Entrevista | Paulo Betti – “Estamos diante da morte. Não tem nada mais grave do que isso”
Paulo Betti enxerga a política sob os conceitos simbólicos dos espetáculos teatrais. É em função dessa perspectiva que o ator e diretor decidiu incentivar a utilização da bandeira do Brasil como símbolo das manifestações organizadas pelos movimentos sociais. “É um espaço que precisamos disputar”, afirma.
Imaginando como seria uma passeata que misturasse o vermelho ao verde-amarelo, Betti diz que não deve haver concorrência entre os símbolos. “Quanto mais bandeira vermelha tiver, e mais bandeira verde-amarela houver, mais elas vão aparecer ali no meio. Vai ser interessante porque vai criar um atrito de informação”, avalia.
Por outro lado, o ator reconhece que o uso insistente das cores da bandeira pela extrema-direita faz com que seja mais complicado para a esquerda voltar a adotá-las. Essa preocupação com a valorização do símbolo nacional vem de muito tempo.
Paulo Betti se reconhece como militante de esquerda, afinado com ideais socialistas e conta que sempre levou a bandeira brasileira com pequenos adereços na cor vermelha. Avalia que, dessa forma, é possível passar um recado: “É esse Brasil aqui que a gente quer, para esse lado aqui [vermelho], para o lado do povo, do esclarecimento”.
Ele espera que o levante popular ajude a concretizar o afastamento de Jair Bolsonaro da Presidência. Ou, ao menos, colaborar para que ele não tenha condições de se reeleger. No entanto, mesmo acreditando que Bolsonaro será vencido, Betti se diz preocupado com os rompantes golpistas do presidente. “Temos que trincar os dentes para garantir a legalidade”, aponta.
Sobre a importância de se posicionar, é categórico. “Nós estamos diante da morte. As pessoas estão morrendo”, aponta. “Não tem nada mais grave e mais definitivo do que isso”. Na entrevista à Focus Brasil, ele também relembra momentos da campanha eleitoral de 1989, da qual participou ativamente.
Focus Brasil — Você mencionou que sempre teve um olhar voltado para a simbologia dos atos políticos, que a preocupação com a presença da bandeira do Brasil nos protestos da esquerda não vem de agora. É isso?
Paulo Betti — Sim. Sou ator e diretor de teatro. Cada profissão nos deforma de alguma maneira. Por exemplo, o cardiologista olha suas mãos, olha você e já sabe se você tem caraterísticas de um cardíaco. Eu olho as coisas do ponto de vista dos símbolos do teatro. A gente trabalha com símbolos, arquétipos, imagens e cenários. Na eleição Lula versus Collor, eu estava muito envolvido na campanha do Lula. Muito mesmo. Viajei com ele num aviãozinho em que fomos ele, dona Marisa, Lucélia Santos e eu. E você fica querendo ajudar no comportamento, no discurso, no que nós sabemos. Você tenta aconselhar. E o Lula tinha um debate contra o Collor em que ele abriria o encontro e encerraria. Isso estava pré-estabelecido. Então, tínhamos um pênalti logo no começo do jogo. E outro no final. Eu falei para ele: “Olha, fala o que você quiser no primeiro discurso. Mas no último, tire a carteira de trabalho, leve a carteira no bolso do paletó” – aquela que todo cidadão brasileiro tem que ter para mostrar que é cidadão, uma pessoa que anda na rua, que toma ônibus. Mostrar uma carteira de trabalho é algo importante. E isso com o Lula, Partido dos Trabalhadores, em 1989, num segundo turno contra o patrão. Entende? Então era muito adequado para ele marcar o “segundo gol”.
Eu me predispus a ensaiá-lo para isso, prevendo como seria o espaço para que não esbarrasse nos microfones como aconteceu. Na edição do debate, colocam o cara batendo no microfone e passa uma imagem de que ele estava inseguro. E o Collor jogando com esses símbolos de uma forma muito inteligente… Sacana, mas inteligente. Ele tinha uma pilha de documentos bem ordenados dentro de pastas que ele dizia que tinha para ameaçar o Lula. Enfim, eu mergulhei fundo nesse debate. Eu assisti o debate na casa de um amigo e estava presente o bispo de Duque de Caxias, Dom Mauro Morelli, um dos heróis entre os católicos. E ele fumava um cigarro, desculpe entregar o bispo. Olha, não sei se inventei isso, mas me lembro de no final ficarmos de joelhos para o momento em que esperávamos que o Lula falasse “aqui está o documento [a carteira de trabalho] que você não tem”. Poderia falar de qualquer jeito que “a bola iria entrar”. Mas, ao invés de fazer isso, Lula falou uma frase assim: “Ele acha que é um caçador de marajás, mas é um caçador de maracujás” [fica em silêncio e ri]. Ele encerrou a fala assim. Claro, é normal, mas toda vez que eu o encontro, eu tiro sarro dele com isso. Agora, na reunião dos artistas com Lula, eu brinquei com ele.
— Eleição é sempre nervosa.
— Eu sempre observei muito desse ponto de vista. Acabavam os comícios, comício na Candelaria com 500 mil pessoas, aquela confusão, o comício mal dirigido, o Chico Buarque cantando uma música maravilhosa, entrava o Brizola do outro lado e atrapalhava tudo. Eu queria mais respeito nos comícios para o musical, para que não fosse ruim para quem está vendo. Eu queria fazer outra coisa. O Collor já estava na nossa frente, e ele fazia um “avancé”, tinha um platôzinho na frente do palanque. O que fazia com que na hora de fazer as fotos, fosse destacado. Ele não se diluía.
E eu me engajo porque gosto de militar, sou militante, sou sindicalista, sou de esquerda, sou socialista. Acho que isso é outra coisa que devíamos parar de ficar com encheção de saco. Vamos explicar para as pessoas o que é o socialismo, o que é o comunismo. As pessoas têm que entender que se não fosse o socialismo, pô, eles estavam trabalhando 24 horas por dia, sem descanso, com o patrão em cima. O que faz a força do trabalhador, seja ele da cultura, de qualquer setor, é a união em torno de um sindicato. É essa união que pode fazer frente por melhores condições de trabalho. Além de todo o projeto que tem de o socialismo ser algo tão audacioso, que quer corrigir a natureza humana. O socialismo vai contra a natureza humana. Isso que é bonito. Segundo o Antônio Candido, pelo menos foi o que eu entendi nas diversas vezes que eu li essa entrevista dele, ele diz que o socialismo é uma doutrina vencedora porque conseguiu muitas conquistas.
— Você falou sobre o seu olhar para a questão simbólica na política. Mas nesse momento, especificamente, por que é importante trazer a bandeira brasileira para os protestos organizados pelos movimentos populares, um símbolo que nos últimos anos acabou, infelizmente, muito ligado à direita, a essa direita fascista?
— Eu acho que é um espaço que a gente deve disputar, entende? Sem abdicar da cor vermelha que é a cor que diz respeito à ideologia que a gente professa – eu, pelo menos, me afino com o pensamento da esquerda no aspecto da tentativa de corrigir a natureza violenta do homem, por exemplo. [Combater] O egoísmo. [Outro exemplo] A primeira “socializada” quem dá é mãe: “Vai dividir com seu irmão mais novo”.
Nesse momento, eu não pensei em fazer campanha nenhuma. Estou apenas expondo o que eu acho desse momento e exercendo o meu papel de cidadão que vai para um ato. Uma manifestação é algo que propõe uma ação, que faz um movimento. É como se fosse um teatro onde eu sou chamado a desempenhar o meu papel de cidadão. Nós não estamos de forma alguma impondo alguma coisa para alguém. Estamos apenas expressando, de uma forma absolutamente pacífica, criativa, divertida, segura. Nos dois lugares em que estive em manifestação, achei tranquilo. Todo mundo de máscara. As manifestações são também um espetáculo de teatro. Cada um vai com uma fantasia… Cada um vai com uma expressão. Então, tem um lá com uma tabuleta: “Fora, Salles”. E as pessoas aplaudem aquele ator, que está declamando um texto bacana.
O que eu vi nas manifestações na Avenida Presidente Vargas, a partir do monumento do Zumbi de Palmares – aquele lugar é perfeito para começar as manifestações. Na primeira vez, tinha um boneco inflável grande do Lula. Depois, ele sumiu. Até pensei que, talvez, realmente não deva ter um boneco do Lula. E nessa última não teve, mas teve muita criatividade. É isso o que eu queria destacar. Por exemplo, a minha criatividade é zero.
— Como assim?
— Eu pego aquela bandeira [aponta para a bandeira do Brasil que aparece no fundo da sala da qual está falando], ponho uma camisa vermelha para fazer um contraponto com aquela bandeira e não ser confundido com um militante do Bolsonaro, e vou para a manifestação. Lá, vejo outras pessoas com suas “fantasias”. E elas são incríveis, críticas, dramáticas. Vi muita coisa dramática. A manifestação contém uma certa euforia. Você vai para ter um pouco de euforia, olhar para todo mundo e falar “estamos juntos”. É lindo. Nada mais bonito do que uma manifestação democrática, né?
Vendo como diretor de cena, vai ter uma maioria de bandeiras vermelhas, né? Ninguém tem dúvida disso. Mas quanto mais bandeira vermelha tiver e quanto mais bandeira verde-amarela tiver, mais vão aparecer ali no meio. E vai ser interessante porque cria um atrito de informação. A gente está pegando a nossa bandeira, caramba. [rindo] Tem que se passar por um certo processo de perder a vergonha para pegar a bandeira do Brasil, eu reconheço. Mas eu sempre fiz questão de carregar a bandeira do Brasil e me vestir de vermelho ou carregar um detalhe vermelho na bandeira brasileira. Também sempre achei importante que ela aparecesse nas campanhas eleitorais. E, não sei, parece inacreditável, mas tem gente que não acha isso legal. Eu acho que não tem nada de errado. É a bandeira do Brasil e o nosso vermelho amarrado nela é um recado que a gente quer dar: “É esse Brasil aqui que a gente quer, para esse lado aqui, para o lado do povo, do esclarecimento”.
— Depois do ato do dia 19, em que a sua iniciativa da ganhou amplitude, vimos que pessoas declararam apoio, caso do Pedro Cardoso e outros. Existe contato com a organização dos protestos para tentar fazer disso uma ação que seja parte das manifestações?
— Eu acho que tem que ser do jeito como está sendo, espontaneamente. Acho que quem quer ir com as bandeiras verde-amarelas, legal. O fato de ser pandemia faz com que você seja obrigado a ficar a dois metros do outros. Isso do ponto de vista da cena é muito bom porque você tem fotos aéreas incríveis. Não dá sensação de vazio em lugar nenhum. As pessoas querem ver aquilo cheinho e nós tivemos essa foto que os jornais não aproveitaram. Achei que os jornais bobearam porque é uma imagem bem emblemática com a Catedral [no Rio de Janeiro] atrás. Pô, é sensacional. Nem a Folha nem o Globo, os jornais que eu leio, mostraram a foto. Cada um tem que fazer do seu jeito, eu fico até meio constrangido se alguém disser que está com a bandeira do Brasil por minha causa. Sabe? Estava todo mundo pensando nisso. Poxa, a gente tem um carinho por esse símbolo.
Na campanha do Haddad, eu tentei influenciar muito o pessoal que fazia a campanha dizendo que alguém tinha que andar com essa bandeira. Agora, nesse encontro do Lula com os artistas, eu levei a bandeira. Cheguei lá, a mesa formada, começaram a discursar, eu olhei e não tinha nada lá atrás. Era um fundo frio, sem cor. Aí peguei a bandeira, falei “me desculpem” e o [Ricardo] Stuckert, que é fotógrafo, me ajudou. Arrumou uma fita crepe, colamos a bandeira e ficou muito mais legal. O Lula em todas as fotos desse evento apareceu com a bandeira do Brasil, que é o símbolo dele e do brasileiro. E não tem nenhum tipo de mensagem negativa nesse símbolo. Eu coloco um pouquinho de vermelho. Aquela bandeira tinha. Sempre coloco. Talvez colocar a palavra “Amor” – Ordem e Progresso –, conforme o Jards Macalé apregoa, que seria o correto do ponto de vista do positivismo, né? Parece que a frase completa é essa: Amor, Ordem e Progresso.
— Como foi a emoção de voltar a um protesto depois de tanto tempo de isolamento?
— Foi a mesma emoção de fazer uma apresentação teatral. Saí de casa com a bandeira, estudei a camisa, o melhor tênis para caminhar, se a bandeira estava direitinho. Senti falta dos paninhos vermelhos [na bandeira do Brasil], mas pensei “lá eu encontro”. E tinha um senhor lá vendendo, comprei e amarrei. E você vê todos chegando ao mesmo tempo, é muito forte, muito bonito. Isso quando pega… Agora, já tem outra no sábado [dia 26] e eu irei. Já sabemos que é uma menorzinha, só para o pessoal de 1968. Em comemoração à Passeata dos 100 mil.
— Por que esse é um momento tão fundamental para o Brasil em que as pessoas precisam se mobilizar e se posicionar?
— Porra, porque você está diante da morte. Nós estamos diante da morte. As pessoas estão morrendo. Não tem nada mais grave e mais definitivo do que isso. Na medida em que as pessoas sentiram que dava para sair, embora tenha um risco nisso e, claro, muita gente já está vacinada e todo mundo já está mais ou menos treinado… Então, é o seguinte, se a gente não reagir diante da morte, para que existimos? Por que estamos vivos? Nós estamos com a convicção de que as coisas estão sendo feitas de maneira errada, senão a gente iria ficar em casa numa boa só batendo palma, mas não é assim que está acontecendo. Estamos vendo. Na CPI, em todos os lugares. A gente já sabia, mas acho que ninguém talvez ousasse pensar que fosse ser tão violento, tão desagregador, tão destrutivo quanto está sendo. Gente [fala estarrecido]: 500 mil mortos. Todas as perspectivas de pesquisas dizem que podia ser 1/4 disso. Podiam ser 175 mil mortos, em vez de 500 mil. Estaria mais próximo da média de mortes no mundo. E agora, com coisas comprovadas sobre a compra da vacina indiana [Covaxin], com preço 10 vezes maior do que o preço da que [o governo] se negou a fazer, em circunstâncias absolutamente mais inseguras do que a outra compra seria feita…
Eu me vi acreditando na quarentena, podendo fazer a quarentena como privilegiado que eu sou. Sou ator, tenho emprego, estou escalado numa novela. Agora, enquanto estou aqui, o que faço? Milito. O meu negócio é militância. É o dia inteiro, desde que eu acordo até a hora de dormir eu procuro participar [de debates], dissipando dúvidas, tentando colocar propostas, tentando falar sobre assuntos diversos. Faço isso em lives, em aulas para escolas de segundo grau do interior da Bahia, de Pernambuco… É assim. Militância e atuação, sem parar. Tento utilizar meu Instagram e tenho projetos para fazer com que as pessoas se lembrem em quem elas votaram. Porque o Rio de Janeiro não elegeu o excepcional deputado Chico Alencar (PSOL) que agora está na Câmara dos Vereadores. E elegeu Flávio Bolsonaro e elegeu Arolde de Oliveira, que Deus o tenha… O Lindbergh [Farias] também não foi eleito pelo Rio. Aliás, o Lindbergh gostou da ideia da bandeira no encontro com o Lula.
— O Brasil está vivendo sob o governo Bolsonaro um período muito tenebroso para a cultura. Você é alguém que cria cultura, faz com que ela resista e exista. Como é ver todo o crescimento do setor nas últimas décadas e depois assistir essa avalanche que vem no sentido contrário, tentando destruir tudo?
— É… é isso o que nós temos. Então, temos que mudar isso. Temos que lutar para mudar isso, para nos defender dos ataques e tentar ver tudo o que nós teremos que reconstruir. E vamos reconstruir. Vamos sobreviver à pandemia, vamos sobreviver a esse apagão mental que deu no Brasil num determinado momento, numa determinada circunstância que, eu considero, que um dos pesos mais pesados que tem que se levar em consideração foi uma força sobrenatural. O imponderável, o acidente fatal que foi o esfaqueamento quando o Bolsonaro foi esfaqueado pelo – não me lembro o nome…
— Adélio Bispo de Oliveira.
— Pelo Adélio, que foi o executor de uma conspiração da sua própria mente. Isso deu um choque dramático, trágico, de tragédia grega porque o Bolsonaro estava nos braços daquele povo, com os dizeres [na camiseta] de que se submete às leis de Deus… porque eles têm a coragem de também usurpar Deus. Até por esse discurso, acho importante que falemos sobre Deus e religião. Pedi ao Frei Betto um texto, coloquei no meu Instagram, em que ele fala que Deus não é de nenhum partido. Tem que pregar isso, é bonito.
— Como você vê as perspectivas para o Brasil daqui para o pós-Bolsonaro?
— Acho que é preciso ter uma habilidade na condução do processo político porque temos, praticamente, uma espada sobre nossas cabeças. Como diz o Veríssimo, “nós temos a razão, mas eles têm as armas”. Todo mundo sabe o que está sendo planejado, toscamente, mas eficaz. A dúvida sobre as urnas vai para o Congresso, vai provocar um burburinho e pode até ganhar [o voto impresso]. O cara [Bolsonaro] já lançou uma dúvida muito violenta sobre o pleito. É preciso ficar atento aos desdobramentos. Olhando a entrevista do General Mourão, é difícil saber qual vai ser a posição das Forças Armadas. E tem um caldeirão com milícias e PMs, algo que nem sei se o Exército pode segurar. Hoje, por exemplo, li o artigo do Elio Gaspari no O Globo. Ele é um expert na questão militar. O título da coluna dele mencionava o Tasso Jereissati dizendo que “temos que trincar os dentes”. Essa é a minha resposta também para enfrentar o que vem aí. Não sei se estou sendo alarmista, mas tenho lido essas análises e sei lá, temos que torcer para que o Exército fique com a legalidade.
Espero que tudo isso não ocorra e que nossas manifestações provoquem a consciência de todos. Se for possível que saia logo esse afastamento [do Bolsonaro], se não for, que a gente desgaste o máximo possível o Bolsonaro para que em 2022 isso possa convergir com uma recuperação do poder para forças mais legítimas e mais contemporâneas porque houve retrocesso demais.