Na maior parte do ano de 2020 e início de 2021, o Brasil experimentou dois ciclos de forte aceleração dos preços da “alimentação no domicílio”. Os picos dos preços ocorreram de setembro a dezembro. No acumulado de 12 meses, até maio, enquanto a taxa do IPCA foi de 8%, a inflação do óleo de soja foi de 87%; do arroz, 51,8%; do feijão, 58%; das carnes, 38%.

Não bastasse, este processo coincide com a evolução da tragédia sanitária com a queda lancinante dos indicadores socioeconômicos do país. Na resultante, vemos grassar a fome e a miséria no Brasil. Os dados da carestia sugerem a forte correlação entre esse processo e os períodos de concessão do auxílio emergencial de R$ 600.

A extinção, com a posterior redução do auxílio emergencial culminou com o recuo aparente da média desses preços. Antes que acusem de estarmos culpando os pobres pela inflação da comida, destacamos esse vínculo para reforçar a hipótese sobre a crise estrutural latente do abastecimento de alguns alimentos estratégicos da dieta dos brasileiros.

Nas condições atuais da oferta desses produtos, uma necessária e inadiável política de geração e recomposição de renda e emprego para as camadas mais vulneráveis da nossa população implicará em crise no abastecimento alimentar com repercussões políticas imponderáveis.

São múltiplas as causas da volatilidade dos preços dos alimentos. Porém, no geral, têm como determinante comum os efeitos do avanço do agronegócio exportador, sem qualquer regulação. Com efeito, afora práticas especulativas próprias em situações de escassez, efeitos sazonais para determinados grupos de produtos, ou eventuais frustrações de safras, os fatores substantivos causadores do processo latente de inflação dos alimentos são os seguintes:

1) a tendência erosiva da participação de alimentos básicos na economia agrícola do país. Em 1995, as áreas colhidas de arroz, feijão, e mandioca, representavam, respectivamente, 9,7%, 11,1% e 4,3% da área colhida total com lavouras temporárias. Em 2019, tais proporções declinaram para 2,3%, 3,4% e 1.5%. Em contraste, a soja e a cana ampliaram as participações no período – de 2,2% para 47,6% (soja) e de 25,9% para 47,7% (cana). Portanto, soja e cana respondem por 73,6% da área colhida total no Brasil, enquanto as culturas do arroz, feijão e mandioca, juntas, são responsáveis por apenas 7,2%. Assim, fica claro que as culturas “para exportação” avançam sobre as áreas com culturas alimentares básicas.

2) no contexto acima, o governo Bolsonaro “extinguiu” a política de estoque de alimentos essenciais, eliminando uma ferramenta estratégica para mitigar a tendência de redução da oferta interna. Enquanto a FAO recomenda que os países mantenham em estoques de alimentos, no mínimo, 20% dos respectivos níveis de consumo, os estoques atuais da Conab de arroz, milho, feijão e farinha de mandioca sustentam algumas horas do consumo desses produtos no Brasil. Em outros termos, os “estoques” disponíveis não sustentam um dia de consumo.

3) a prioridade exportadora do modelo, que adquiriu proporções tendencialmente absolutas no governo Bolsonaro, a despeito de câmbio, e sem qualquer salvaguarda para o mercado doméstico. O Brasil é o maior produtor e exportador mundial de soja. Conforme dados do USDA, comparando Brasil, Estados Unidos (maior exportador mundial de alimentos) e o resto do mundo, exportamos o correspondente a 34% do consumo nacional de carne bovina. Nos EUA e no mundo essas proporções são de 10,4% e 15%. No caso do milho, o Brasil exporta o equivalente a 55,7% do consumo doméstico. Para os EUA e mundo, as taxas são de 19% e 15,8%. Quanto à carne de frango, as exportações do Brasil correspondem a 37.2% do consumo. As exportações dos EUA e do mundo não passam de 18% e 10,7%. As exportações brasileiras representam 183% do consumo nacional. Para EUA e mundo, as taxas são de 74% e 45%.

Neste quadro, e pela obsessão agroexportadora, o Brasil experimenta crise no abastecimento interno de insumos para vários segmentos da indústria agroalimentar em razão da exorbitância das vendas externas.

Em meio a este quadro dramático, sem qualquer medida do governo para enfrentá-lo e zombando da fome a da miséria que se espraiam no Brasil, o presidente Jair Bolsonaro declarou: “Tem inflação em alimentos, sim. Não vou negar. Estamos, agora, tentando diminuir o preço do milho. Vai atingir diretamente a galinha, o ovo. Da onde vem isso aí? Da política do ‘fica em casa, que a economia vem depois”. Os brasileiros não merecem!!!

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