Concebido pela incontestável genialidade do carioca da Tijuca, mas criado nas Minas Gerais, Milton Nascimento, e contando com a decisiva participação do cantor e compositor mineiro, Lô Borges, começou a ser gravado no ano de 1971 e lançado no início de 1972 o célebre álbum Clube da Esquina. Lançado pela EMI-Odeon, o LP consolidava a carreira de Milton e lançava Lô ao conhecimento do grande público. Em cinco décadas, transformou-se em um achado que vem encantando gerações de brasileiros. É um dos álbuns mais influentes da MPB.

Composto por 21 canções, o LP foi eleito pela versão brasileira da revista Rolling Stone como o sétimo melhor disco de todos os tempos. A faixa de abertura “Tudo que você podia ser”, composta pelos irmãos Lô e Marcio Borges, entoada magistralmente por Milton, já diz ao que veio: “Com sol e chuva você sonhava. Queria ser melhor depois/ você queria ser o grande herói das estradas. Tudo que você queria ser/… Mas não importa, Não faz mal. Você ainda pensa e é melhor do que nada/ Tudo que você consegue ser…ou nada”. Uma canção solar e cheia de esperança numa época de sombras e dor.

O disco é um marco da música moderna, com toques de jazz, uma influência clara e direta dos Beatles, resultando em uma obra musical com novas combinações de inovações harmônicas e rítmicas. Algumas das canções são brilhantemente regadas de guitarras distorcidas e uma percussão rica e cheia de suíngue, além de linhas de baixo de grande beleza. É um achado e os músicos se revezavam constantemente nos instrumentos. Reza a lenda que todos trabalhavam de maneira solta e muitas das gravações são takes ao vivo.

Uma das preciosidades do álbum é a celebrada “Cais”, de autoria de Milton e Ronaldo Bastos: “Para quem quer se soltar, invento o cais/ Invento mais que a solidão me dá/ Invento lua nova a clarear/ invento o amor. E sei a vez de me lançar… /Eu queria ser feliz/Invento o mar, invento em mim o sonhador”. Clássica do cancioneiro popular no Brasil, a música ganhou inúmeras versões, nas vozes de Elis Regina, Nana Caymmi e outros. Permanece nesses mais de 50 anos como sucesso absoluto e influenciou estrelas do rock, como David Bowie, que faz uma homenagem a ela na canção “Sue (or in a season of crime)”, lançada em 2014 e um dos últimos sucessos do astro do rock, que morreu.

Outra canção particularmente rica pelas imagens que evocam a ditadura é “Trem de Doido”, que fala dos “ratos soltos na praça do mercado” — uma analogia discreta aos horrores do regime militar e da brutalidade e morte nos porões do DOI-Codi — enquanto evoca lembrança dos amigos que “nada tinham a temer”. Um achado poético do grande Márcio Borges, que na juventude foi amigo de Dilma Rousseff, numa Belo Horizonte efervescente de sonhos estudantis de jovens idealistas em busca de utopias.

Vejam as imagens dos versos de Márcio, que deu letra à melodia do irmão mais novo, Lô, que tinha então pouco mais de 20 anos: “Quero estar, onde estão/ Os sonhos desse hotel/ Muito além do céu/ Nada a temer, nada a combinar/ Na hora de achar meu lugar no trem/ E não sentir pavor/ Dos ratos soltos na praça/ Minha casa/ Não precisa ir muito além dessa estrada/ Os ratos não sabem morrer na calçada É hora de você achar o trem/ E não sentir pavor/ Dos ratos soltos na casa/ Sua casa”.

Diferentemente do que ocorre em álbuns produzidos pelo mundo afora, e inclusive do próprio Milton Nascimento e de seu parceiro Lô Borges, todas as canções que compuseram essa antologia fizeram sucesso. O disco é um hit parade e tem uma sonoridade rica e encantadora, abrilhantada pela genialidade de músicos como Toninho Horta, Beto Guedes, Wagner Tiso, Tavito, Naná Vasconcelos, Eumir Deodato, Paulo Moura, Rubi, Robertinho Silva e até Gonzaguinha, que fez vocais de apoio em “Estrelas”, cantada por Lô.  

As parcerias são inúmeras, com Fernando Brant — “Saídas e bandeiras número 1”, “San Vicente”, “Paisagem na Janela”, “Saídas e bandeiras número 2”, “Pelo amor de Deus”, “Ao que vai nascer” —, Ronaldo Bastos — além de “Cais”, “O Trem azul”, “Nuvem cigana”, “Cravo e canela”, “Um gosto de sol” “Nada Será Como Antes” — e Márcio Borges — “Tudo Que Você Podia Ser”, “Estrelas”, “Um Girassol da Cor de Seu Cabelo”, “Trem de Doido”, “Clube da Esquina Número 2”.

O disco trás “Dos Cruces”, composição do cantor espanhol Carmelo Larrea e gravada na Espanha na década de 1950, e “Me Deixa em Paz” do sambista Monsueto Menezes e Airton Amorim, com a participação da cantora Alaíde Costa em dueto com Milton. São canções de intensa profundidade e beleza.

Mesmo já tendo gravado alguns álbuns de relativo reconhecimento na época, foi depois do lançamento do “Clube da Esquina” que a carreira já longeva de Milton Nascimento ganhou o mundo. Já tendo composto o sucesso “Travessia” em parceria com Fernando Brant, e já gravada pela maior cantora brasileira desde então — Elis Regina — Milton até aquela época ainda não era muito conhecido fora do pequeno círculo da MPB.

A brilhante interpretação de “Cais”, primeiramente no LP e consequentemente em todas as suas apresentações é só uma pequena demonstração da extrema criatividade e inventividade desse carioca-mineiro que, segundo Caetano Veloso, em “Podres Poderes homenageou: “Será que apenas os Hermetismos Pascoais/ Os tons e os Mil Tons e seus sons e seus dons geniais/ Nos salvam, nos salvarão dessas trevas e nada mais”. Vendo aos olhos de hoje, nessa deprê bolsonarista, os versos de Veloso parecem uma premonição.