Quando o sistema de Justiça vira um ator político
Quando, em setembro de 2016, o Tribunal Regional Federal da 4ªRegião (TRF-4) decidiu, por 13 votos a 1, que o juiz Sergio Moro não deveria ser censurado por ter divulgado um grampo telefônico ilegal com conversas privadas entre a então presidenta Dilma Rousseff e o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, inaugurava-se ali, pelo menos do ponto de vista formal, a violação dos limites jurídicos impostos a um agente público.
Em outras palavras, ao decidir que os processos da 13ª Vara Federal de Curitiba traziam “problemas inéditos” que exigiam “soluções inéditas”, um tribunal superior brasileiro legitimou a ideia segundo a qual o direito pode dar respaldo ao arbítrio. Afinal, temos uma decisão jurídica que autoriza um juiz federal a não se submeter ao direito.
A partir de então, os processos decorrentes da operação Lava Jato — porque seriam “excepcionais” — recebem uma espécie de autorização superior, e praticamente unânime, para ignorar a normatividade vigente destinada apenas aos casos comuns.
É nesse contexto de pura discricionariedade e arbítrio — o modelo da exceção que rompe com o estado de direito —, que a Lava Jato precisa ser compreendida e analisada. Trata-se de uma guerra jurídica — também conhecida como lawfare — que elege pelo menos três alvos distintos: o ex-presidente Lula, o projeto petista de país e a própria soberania nacional.
A arena judicial — com o seu verniz normativo — transforma-se em um espaço político que faz uso do direito e de agentes públicos para aniquilar projetos, políticos e o próprio país. Ainda que tenha sido descrita pela grande mídia corporativa como um reduto da luta contra a corrupção no Brasil, a Lava Jato foi o espaço político onde se construiu a cultura do antipetismo, sem a qual não seria possível a prisão de Lula e a absurda comparação, amplamente divulgada pela extrema-direita, entre o projeto socialdemocrata do Partido dos Trabalhadores e um certo ideário comunista.
Para prender Lula, a Lava Jato cria conceitos jurídicos inexistentes — como “propriedade de fato” e “ato de ofício indeterminado” —, ignora documentos apresentados pela defesa técnica, abre prazos processuais exclusivos para o Ministério Público, mantém sob sigilo peças processuais que poderiam acarretar uma mudança de jurisdição, isso tudo para não falar sobre os diálogos apreendidos na Operação Spoofing que revelaram uma indecente rede de relações entre juiz, procuradores, policiais federais e auditores fiscais.
Assegurar a consolidação da cultura do antipetismo, amplamente divulgada na mídia corporativa, exigia a prisão do ex-presidente, para, com isso, não apenas retirá-lo do processo eleitoral, mas também viabilizar o desmonte de um projeto de país, de políticas públicas e sociais de inclusão das nossas camadas populares, e ainda vergar setores importantes da economia brasileira que concorriam com empresas internacionais.
Não há, portanto, outra maneira de analisar a Lava Jato senão como um modo de utilização da arena judicial que simula um processo legal cujo resultado já era conhecido desde o início, independentemente das investigações da polícia, ou dos argumentos, das provas e dos documentos apresentados pela defesa e pelos integrantes do Ministério Público.
Foram muitos os juristas brasileiros que, naquele momento, denunciaram a inconsistência da sentença contra Lula, a rapidez extraordinária do julgamento dos recursos nos tribunais superiores, o compromisso do sistema de Justiça com argumentos que violavam o devido processo legal e a postura indigna da mídia corporativa que adulava juiz e procuradores, transformados em heróis que lutavam contra a corrupção.
Muito antes das denúncias do The Intercept Brasil e do vazamento dos diálogos da Operação Spoofing, não havia dúvidas, para os profissionais da área do direito, que a Operação Lava Jato era, na verdade, apenas uma guerra jurídica contra um político, um projeto de país e sua soberania.
Sem a Lava Jato, a cultura antipetista não teria prosperado e a extrema-direita não teria chegado ao poder. Tampouco o país teria perdido mais de 2,5 milhões de empregos, ou enfrentado um prejuízo de mais de R$ 142 bilhões, como resultado da devastação causada nas indústrias de petróleo e gás, engenharia pesada, indústria naval e construção civil. O ataque à soberania nacional se consolida com a atuação das petroleiras estrangeiras no país e, fora do Brasil, com o fortalecimento do pool de empreiteiras americanas.
Como um jogo de cartas marcadas, a Lava Jato jamais foi um processo judicial, mas apenas uma estratégia de luta política, diuturnamente repercutida pela grande imprensa — e especialmente pela Rede Globo de Televisão. Não é por outra razão que após tantos anos o Supremo Tribunal Federal não teve alternativa senão a de declarar a parcialidade do juiz Sergio Moro.
Tudo nos leva a crer que em 2022 teremos eleições livres e legítimas. Haveremos de superar os prejuízos que recaíram sobre nosso país nestes últimos anos, e jamais poderemos permitir que o sistema de Justiça brasileiro volte a atuar como uma força política capaz de calar a soberania popular.