Desde a saída do PT do poder, os governos Temer e Bolsonaro atuaram para fragilizar as instituições e calar os dissidentes e opositores. A Lei de Acesso à Informação vem sendo podada, a participação popular foi desmantelada e a LSN usada para perseguir críticos do governo. Por fim, servidores estão sendo calados por resistirem aos desmandos

 

Em 31 de agosto de 2016, o Senado aprovava o processo de impeachment contra a presidente Dilma Rousseff e a afastava definitivamente do poder. Era consumado então o Golpe de Estado contra a presidenta e a democracia brasileira. Desde então os desmontes e abusos perpetrados pelo poder vigente culminaram na inexistência do Estado Democrático de Direito e sua substituição pelo Estado de Exceção em que vivemos.

Não só nos grandes fatos, como a perseguição ao ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva — preso injustamente por 580 dias, condenado ilegalmente e destituído de seus direitos políticos — ou a fraude das eleições de 2018, percebe-se as perdas decorrentes do Golpe de 2016. Os retrocessos enfrentados perpassam diferentes esferas, das jurídicas às sociais.

A Lei de Acesso a Informação vem sendo desmontada, os conselhos e conferências de participação social na gestão pública foram enfraquecidos ou extintos e crescem os descalabros do Executivo no uso da Lei de Segurança Nacional. Como se não bastasse, também tem ocorrido um aumento abusivo dos casos de assédio moral no serviço público.

Todos esses episódios são facetas do arbítrio e o desdobramento institucional do Golpe de 2016. Tais processos sinalizam abusos do Executivo e a absurda concentração de poder e o consequente afastamento da população das arenas decisórias da República.

Ao longo dos últimos cinco anos, a Lei de Acesso a Informações tem sofrido sucessivos revezes, deteriorando-se de forma paulatina e quase silenciosa. No governo Bolsonaro, no entanto, piorou de forma mais acelerada e explícita, tendo sido adotadas medidas claras na contramão da abertura de dados.

Em janeiro de 2019, logo nos primeiros dias de mandato, o governo editou decreto ampliando significativamente o número de autoridades autorizadas a classificar informações e documentos como ultrassecretos. Depois de a Câmara dos Deputados aprovar a urgência de um Projeto de Decreto Legislativo que sustava os efeitos da norma e de receber muitas críticas da sociedade civil, o governo voltou atrás e revogou o regulamento.

Em março de 2020, o presidente Jair Bolsonaro editou medida provisória suspendendo, em determinados casos, os prazos para respostas aos pedidos de acessos à informação. Mais uma vez o normativo recebeu inúmeras críticas, inclusive da comunidade internacional, e o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal concedeu liminar, confirmada pelo plenário da corte, derrubando as restrições impostas pela malfadada MP.

Em outra ação lamentável, o governo Bolsonaro classificou como sigilosos todos pareceres jurídicos relacionados a vetos e sanções presidenciais, sob a alegação de que se tratavam de documentos protegidos pela relação cliente e advogado. A decisão representou uma mudança de posição da Controladoria Geral da União (CGU), que antes havia se pronunciado pela liberação dos documentos.

Estudo elaborado pela organização da sociedade civil Transparência Brasil  mostra que a CGU deferia 27% dos recursos que lhe eram apresentados no governo Dilma, passando a dar provimento a cerca de 7% dos recursos no governo Temer, número que passou a oscilar em torno de 14% na administração do presidente genocida. Os dados mostram também que, em 2020, a taxa média de pedidos concedidos com base na LAI foi de 58%, contra uma média de 71,3% verificada entre 2016 e 2019.

Por fim, há um número crescente de negativas baseadas em alegações, tais como: pedido “desarrazoado”, “genérico”, “desproporcional”, “que demanda trabalho adicional”. Apesar de encontrarem fundamento no decreto que regulamenta a LAI, tais justificativas apresentam curva ascendente constante desde o final do governo Dilma, o que denota a utilização de subterfúgios legais para negar solicitações de acesso.

 

Desmonte das instâncias de participação social

Os governos Temer e Bolsonaro abriram ainda um processo de retirada de direitos individuais, coletivos e sociais da população brasileira. Ademais, desencadearam um processo de desmonte dos conselhos setoriais e temáticos, de suas conferências e na participação popular na gestão pública.

O governo autoritário de Bolsonaro, já no início de seu mandato, editou o Decreto 9759/2019, que extingue e estabelece diretrizes, regras e limitações para colegiados da administração pública federal direta, autárquicas e fundacionais.

Na prática, com este decreto, conhecido popularmente como Revogaço, Bolsonaro extinguiu todos os órgãos colegiados — conselhos, comissões e comitês — com participação da sociedade civil na administração pública federal que foram criados por decreto.

Aqueles que tinham previsão por lei passaram a ser descaracterizados e esvaziados, com mudanças na sua competência, composição, na forma de escolha dos representantes da sociedade — por indicação do governo e até por sorteio —, controle e contingenciamento dos seus fundos e orçamentos, entre outras medidas.

Os conselhos são conquistas da Constituição Federal de 1988, que prevê, em seu artigo 10: “É assegurada a participação dos trabalhadores e empregadores nos colegiados dos órgãos públicos em que seus interesses profissionais ou previdenciários sejam objeto de discussão e deliberação”.

Como exemplos deste retrocesso, cabe lembrar a extinção dos conselho nacional de Segurança Alimentar (Consea) e de Política Indigenista. A representação do Conselho Nacional de Meio Ambiente (Conama) foi reduzida de 96 para 23 cadeiras, de 21 conselheiros da sociedade e entidades de trabalhadores para apenas quatro membros da sociedade civil escolhidos por sorteio.

As bancadas do PT na Câmara Federal e no Senado entraram com Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI-6121), no Supremo Tribunal Federal, que deferiu liminar limitando a eficácia do decreto apenas para atos inferiores a leis, mas ainda não há uma decisão definitiva do STF sobre sua constitucionalidade. Entre 11 e 17 de abril, as entidades e militantes do campo da participação social promoveram a “Semana de Descomemoração de dois anos do Decreto 9759/2019”.

No momento em que o PT, PCdoB e PSOL, os  demais partidos de esquerda, junto com movimentos sociais e setores democráticos da sociedade buscam unir forças para construir uma maioria política e social para o Fora Bolsonaro, e Lula recupera seus direitos políticos para liderar a reconstrução do país, é fundamental a construção de um programa que tenha como um dos eixos estruturantes a participação direta da população por meio de um processo de radicalização da democracia com orçamento participativo nacional, conferências setoriais e temáticas com caráter deliberativo e garantia da execução das suas deliberações.

 

Lei de Segurança Nacional

Desde o ano passado, são crescentes os abusos com a Lei 7.170/83, conhecida como Lei de Segurança Nacional, que entrou em vigor no final da ditadura militar, sancionada pelo último general do regime a presidir o país, João Baptista Figueiredo, com o objetivo de conter e controlar os movimentos sociais em ascensão, reafirmando a doutrina de segurança nacional formulada pela Escola Superior de Guerra.

Nascida como um dispositivo que dificulta as garantias individuais necessárias a um regime democrático, a lei tem sido utilizada pelo governo Bolsonaro de forma reiterada contra adversários políticos, para embasar pedidos de investigação contra jornalistas —como o chargista Renato Aroeira, processado por um cartum —  e críticos ao governo, professores das universidades e manifestantes.

Um quadro de crescimento vertiginoso da prática inconstitucional e ilegal empreendida por autoridades policiais, estaduais e por ministros de Estado, de forçar o enquadramento, como crime contra a segurança nacional, de mera manifestação de opinião política, com notório viés persecutório de intimidação dos opositores ao governo e ao presidente, em franca ameaça aos mais caros fundamentos do Estado Democrático.

O respeito à Constituição, aos instrumentos internacionais e aos parâmetros interamericanos estabelecidos pela jurisprudência da Comissão e da Corte Interamericana de Direitos Humanos exigem a revisão dessa lei, considerando o emprego elástico de seus dispositivos um desvio para a instauração de investigações que revelam uma tendência de intolerância à participação política de todos que discordam da conduta do governo de ocasião.

Existem quatro ações declaratórias de preceito fundamental ajuizadas no Supremo Tribunal Federal por partidos políticos pedindo a integral ou parcial declaração de incompatibilidade da Lei de Segurança Nacional com a ordem constitucional vigente e o Estado Democrático de Direito e a liberdade de expressão e de pensamento. Ao mesmo tempo, há no Congresso um projeto que a revoga totalmente.

 

Perseguição aos servidores

No bojo das consequências do Golpe de 2016, o assédio moral no serviço público tem crescido exponencialmente nos últimos cinco anos, em especial nos últimos dois anos e meio sob a gestão de Bolsonaro, que promove o mais completo processo de ataque à profissionalização do serviço público, desde o governo neoliberal de Fernando Henrique Cardoso.

O ataque aos servidores públicos federais está inserido em um contexto de subordinação dos interesses do Estado brasileiro aos interesses privados. Isso revela um processo mais amplo de degradação institucional pelo qual padece o Poder Executivo Federal na atual gestão.

É nesse quadro de captura da República pelos interesses privados que cresce o ambiente de perseguição dos servidores públicos, de modo a fragilizar a estrutura do Estado para que não tenha condições de reagir aos ataques daqueles que desejam se apropriar da coisa pública.

Trata-se de um processo de subversão da lógica que permitiu a criação do Estado moderno e que inspirou o Constituinte de 1988, que teve o cuidado de erigir os princípios da administração pública do país como expressão maior do princípio republicano.

Para além de um projeto de captura do Estado, o assédio moral no serviço público é revelador da faceta autoritária e saudosista do totalitarismo do atual governo, que flerta constantemente com a violação à ordem democrática, promotor de desarmonia entre os Poderes da República.

Em menos de dois anos e meio, foram mais de 700 denúncias de assédio moral no serviço público no Executivo Federal. É mais de uma denúncia por dia. Um quadro sem precedentes desde a Constituição Federal de 1988, que estabeleceu a estabilidade no serviço público como uma garantia para evitar a captura do Estado pelo interesse privado e para que o servidor possa sempre atuar pautado pelo interesse público no cumprimento de suas funções.

O quadro atual traz exemplos dramáticos. Professores universitários são compelidos a se retratar por críticas formuladas à condução de políticas executadas pela atual gestão federal. Servidores são exonerados por denunciar infrações administrativas. Outros são processados por se negarem a atender pedidos ilegais e que não compactuam com ideologias reducionistas, negacionistas e antidemocráticas.

Tudo isso evidencia um estado de coisas absolutamente inconstitucional na gestão federal. Embora o atual governo não se dedique à administração da coisa pública, mas à construção de narrativas para dar suporte a um projeto de destruição do Estado, o resultado danoso ao tecido institucional trançado e costurado pela Assembléia Constituinte, em pouco mais de dois anos de governo, é bem maior que a estrutura institucional é capaz de responder. Isso indica uma dificuldade de recuperação ao fim desse ciclo.

Não há saída que não passe pela denúncia dessas práticas nefastas, que são utilizadas com o propósito de ocupar o espaço público como suporte da perpetuação no poder de um governo que se pauta exclusivamente pelo fim do bem-estar social, em grave conflito com o disposto na Constituição Federal de 1988, e que prioriza um projeto neoliberal que coloca em risco a segurança sanitária, climática e alimentar da população brasileira.

A solução está em fazer prevalecer a Constituição de 1988 sem qualquer atropelo, exigindo a firme atuação dos órgãos de proteção e garantia da ordem democrática e dos princípios republicanos, em especial o Ministério Público e o Supremo Tribunal Federal.

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