Marx, guitarras e amor em tempos de Thatcher
O grupo inglês Gang of Four é pouco conhecido do grande público brasileiro, mas sua influência pode ser sentida de maneira imediata sobre o rock nacional dos anos 80. Tempo em que a Legião Urbana de Renato Russo, os Titãs de Arnaldo Antunes, e bandas como Ira! e Plebe Rude faziam a cabeça dos fãs do rock em Pindorama. Todas bebiam diretamente na fonte do seminal grupo britânico, formado em 1976 por jovens estudantes de artes da Universidade de Leeds.
O Gang of Four – cujo nome remete diretamente à Camarilha dos Quatro, formada por membros do Partido Comunista da China que ascenderam ao poder no período da Grande Revolução Cultural (1966-1976) de Mao Tse Tung, e que incluia Jiang Qing, esposa de Mao, Zhang Chunqiao, Wang Hongwen e Yao Wenyuan – é um dos mais influentes grupos de rock do pós-punk inglês. Pretenciosamente, a banda articulou um discurso de esquerda em canções dançantes de rock que ganharam enorme influência sobre nomes do pop mundial, como U2, Red Hot Chilli Peppers, Nirvana e R.E.M.
Pois saiu na Europa uma caixa reunindo os dois primeiros discos do grupo – Entertaiment! (1979) e Solid Gold (1981) – e mais preciosidades reunidas em outro vinil e uma fita k7, com shows ao vivo, singles e demos mostrando que a banda soa atual e ainda está mais forte no mundo em que a extrema-direita dá as cartas em muitos países da Europa e – infelizmente – aqui também no Brasil.
O boxset Gang of Four 77-81 mostra toda a produção da banda em sua formação original: o vocalista Jon King, o guitarrista Andy Gill, o baterista Hugo Burnham e o baixista Dave Allen. O grupo partiu de influências diversas, mas culturalmente importantes, como a música funk, o discurso inspirado por críticas marxistas ao capitalismo – eram adeptos da Escola de Frankfurt – até o ativismo explícito contra o governo Thatcher – Maggie, a dama de ferro, assumiu o poder como primeira-ministra em 1979 e o exerceu com crueza e ataques diretos e brutais aos sindicatos e trabalhadores até 1990. Não à toa, a banda, articuladamente, mostrava que tinha lado, como na faixa “Not great men”, do disco de estreia: “O passado vive em sua sala/ Os pobres ainda fracos, os ricos ainda governam”. Uma letra ainda atual!
As observações intelectuais e estridentemente esquerdistas da banda sobre política e cultura ecoam na música que surgiria das cinzas do punk, mesclando funk, disco e guitarras estridentes. Se o leitor conhece bandas inglesas como Bloc Party e Franz Ferdinand, ou americanas como The Rapture e Radio 4, vai reconhecer a influência.
A caixa reunindo a obra do Gang of Four sai um ano depois da morte do guitarrista e fundador Andy Gill, ocorrida em fevereiro de 2020, vítima da Covid. Em novembro de 2019, Gill foi com a banda para a China e a sua mulher desconfia que o músico tenha sido infectado naquele momento. Ele voltou à Inglaterra em dezembro e imediatamente foi internado com problemas respiratórios. Quando morreu, estava reunindo amigos para a gravação de um novo disco – lançado postumamente agora em junho, como um tributo-homenagem ao eclético e essencial grupo e seu guitarrista (leia box na página ao lado).
Gill era considerado pelos amigos de banda como a estrela guia intelectual do grupo. Seu estilo de tocar guitarra – um ping pong furioso e estridente, respondendo ao baixo e bateria, com acordes em staccato e oscilando estruturas de feedback – é o ingrediente mais impressionante do Gang Of Four.
A caixa parece uma tentativa de consolidar o legado do Gang Of Four e é uma bela homenagem de Jon King e Hugo Burnham. Projetado por King e com design do dinamarquês Bjarke Vind Normann, a caixa é um pacote impressionante, contendo os dois primeiros álbuns remasterizados, junto com um LP reunindo os singles do grupo, um set ao vivo inédito de 1980, um livro e uma fita cassete C90 de outtakes inéditos, raridades e demos. Um presente aos fãs com os primeiros ensaios, capturados em Leeds entre 1977 e 1978.
No boxset, há versões iniciais de “Armalite Rifle” e “Damaged Goods” – a seminal canção que os Titãs descaradamente plagiaram em “Corações e mentes”, nos versos “O teu beijo é tão doce/ o teu suor é tão salgado/ Às vezes acho que te amo/ Às vezes acho que é só sexo” – (No original: Your kiss so sweet/ Your sweat so sour/ Sometimes I’m thinking that I love you/ But I know it’s only lust). Há ainda canções sem nome gravadas no Cargo Studios em Rochdale, em meados de 1978, mostrando a mistura da banda emergente com guitarras abrasivas e muito swing em forma de pistão com um efeito impressionante.
O livro que acompanha Gang of Four 88-71 também é exemplo de tratamento à obra dos caras. Pesquisado pelo baterista Hugo Burnham e editado e desenhado por Jon King com a ajuda do designer gráfico Dan Calderwood, as 100 páginas narram os primeiros cinco anos de existência da banda, misturando fotografia, letras e comentários, diários de turnê e tributos e lembranças de amigos e fãs da banda, incluindo Henry Rollins, Lol Tolhurst, do The Cure, Michael Stipe e Mike Mills, do REM, e membros do Pylon e The Mekons – grupos seminais do pós-punk também formados em Leeds, na mesma época. “O jeito de tocar guitarra de Andy Gill foi uma inspiração particular para mim, e eu o copiei descaradamente”, escreve Steve Albini, produtor e músico, responsável pelo In Utero, do Nirvana. “Ele diria o mesmo sobre Wilko Johnson (guitarrista do Dr. Feelgood), então estamos quites”.
O livro vai tão fundo, que suas revelações o ajudam a ouvir um disco conhecido como Entertainment! de uma nova maneira. Tome “Love Like Anthrax” – um canção audaciosa que mostra King cantando uma melancólica melodia sobre decepção e o fim do amor no canal esquerdo do stereo, enquanto Andy Gill desconstrói entre dentes outra letra a canção de amor, tudo embalado com um rugido de guitarra em feedback agudo e ensurdecedor. A tática da dupla narrativa da canção foi inspirada por King e Gill no filme de Jean-Luc Godard Numéro Deux (1975). A letra de Gill era situacional, improvisada de novo sempre que a música era executada.
O livro está repleto desse tipo de preciosidade. Quem diria, por exemplo, que a frase “a mudança vai te fazer bem” que dá início a “Damage Goods” era o slogan do supermercado local em que a banda fazia compras? Há outras pepitas na caixa, como a clássica “To Hell With Poverty” (“Ao inferno com a pobreza”), com um riff matador e um baixo e bateria suingados e dançantes, que são impossíveis de ouvir parado. A letra também é uma porrada: “Para o inferno com a pobreza/ Vamos nos embriagar com vinho barato/ Para o inferno com a pobreza”. Renato Russo adorava. •
Onde comprar
A caixa Gang of Four 77-81 pode ser encomendada diretamente no site da Matador Records – store.matadorrecords.com/77-81. Ou pela Amazon.
Uma celebração ao Gang of Four e Andy Gill
Lançado no início de junho, The Problem of Leisure: A Celebration of Andy Gill e Gang of Four, é um álbum duplo de faixas de Andy Gill e a banda Gang of Four, reinterpretadas e gravadas por artistas cujas contribuições únicas para a música foram enriquecidas ouvindo o quarteto inglês.
O álbum apresenta canções de mais de 40 anos de carreira do Gang of Four, cada uma escolhida individualmente pelos artistas que fizeram as covers. Gill originalmente havia concebido o álbum para marcar o 40º aniversário do lançamento de Entertainment!, em 2019.
A viúva do guitarrista inglês, a ativista Catherine Mayer, explica que o plano mudou na época da morte de Andy, em fevereiro de 2020, depois que alguns artistas escolheram faixas de diferentes álbuns e épocas. “É claro que não foi concebido como um álbum de tributo, mas é reconfortante que ele tenha vivido para ver artistas que admirava entusiasticamente concordando em participar, sinalizando que a admiração era mútua”.
A capa do álbum foi criada pelo artista inglês Damien Hirst, um amigo de longa data de Andy, e entre os músicos convidados a participar do álbum duplo, que já pode ser ouvido em todas as plataformas de streaming, estão Flea e John Frusciante do Red Hot Chilli Peppers, Tom Morello do Race Against The Machine, Serj Tankian do System of a Down, e Dado Villa-Lobos da Legião Urbana, além de Gail Ann Dorsey, que tocou com Bowie. Um discaço para os fãs da banda! •