Mudar o sistema para enfraquecer a soberania do voto popular. É golpe
A cada crise política, retorna a ideia de que se deveria extinguir ou mitigar o presidencialismo no Brasil, um sistema que é a única decisão importante sobre a configuração do Estado brasileiro referendada duas vezes por voto popular. Em 1963, na confirmação dos poderes presidenciais de João Goulart e em 1993, quando venceu em plebiscito a campanha popular cujo lema era “Eu quero votar para presidente”. Mas não é apenas ao ignorar essas escolhas que a defesa do parlamentarismo ou sua versão mitigada colidem com a soberania popular.
Os defensores da mudança argumentam que o “semipresidencialismo” afastaria o presidente do “varejo da política”, que caberia ao primeiro-ministro. E, ao mesmo tempo, levaria o Congresso a ter mais responsabilidade com o governo, já que participaria direta ou indiretamente da escolha do premiê. Alega-se que seria um sistema mais estável e de maior responsabilidade. Porém, há muitos problemas neste raciocínio.
Em primeiro lugar, não é verdade que a existência de um primeiro-ministro afasta o presidente do dia-a-dia da política. Este continua participando de campanha eleitoral e mantêm interesse na formação de uma base de apoio sólida e no sucesso do governo.
Dessa maneira, o presidente não estaria afastado dos dois maiores pontos de vulnerabilidade da política atual, que levam muitas vezes mesmo inocentes a virarem réus por corrupção: o financiamento das campanhas eleitorais e a composição da base de apoio. Na França semipresidencialista, o sistema não impediu a condenação judicial dos presidentes Nicolas Sarkozy e Jacques Chirac, em casos que, se desdobrados durante suas presidências, não teriam evitado o fantasma do impeachment.
O argumento da corresponsabilidade do Congresso também não prospera. O Congresso, hoje, já indica ministros de Estado e administradores de ministérios e empresas estatais. Elege também os presidentes das duas casas, que definem, junto ao colégio de líderes de partidos, o que será ou não pautado. Já há, portanto, muita participação nos rumos do governo. Não está claro que modo a existência de um primeiro-ministro geraria “mais participação” ou “mais responsabilidade”.
É verdade que, no semipresidencialismo, a agenda de governo obedecerá mais à média do pensamento do Congresso, mas aí reside uma das maiores debilidades do sistema.
No Brasil, o debate programático hoje gira em torno da eleição presidencial. Isso não significa que nós, parlamentares, não participemos dela. Mas é na eleição presidencial que as coisas ficam mais claras: quem defende desenvolvimentismo ou neoliberalismo, os serviços públicos estatais ou suas privatizações, a defesa da soberania nacional ou a sua entrega a interesses estrangeiros.
Como se vê, o presidente eleito no semipresidencialismo, para além dos constrangimentos econômicos e políticos, terá um obstáculo maior: o poderoso primeiro-ministro não necessariamente atuará solidariamente para que o presidente, o escolhido pelo voto popular, cumpra com o prometido em campanha. Isso mina a confiança do cidadão e se torna mais um elemento de instabilidade do sistema.
Na França semipresidencialista, nos casos de “coabitação”, o presidente eleito por um partido, e que não forma maioria no Congresso, negocia com a oposição a escolha de um chefe de governo. Geralmente já se sabe nas eleições qual será a linha do primeiro-ministro. Lá, os partidos são relativamente poucos e há mais clareza ideológica sobre cada um deles.
No Brasil, com 33 partidos, sendo 24 deles com representação no Congresso, e no qual o maior partido não possui sozinho sequer um quinto do parlamento, não há previsibilidade, durante as eleições, de quem será o primeiro-ministro. A escolha dependerá de variáveis como composições de última hora e preferências pessoais, entre partidos que nem sempre têm posições político-ideológicas bem definidas.
Assim, ao votar, o povo entrega a escolha do chefe de governo e seu programa a fatores totalmente contingentes, que não conhece e dos quais não participa. O programa do presidente eleito é enfraquecido.
Uma verdadeira reforma na política brasileira deve fortalecer o poder popular. O semipresidencialismo não só não cumpre o que promete, como fragiliza o bem mais precioso de uma democracia: a escolha soberana do povo sobre os rumos do Brasil.