A Lei de Defesa do Estado Democrático de Direito
A Lei de Segurança Nacional é um entulho autoritário de 1983 que, fundamentada na Carta militar de 1969, é incompatível com o regime democrático da Constituição de 1988. Hibernada por longos anos, a vetusta LSN voltou a ser manipulada para instrumentalizar perseguições, intimidações e neutralização de crítica política.
Além de inspirar-se no combate à figura de um inimigo que, supostamente, ameaça a sobrevivência do Estado, a hipernomia decorrente de conceitos jurídicos indeterminados outorgam ao aplicador da lei o ilegítimo poder de conferir extensão e alcance ao sabor dos interesses extrajurídicos momentâneos.
Quase todas as condutas que fogem ao banal são passíveis de criminalização pela Lei de Segurança Nacional. Basta que, com alguma interpretação jurídica, assim deseje o soberano. Por fim, a lei criminaliza condutas inerentes e desejáveis à livre participação na vida da polis, contrariando, exemplificativamente, as liberdades constitucionais de expressão, manifestação, reunião e de associação e, por fim, o direito de resistência.
Concomitantemente à tramitação, no Supremo Tribunal Federal (STF), de Arguições de Descumprimento de Preceito Fundamental que visam declarar a não recepção da Lei pela Constituição de 1988, elaboramos, em conjunto com juristas, professores e advogados de diversas instituições, um anteprojeto de Lei de Defesa do Estado Democrático de Direito, o que deu origem ao Projeto de Lei 3.864/2020, de iniciativa do deputado Paulo Teixeira (PT-SP).
Inspirados na legislação europeia — em especial de países tais como Alemanha, Portugal e França — e latino-americana, propomos criminalizar, de forma propositalmente concisa, minimalista e com rigorosa delimitação do alcance dos tipos penais, excepcionalíssimas condutas violentas e efetivamente perturbadoras do regular funcionamento dos poderes do Estado e das instituições democráticas.
Atentos à possível desvirtuação hermenêutica, propomos vedar, expressamente, qualquer pretensão criminalizatória decorrente de crítica aos poderes constituídos e de reivindicação de direitos, inclusive através de protestos, associações civis e movimentos sociais.
Na Câmara dos Deputados prevaleceu, para fins de discussão legislativa, a proposta realizada nos idos de 2002 pelo então Ministro da Justiça, Miguel Reale Jr., a qual, valendo-se de uma nova roupagem, envernizou, sem depurar, as bases autoritárias da Lei de Segurança Nacional.
Não se furtando ao debate com entidades da sociedade civil e movimentos sociais, importantes aperfeiçoamentos foram realizados em decorrência de iniciativas da deputada Margarete Coelho (PP-PI), tendo Paulo Teixeira capitaneado importantes melhorias através de diálogos com juristas de diversas instituições e áreas do Direito.
Os aprimoramentos realizados na Câmara afastaram, em alguma extensão, severas influências e resquícios da LSN. A indeterminabilidade de palavras e expressões ameaçavam transformar o remédio em veneno.
Além do mais, foi preciso nos posicionarmos contra a superada relação entre segurança e inimigos externos com as relações domésticas. Longe de nos depararmos, contemporaneamente, com conflitos no plano da segurança internacional, a defesa do Estado Democrático de Direito é uma exigência que se impõe em razão dos severos equívocos que estamos vivenciando na aplicação da LSN e das provocações, também capitaneadas por agentes e órgãos do Estado, elogiosas e instigadoras de golpes de Estado.
Assim considerando, o Senado Federal, no exercício das suas relevantes missões institucionais, deve — sem dar margem à necessidade de reanálise do Projeto de Lei pela Câmara dos Deputados — aprovar a proposição legislativa que se apresenta como relevante marco de defesa do Estado democrático de Direito. Trata-se de um projeto adequado que, muito embora distante do modelo ideal, promove inegável avanço democrático e civilizatório em relação à lei vigente.