O povo peruano foi às urnas para o segundo turno das eleições presidenciais há mais de um mês, em 6 de junho. Enquanto escrevo, no Dia da Bastilha, 14 de julho, ainda não há proclamação oficial do vencedor do pleito, o candidato de esquerda, do partido Peru Libre, professor Pedro Castillo.

Antes de compreendermos a vitória de Castillo contra a candidata fujimorista Keiko Fujimori e a interdição da proclamação do resultado, é bom lembrarmos que o Peru está imerso em uma crise política e institucional já há alguns anos, sendo que dos dez presidentes que o país teve desde a década de 80, pelo menos sete foram presos nos últimos anos envolvidos em escândalos de corrupção. Um deles chegou a se suicidar na iminência de ser preso, Alan Garcia.

O último presidente eleito, em 2016, também em um segundo turno contra Keiko Fujimori, foi Pedro Paulo Kuczynski com uma diferença de apenas 41 mil votos entre ambos. Na época, o fujimorismo alcançou maioria no parlamento, elegendo 73 dos 130 parlamentares. De lá para cá, uma sucessão de crises levou à queda de Kuczynski, sucedido por seu vice Martín Vizcarra, que também foi derrubado no parlamento, para assumir o então presidente da Assembleia Nacional, Manuel Merino.

E Merino, por sua vez, foi interditado justamente pela forma como operou para derrubar Vizcarra. Por último, assumiu interinamente o parlamentar Francisco Sagasti que dirige o país. O desenvolvimento da pandemia é uma prova do abandono da população peruana à própria sorte, que chegou a ter a maior taxa de mortalidade por Covid do mundo, com 551 mortes a cada 100 mil habitantes.

Em meio a toda essa crise, Keiko, herdeira política do pai, Alberto Fujimori, de quem chegou a ser primeira dama ao longo de sua Presidência nos anos 90, enfrentou uma série de derrotas políticas e no plano criminal. Foi presa sucessivas vezes por envolvimento em episódios de corrupção, lavagem de dinheiro, interceptação de recursos, tráfico de influência e outros. Ela precisou, inclusive, de autorização especial da Justiça para poder concorrer novamente à presidência. É que, quando foi registrar a candidatura pelo partido Força Popular, estava em prisão domiciliar. Essa situação fez com que o fujimorismo fosse desidratado no parlamento. Keiko entrou na campanha com menos força.

O primeiro turno eleitoral foi imprevisível, com 18 candidatos concorrendo e teve um resultado de primeiro turno surpreendente. Professor e sindicalista, o candidato Pedro Castillo, do partido Peru Livre, obteve a maior votação, com 18,92% dos votos, seguido de Keiko que ficou com 13,41%.

Abaixo deles, vieram os candidatos de direita Rafael López Aliaga (Renovação Popular) com 11,75%, Hernando de Soto (Avança País) com 11,63%, e Jonhy Lescano (Ação Popular) com 9,07%. Veronika Mendoza (Juntos por Peru), candidata de esquerda, obteve 7,86%. Foi uma eleição extremamente pulverizada e que demonstra o grau de desarticulação política no país e a busca de vários candidatos de se desvincular do que chama de política tradicional, uma espécie de “velha política” como foi denominado no Brasil no último período.

Castillo tem 51 anos, é professor de educação básica da área rural e sindicalista. Ganhou notoriedade no país ao encabeçar uma prolongada greve nacional do magistério em 2017. Ao longo da campanha de primeiro turno, nunca pontuou entre os prováveis mais votados nas pesquisas.

Uma de suas propostas de campanha era trocar a atual Constituição do país convocando uma Constituinte. Ele se posicionou nas eleições contra o recorte de gênero no currículo escolar e disse que em um eventual governo seu não legalizaria o aborto, o casamento homoafetivo e a eutanásia, pautas polêmicas no país.

Propôs ainda a destinação de 10% do PIB para saúde e educação e disse que fará uma verdadeira revolução educacional no país. Seu partido, o Perú Libre, se identifica como marxista-leninista-mariateguista e foi fundado por um médico neurocirurgião, Vladimir Cerrón, que é o governador da região peruana de Junín.

Ao iniciar sua campanha, Castillo e seu partido mal tinham presença nas redes sociais, enquanto a adversária Keiko Fujimori contou com o engajamento de uma das mídias mais monopolizadas e fechadas do continente. Foi a população peruana mais pobre e marginalizada, ao enfrentar uma oligarquia estabelecida e respaldada pela grande imprensa e o capital financeiro, que garantiu a vitória ao professor.

Uma demonstração de que o povo peruano e latino-americano há três décadas segue lutando contra o neoliberalismo e pode chegar ao bicentenário de 28 de julho com um presidente aliado do povo no comando do país. Mas, para que isso seja possível, será necessário vencer os intentos golpistas que assombram o país desde a finalização da apuração.

Desde que os resultados começaram a ser consolidados por volta de 23 de junho, dando a Castillo uma vantagem de 50 mil votos, com uma vitória 50,12%, foi iniciada uma série ataques ao processo eleitoral. A campanha de Keiko entrou com mais de 800 recursos na justiça eleitoral do país. Foram mobilizados militares da reserva para pressionar seus superiores da ativa a não reconhecerem a eleição. Também foram tentadas reuniões com a OEA e outros observadores internacionais para questionarem o processo.

Como se não bastasse tudo isso, ainda foram insuflados policias locais contra autoridades regionais do partido Peru Libre. E tem havido hostilidade aos partidários de Castillo que fazem mobilizações nas ruas.

Neste momento, quase como último recurso, os advogados de Keiko tentam provar que o Gabinete Nacional de Processos Eleitorais (ONPE) cometeu erros numéricos, especificamente nas zonas rurais de votação, onde Castillo teve votação expressiva.

A candidata não apresenta sequer uma prova de nenhuma dessas alegações. O prazo legal para recursos é 16 de julho. A ata da eleição precisa ser proclamada até 20 de julho para a posse em 28 de julho. Acompanhemos os próximos capítulos com a confiança de que a voz do povo falará mais alto.

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