que pudesse incidir no debate de cotas e o livro se chamava “Não somos racistas”. Era o posicionamento da poderosa Rede Globo de Televisão. Grande parte da intelectualidade se colocou contra a política de cotas. Então estamos falando de setores que trabalharam politicamente para evitar o avanço de políticas a favor das pessoas negras no Brasil. O nome disso é racismo.

Hoje, quando uma liderança política da esquerda sobe num caminhão de som e diz que as manifestações contra Bolsonaro começaram no dia 29 de maio de 2021, ele está sendo racista. Porque ele está ignorando, invisibilizando, apagando e desconsiderando a experiência de luta do movimento negro que não abandonou a rua nenhum dia durante a pandemia para denunciar o Bolsonaro, para denunciar a violência da polícia, para lutar pelo auxílio emergencial. Em 13 de maio, a gente abriu as portas para as manifestações contra o Bolsonaro, porque a esquerda estava debatendo se devia ir para a rua ou não. A CUT era contra. A UNE era a favor. O PT era contra. O PSOL era a favor. A Frente Brasil Popular era contra. A Frente Povo Sem Medo era a favor. Tinha um impasse e o que desfez esse impasse foi a Coalizão Negra ocupar as ruas no 13 de maio contra o Bolsonaro e aí o 29 de maio foi possível. Só que quando você pega os artigos escritos por nós, da esquerda, nenhum reconhece isso. Falam que as mobilizações começaram no dia 29. É racismo, entendeu?

A Coalizão vem para colocar o movimento negro como ator político no processo nacional, como uma articulação de movimentos que tem programa político, tem projeto político, tem proposta política de país e que não vai aceitar ser invisibilizada. Os partidos, os sindicatos, a classe artística, os intelectuais têm que vir beber dessa fonte porque são os grupos que fazem isso a partir dos pretos que são maioria do povo brasileiro, os que mais sofrem, os que ocupam as favelas e as periferias e a gente tem elaboração política formulada historicamente. Por que essa formulação não tem peso? Por que essa formulação não tem importância? Porque é invisibilizada? Por que as experiências de luta política do povo negro no Brasil, historicamente, não têm importância? A Coalizão vem para dizer isso, não vamos aceitar mais. 

Eu sou formado na esquerda, mas eu nunca tive nos espaços de formação da esquerda momentos de estudo da elaboração do movimento negro. Não tem. Assim como não tem na escola, não tem na universidade. Agora, nos últimos poucos anos tem alguma coisa acontecendo, mas eu fui formado por uma esquerda que ignorava essa história. Então, a gente vem para ocupar esse lugar. Agora, o movimento “Fora, Bolsonaro” chama o Bolsonaro de genocida. Caramba. Precisou que o Bolsonaro matasse todo mundo com a sua política de governo, inclusive os brancos, para que a esquerda chamasse de genocídio o que o Estado faz? O movimento indígena reivindica genocídio historicamente, o movimento negro grita isso há mais de 50 anos. O nosso pedido de impeachment, de julho de 2020, tem como fundamento a denúncia de genocídio do governo Bolsonaro. E a esquerda passou a chamar de genocídio só agora, esse ano. Então, não admite o atraso na percepção da realidade brasileira. A Coalizão vem para dizer que o movimento negro não precisa mais de intermediários.

 

Sheila de Carvalho – Vou falar a partir do comparativo com os EUA. Primeiro, não há como comparar. Estamos falando de processos diferentes, em outras circunstâncias. Seria ingênuo colocar como se fosse tudo a mesma coisa mesmo que nossa agenda seja comum. Tanto o movimento negro aqui quanto nos EUA está resistindo contra um processo global de genocídio do povo negro. Quando a gente compara as populações negras no Brasil e nos EUA, no Brasil estamos falando de uma população de 56% do país. Ou seja, a grande maioria. Nos EUA é 13%. É uma minoria que passou por um processo de segregacionismo explícito e que foi apartada e excluída dos espaços institucionais, dos espaços de deliberação, escolas e hospitais. Algo que a gente vivenciou também aqui no Brasil, mas por não existir a formalidade da segregação há o negacionismo de que a segregação existiu. Então, quando a gente vê do período escravagista até o período da redemocratização, são 100 anos de segregação da cidadania à população negra, mas ninguém falava sobre isso abertamente senão o movimento negro. Então, o movimento negro era invisibilizado, era silenciado, inclusive, das agendas da esquerda.

Eu acho que hoje não há nada mais perverso que a esquerda faz do que condicionar a luta negra enquanto uma pauta identitária num país como o Brasil. A gente não pode tratar a luta negra enquanto uma agenda paralela. Estamos falando de uma agenda de estrutura de Estado, estamos falando da maior parte da população. Não é uma agenda de identidade, é uma agenda que vai ditar qual é a sociedade que a gente vai criar a partir de agora. É a população para a qual se está criando políticas públicas, é a população para a qual se está desenvolvendo esse Estado. É muito ruim quando a esquerda tenta condicionar isso a uma caixinha, deixar isso apartado ou fingir que certas coisas não estão acontecendo. Acho que o Douglas colocou muito bem a questão midiática, mas quando o movimento negro teve espaço na mídia no Brasil, isso é uma construção recente. É algo de dois ou três anos. Quando a gente olha para os EUA, eles já tiveram um presidente preto. Aqui a gente sofre desesperadamente para eleger um parlamentar num país que tem uma presença de pessoas negras muito maior, muito mais massiva. Se esquecem do impacto que as pessoas negras têm no processo eleitoral.

Há uma militante negra que foi determinante para o resultado das eleições e muitas vezes o próprio [Joe] Biden e a Kamala Barris colocam que se não fosse a mobilização dela o [Donald] Trump teria ganhado as eleições. A Stacey Abrams é uma militante negra do estado da Georgia que foi o estado determinante na eleição. Ela cadastrou 800 mil pessoas negras para votar. Foi fundamental para a vitória do Partido Democrata. É isso o que estamos fazendo aqui. Existem esses militantes aqui no Brasil também. Existem essas pessoas capazes de mobilizar as grandes massas para a gente derrotar o bolsonarismo, mas a esquerda precisa se abrir um pouco mais para isso também.

 

Como vocês estão vendo o cenário político para as eleições de 2022?

Douglas Belchior — O desafio de derrotar o Bolsonaro é imenso. Não acredito que vá ser uma parada fácil, não acredito que o desgaste que o Bolsonaro tem vivido vai fazer dele um candidato frágil. Temos que trabalhar com a hipótese de enfrentar uma candidatura muito forte do Bolsonaro. Hoje, no pior momento dele, ele continua tendo apoio de 20% a 30% dos eleitores. Como eu não acredito que ele continuará desgastado nesse nível até o ano que vem, estamos a um ano do início da eleição, a tendência é que ele recupere um pouco as forças. Então, vamos enfrentar um Bolsonaro forte e com base social mobilizada, com participação de setores da sociedade truculentos, violentos. Estou falando da polícia, que tem uma articulação para a manutenção da sua organização através de candidaturas militares. E milícias e forças paramilitares. E setores religiosos conservadores que, eventualmente, a gente pode ter alguma mobilização, mas não vamos conseguir arrastar 100% dos que defendem a agenda do Bolsonaro. Então, precisamos construir força política e social para derrotá-lo. Devemos investir na força política que hoje se apresenta como viável no enfrentamento ao bolsonarismo, representada pelo Lula. Não acredito que a gente possa investir numa terceira via e correr o risco de flertar com valores outros para derrotar Jair Bolsonaro.

 

Sheila de Carvalho – A gente precisa ter esperança de que outro projeto é possível. Vou na linha do Douglas. A disputa não está ganha. Muito pelo contrário. O projeto das elites que se relaciona a outra economia, ao exercício da cidadania seletiva, não encontra espaço dentro do que a gente se propõe a construir como país. Dificilmente essa elite vai encontrar espaço num lugar que não seja o bolsonarismo. Provavelmente, vão fortalecer o bolsonarismo no próximo ano. E, apesar do cenário atual, não será o mesmo daqui a um ano. É possível que o Bolsonaro avance. Estamos vendo as alianças que está fazendo com o Centrão. Isso vai impactar as dinâmicas eleitorais. Temos que nos colocar unidos em uma frente democrática progressista. Não estamos falando apenas de uma disputa eleitoral, estamos falando de uma disputa de sociedade. A gente vai validar em 2022 se aquele pacto republicano firmado na Constituição de 1988 ainda vai valer. A luta em 2022 é para a gente reafirmar o pacto civilizatório de 1988. Não vai ser um jogo fácil. Não tem como irmos com essa soberba, apesar da gente ter dentro do campo progressista o melhor candidato para fazer essa disputa: Lula.

Douglas Belchior – Nós vamos defender enquanto Coalizão Negra a nossa plataforma política que está publicada na internet e vamos cobrar isso de todas as candidaturas do campo progressista. Óbvio que cada um de nós vai escolher seus candidatos, mas enquanto movimento essa é a nossa agenda. E vamos exigir que ela seja considerada pelos partidos, pela candidatura que vai enfrentar o Bolsonaro.

 

— Douglas, você teve um encontro com o ex-presidente Lula recentemente. Gostaria de saber a sua perspectiva sobre a volta dele ao cenário político.

Douglas Belchior — O Brasil deve ao Lula a possibilidade de disputar a próxima eleição, sobretudo a direita reacionária, setores conservadores e médios que jogaram água nessa cumbuca da direita, que avalizaram o procedimento que o levou à prisão, que apoiaram a Lava Jato e hoje se colocam como críticos de Bolsonaro. Precisamos lembrar que é bom que essa turma venha para a rua e mobilize contra o Bolsonaro porque são responsáveis também pela eleição do Bolsonaro. E só foi possível porque tiraram Lula do processo e, antes, depuseram Dilma, presidenta democraticamente eleita, por um processo viciado, mentiroso, sem crime de responsabilidade. Os setores médios da população devem isso ao país. Espero que não aconteça nenhuma má surpresa daqui até lá, Lula possa disputar e a gente possa elegê-lo presidente. Lula é o meu candidato à Presidência pelo histórico que tem, mas, principalmente, por ser hoje a principal figura do nosso campo capaz de enfrentar e derrotar Bolsonaro. A gente precisa colocar o Brasil de volta no caminho de avanços civilizatórios.

`