Os 44 anos de Refavela e a obra atemporal de Gil
Em 26 de junho de 1942, nascia na cidade de Salvador, na Bahia, o compositor, cantor e multi-instrumentista Gilberto Passos Gil Moreira. Um dos artistas mais prolíficos da MPB, sua obra transcende os limites dos territórios de língua portuguesa e ganha o mundo… literalmente.
Perseguido pela ditadura militar instaurada no país pelo Golpe de 1964, pós sua fascistização, com o AI-5, de 1968, o artista foi obrigado a exilar-se em Londres.
O espaço seria pequeno para historiar a longa carreira de Gil, que já beira os 60 anos de atividade contínua e ininterrupta. Vamos focar nessa primeira abordagem à obra Refavela. Lançado em 1977, depois de uma experiência como participante do 2º Festival Mundial de Arte e Ciência e Cultura Negra, em Lagos, Nigéria, o disco foi um salto estético e um mergulho na obra e na negritude pelas percepção arguta da realidade por Gil.
Sua experiência ao longo da permanência de um mês percorrendo o país serviu para trabalhar a temática africana em suas composições e abriu as bases para o novo disco.
Já na faixa que que dá título ao LP, Gil diz: “A refavela revela o salto que o preto pobre tenta dar/ quando se arranca do seu barraco prum bloco do BNH…/ A refavela revela o passo em que caminha a geração/ Do black jovem, do black-Rio da nova dança no salão…/ a refavela batuque puro de samba duro de marfim/ Marfim da costa de uma Nigéria, miséria roupa de cetim”.
Além da música título, o álbum apresenta, entre outras, canções fortes como “Ilê ayê”, “Babá apalalá”, “Patuscada de Gandhi” e “Balafon”. Todas baseadas nos ritmos africanos com pitadas da brasilidade baiana de Gil: “Isso que a gente chama marimba tem na África o mesmo som/. Isso que toca bem, bem, num lugar, não lembro bem/ chama-se balafon”.
Nesse trabalho, que completa 44 anos, o compositor inicia uma abordagem sobre a questão negra que permeou sua vasta obra de mais de 500 canções em várias ocasiões. Recoloca luz sobre as favelas brasileiras – reduto majoritário de negras e negros brasileiros, um fato que remonta a gênese da formação desigual da história de construção brasileira.
Outro fator que aparece com destaque em Refavela é a lembrança de sua prisão e julgamento em julho de 1976, quando o músico estava de passagem por Florianópolis para uma apresentação do show Doces Bárbaros, em que se apresentava juntamente com Caetano Veloso, Gal Costa, Maria Bethânia e banda.
Na ocasião, Gil e o baterista Chiquinho Azevedo foram detidos portando uma pequena quantidade de maconha para uso próprio. Vivíamos então os estertores do regime militar. Levado à prisão e, posteriormente, a julgamento, os dois músicos foram condenados a um ano de prisão, convertido à pena em internação no Instituto Psiquiátrico São José, área metropolitana de Florianópolis. Ali, Gil onde ficou por quatro dias, sendo transferido para o Hospital Psiquiátrico de Botafogo, no Rio de Janeiro.
Fruto dessa experiência inusitada (não a prisão, já que Gil já tinha sido encarcerado em 1969 em quartel da Vila Militar no Rio em 1969), a internação em hospital psiquiátrico, levou-o a compôr a canção “Sandra” em homenagem a então mulher Sandra Gadelha e às várias amigas que o visitaram e o atenderam na unidade hospitalar:
“Maria Aparecida, porque apareceu na vida, Maria Sebastiana porque Deus fez tão bonita. Maria de Lourdes porque me pediu uma canção pra ela. Carmensita, porque ela sussurrou seja bem-vindo no meu ouvido, na primeira noite que nós chegamos no hospício. E Lair, Lair, porque quis me ver e foi lá no hospício…”
Quando da comemoração dos 40 anos de lançamento do disco, em 2017, além de uma turnê comemorativa cercada de grande sucesso, a HBO lançou um documentário sobre a importância icônica do trabalho. Refavela, parte da trilogia iniciada com Refazenda, em 1975, e terminada com o lançamento de Realce, em 1979, coloca Gilberto Gil como o artista brasileiro que melhor soube combinar a influência da música e dos ritmos africanos e a sua vinculação com a música brasileira na sua totalidade. O álbum transcende as influencias africanas já presentes no samba e demais variações musicais.
O disco é um marco no cancioneiro popular brasileiro. Apesar dos 44 anos de lançamento, a obra pode ser ouvida como se tivesse sido lançada ontem.