A animação com que a ministra da Agricultura, Tereza Cristina, anunciou, na terça-feira, 22, o Plano Safra para o biênio 2021/2022 aponta tendências potencialmente assustadoras para o futuro da alimentação dos brasileiros. Entusiasta da produção para o mercado externo, ela trombeteou que até o final do ano que vem o país atingirá a marca de 300 milhões de toneladas de grãos produzidos. Nenhuma menção a programas voltados para a produção de comida para a população. Recursos de R$ 251,2 bilhões com taxas de juros variando entre 3% a 8,5%.

Semelhante ao menosprezo demonstrado pelo governo federal a vacinas e ao uso de máscaras contra a pandemia, a realidade sonhada pela ministra não considera que, com o objetivo anunciado, subirá para 92% o percentual da colheita em áreas de lavoura temporária destinado à produção de grãos e outros produtos primários – atualmente a cifra encontra-se em 90%.

A produção do arroz e feijão e outros alimentos essenciais para a dieta popular vai sendo cada vez mais perigosamente confinada a guetos agrícolas. Tal concentração está profundamente associada à inflação dos alimentos que ocorre atualmente no Brasil. Não se trata apenas de reflexos de uma alta de preços internacional, como à primeira vista possa parecer.

“Há fatores conjunturais que interferem no preço da comida, tais como safra, sazonalidade ou especulação, especulação que se dá sempre em momentos de escassez”, explica o engenheiro agrônomo Gerson Teixeira, integrante do Núcleo de Acompanhamento de Políticas Públicas Agrícola e Agrário (Napp), da Fundação Perseu Abramo.

“No Brasil a questão se explica por fatores estruturais. Os preços mais impactantes têm origem no manejo desastroso que o governo tem dado à produção de alimentos, com prioridade absurda ao agronegócio exportador”, completa.

A tendência não é nova, mas vem se acentuando. O Brasil se destaca na venda expressiva de sua produção para o mercado externo, como aponta o Departamento de Agricultura dos Estados Unidos. Enquanto a maioria dos países dedica, por exemplo, 15% de sua produção de carne bovina para exportação, o Brasil destina 34% para o mesmo fim. Os casos da soja e do milho são ainda mais agudos. O Brasil dedica 55,8% de sua produção para o mercado externo. O resto do mundo, 15,8%. A soja, 183%. Enquanto os EUA, 74%; e o mundo, 45%.

Essa lógica anda associada à redução da área para plantio de alimentos vocacionados à sobrevivência humana e ao consumo interno. Segundo Teixeira, hoje o feijão ocupa apenas 3,4% da área colhida de lavoura temporária. O arroz, apenas 2%.

Em 1995, ano já marcado pela tendência de privilegiar o agronegócio exportador, esses índices eram de 11,1% e 9,7%, respectivamente. A soja, em caminho inverso, saltou de 2% para 48% no período.

Dessa combinação surge o problema da oferta menor que a demanda, que pressiona os preços. Se, de fato, há uma inflação internacional dos alimentos — a FAO, agência da ONU para alimentação e agricultura, anuncia elevação em torno de 40% nos últimos 12 meses ao redor do mundo —, a do Brasil é um caso à parte. O óleo de soja atingiu 87% de inflação em maio, na comparação com os 12 meses anteriores. E o feijão, 58% no mesmo período.

Este quadro não afeta apenas o cardápio do dia-a-dia do brasileiro, mas prenuncia um grave problema social e político que surgirá caso o assunto não passe a obedecer a uma nova receita. “Vivemos uma crise latente do apagão de comida”, prevê Teixeira, que também é assessor da bancada do PT na Câmara Federal. “Quando as pessoas voltarem a ter uma recuperação de renda, não vai haver comida para elas”, adverte.

Uma amostra disso ocorreu no ano passado, quando o auxílio emergencial, ainda que de baixo valor, levou a população a procurar as gôndolas de alimento nos pontos de venda. “A inflação subiu”, lembra Teixeira.

A evolução dos preços de comida medida pela Pesquisa Nacional da Cesta Básica de Alimentos, feita mensalmente pelo Dieese nas capitais brasileiras, mostra que a alta se seguiu à concessão do benefício. A partir de abril de 2020, na cidade de São Paulo, a cesta básica rompeu a barreira dos R$ 500 e seguiu em progressão até atingir R$ 636,40 no último mês de maio.

A mudança no comando político do país exigirá, na opinião de Teixeira, a adoção de um programa de emergência para utilizar os 88 milhões de hectares de assentamentos da reforma agrária existentes na produção de alimentos em quantidade suficiente e em tempo hábil para atender o desejado crescimento do consumo.

Para tanto, será preciso retomar políticas que foram simplesmente abolidas, como a assistência técnica aos assentados e o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA). E deter o avanço voraz do agronegócio sobre as terras que ainda não lhes pertence – a exemplo das reservas indígenas e dos assentamentos de reforma agrária.

Desde 2017, uma mudança na legislação, possível graças à hegemonia da bancada ruralista, torna possível a venda das propriedades 15 anos após o assentamento, retirando dessas porções de chão o caráter público que era preservado pela chamada Concessão de Direito Real de Uso, instrumento jurídico que garante ao assentado e seus herdeiros o acesso da terra, mas não sua venda.

Sem apoio, sem inserção na cadeia de venda e distribuição e nem acesso a crédito, o assentado venderá sua terra a grandes conglomerados. Assim os latifundiários pretendem desfazer etapas da reforma agrária percorridas até aqui. Sutil. Mas implacável.